Vergonhoso e simbólico. Vexatório, porém real. O bate-boca entre os senadores sobre a redução do número de vereadores no país é o retrato fiel e preciso da degradação que acomete o nosso sistema político.
A aberração começa no inchaço da representação municipal que ao invés de aumentar o nível de participação popular só a avilta. Mas as manobras de alguns senadores para solapar a decisão saneadora da Justiça Eleitoral e que culminaram com o indigno fuzuê da última quarta-feira escancaram um processo de degradação que vai além do corte de 8.552 vereadores e uma economia de quase 5 bilhões de reais por ano.
A instância máxima do Poder Legislativo perdeu a compostura, avacalhou-se não apenas ao defender a impostura municipal vigente no país como comportou-se como uma reles Gaiola de Ouro – que em final de expediente, véspera de um feriadão, atropela o regimento, pisoteia a dignidade e mergulha na imoralidade.
Os protagonistas do friforó não são calouros, recém-chegados às lides parlamentares. A participação de dois famigerados coronéis proprietários de enormes currais eleitorais confere ao episódio uma dimensão institucional que não pode ser disfarçada ou esquecida. Aliados ao lobby da gastança municipal estão o próprio presidente do Senado, José Sarney e um antecessor, Antonio Carlos Magalhães, preocupados em atenuar o corte das vagas proposto pelo Judiciário e assim preservar ao máximo o número de apaniguados que controlam. E José Sarney é o homem forte do governo, uma das figuras mais poderosas desta República, ainda empenhado (junto com o seu colega, presidente da Câmara, João Paulo Cunha) em mudar a Constituição para permitir a sua reeleição para o comando da Câmara Alta.
Uma sessão para não ser esquecida: começou como telenovela quando uma senadora em plenário agarrou-se e começou a beijar – como irmã, proclamou ela – um charmoso senador, mais tarde virou circo quando trouxeram o palhaço Xuxu, vestido a caráter para desmoralizar a tentativa de reverter o corte nas vagas de vereadores, e terminou como botequim de periferia graças à exibição de truculência verbal do decadente senador ACM quase convertida numa troca de sopapos.
Folclore à parte, a sociedade brasileira foi obrigada a defrontar-se com a imperiosa necessidade de regenerar não apenas os costumes políticos mas a própria idéia de representação democrática.
As câmaras locais são as nossas mais antigas instâncias de governo, abençoadas pelos colonizadores como forma de mitigar os feudos que instalaram e a intolerância que implantaram. Com a proclamação da República transformaram-se em foro político efetivo, mas foi na antiga Capital Federal, em 1922, que a Câmara dos Vereadores associou-se formalmente à idéia de corrupção, nepotismo e gandaia.
A construção da sua sede (hoje o Palácio Pedro Ernesto, na Cinelândia) teve um custo tão absurdo e as irregularidades foram tão escandalosas que logo a malícia carioca alcunhou-a de Gaiola de Ouro, genérico hoje consagrado para designar a improbidade das casas legislativas em todos os níveis.
O governo federal não pode ignorar a importância da crise institucional que se esconde atrás do lamentável episódio senatorial. O corte no número de vereadores não é apenas uma questão de aritmética eleitoral ou responsabilidade fiscal, ele põe em movimento a impreterível reforma política sem a qual o Poder Legislativo será irremediavelmente transformado em ficção. E ficção de gosto duvidoso.
A democracia brasileira não pode ocorrer e transcorrer em Gaiolas de Ouro. Perderá credibilidade, ficará sob suspeita. Não é por acaso que as forças mais reacionárias e mais decrépitas do Senado opõem-se à moralização dos legislativos municipais.
Esta parceria entre os dois extremos do processo legislativo forma um arco tão ostensivo e tão ofensivo que ignorá-lo deixa de ser cegueira – é cumplicidade com o atraso. Pior: é transigência com a prevaricação.