Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Gato por lebre, com aval do jornal

Comecei a estudar no Cursinho do Grêmio em 1968, mas a participação nos movimentos contestatórios acabou prevalecendo sobre os projetos de conquistar um lugar ao sol na sociedade capitalista. Decidi que queria mesmo era meu lugar ao sol num Brasil solidário e justo que o capitalismo jamais propiciaria. Fiquei, entretanto, tempo suficiente naquela instituição – cujos proprietários e professores eram estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – para constatar que sua prioridade era formar cidadãos conscientes e dotados de espírito crítico, capazes de vencer os desafios da vida, e não apenas de transpor a barreira do vestibular.

Finda minha sofrida passagem pela luta armada, quando juntava os cacos para seguir vivendo após meus sonhos maiores terem sido postergados por décadas, sem que sequer se vislumbrasse a luz no fim do túnel, fui buscar no Equipe Vestibulares o necessário para ingressar numa faculdade de Jornalismo. Cisão do Cursinho do Grêmio, também o Equipe incutia nos alunos o interesse em irem muito além do estritamente necessário para o vestibular. Não era só o como que importava; havia uma infinidade de porquês sendo colocados, discutidos, aprofundados.

Contra essa visão do ensino como instrumental para a compreensão do mundo e participação crítica na sociedade, vicejou uma outra, utilitária, mesquinha, castradora: a linha de montagem de robozinhos chamada Curso Objetivo.

O leopardo não perde as pintas

Usando e abusando de recursos da nascente informática, o Objetivo sistematizou o levantamento do que já havia caído em vestibulares e a projeção do que provavelmente cairia no seguinte, martelando na cabeça dos alunos esses retalhos de conhecimento por meio de shows-aulas, com os recursos audiovisuais e as performances canastrônicas dos professores servindo para tornar menos intragável a chatice. Decoreba modernizada, enfim. Esta didática que desvirtuava a Educação foi alavancada pela redução do vestibular a um mero exercício de fincar cruzinhas em questões de múltipla escolha.

A ditadura sabia a quem lhe convinha facilitar o ingresso no curso superior: as chances dos CDFs, dos esforçados mas não brilhantes, eram maximizadas por esses exames grotescos, em detrimento da capacidade de raciocínio e da criatividade – as quais, não por acaso, eram características marcantes dos insatisfeitos com o regime. E, como o Objetivo tinha bons resultados quantitativos para trombetear, sua metodologia Frankenstein ocupou espaços cada vez maiores no mercado, aplicada por si e pelos outros cursinhos que a copiaram.

Depois de alguns anos, entretanto, o ensino superior começou a despertar desse pesadelo, reintroduzindo questões dissertativas no vestibular para preencher suas salas de aula com algo mais do que laranjas mecânicas. O tempo passou, o país se redemocratizou, vivemos uma nova realidade, mas o leopardo não perde as pintas, nem o Objetivo deixa de corporificar a pior mentalidade capitalista aplicada ao ensino.

Moldar geniozinhos como raça superior

Assim é que, em anúncios de página inteira veiculados nos jornalões, crava: ‘Objetivo cria escola só para bons alunos’.

E, em letras garrafais, reproduz citações de uma matéria que, à primeira vista, até me pareceu uma daquelas peças louvaminhas que são contratadas e detalhadas nos Departamentos Comerciais da grande imprensa, chegando às redações como tarefas a serem cumprida seguindo as especificações da bula:

‘O Objetivo criou uma escola apenas para bons alunos. O Colégio Integrado Objetivo tem o mesmo endereço da tradicional unidade Paulista (avenida Paulista, 900) (…)

A mensalidade (cerca de R$ 1.600) e a carga horária não mudam. A diferença é que no Colégio Integrado, criado em 2008, só entra aluno com nota alta. Além disso, ele oferece aulas extras para os alunos no período da tarde e os professores são `especiais´.’

O ridículo, no anúncio, chegou ao ponto de serem apresentadas como verdades irrefutáveis as alegações do Objetivo sobre os motivos de tão prodigioso colégio, que se propõe a isolar os geniozinhos para melhor moldá-los como raça superior, não figurar bem no Enem.

‘Autofagia perigosa’

No entanto, a coluna de Suzana Singer, ombudsman da Folha (no último domingo [1/8], ‘Um texto, dois objetivos’), esclareceu que não se tratava de uma armação comercial imposta à redação, mas sim, de um texto jornalístico que foi desfigurado para se adequar à imagem que o Objetivo queria projetar:

‘O que era uma reportagem crítica virou, em cinco dias, peça publicitária. Em 20 de julho, a Folha relatava, com chamada na primeira página, que a rede Objetivo criou uma escola apenas para bons alunos, que ganham aulas extras à tarde, ministradas por professores considerados `especiais´.

Esse grupo teria obtido no último Enem, o Exame Nacional de Ensino Médio, uma nota suficiente para aparecer como segundo colocado no ranking nacional.

Nas entrelinhas, o que se deduzia era que não se tratava de fato de uma escola nova, mas de um artifício: separam-se os mais estudiosos, eles obtêm boas notas no Enem e o nome do colégio aparece no alto do ranking das escolas.

Nos dois primeiros parágrafos, o texto dizia que o Colégio Integrado Objetivo, criado em 2008, não tem um prédio próprio, cobra a mesma mensalidade e tem carga horária obrigatória idêntica às demais unidades da rede.

Era para ser uma denúncia, mas a reportagem deve ter sido comemorada na avenida Paulista, 900, onde fica a sede do Objetivo. O texto virou anúncio de página inteira, publicado quatro vezes na Folha e em outros jornais.

O colégio reproduziu o título da reportagem, destacou várias partes e assinalou em letras grandes: `Parabéns, alunos e professores do Colégio Integrado Objetivo, pelo êxito no Enem´. Deixou, no alto, o logotipo da Folha para dar credibilidade.

O anúncio, porém, omitiu vários trechos importantes. Um deles dizia que `as demais unidades do Objetivo, que não selecionam os alunos, não vão tão bem assim no ranking do Enem´. Outro afirmava que a escola premia com iPhone e notebooks os que se destacam nos simulados.

Dois parágrafos subtraídos tinham declarações de uma educadora criticando a prática de selecionar alunos.’

Ou seja, o Objetivo pegou um texto jornalístico que tinha prós e contras, suprimiu todos os contras e trombeteou os prós. Será que nesse seu colégio-chamariz também são ministradas aulas de ética?

A ombudsman revela que, depois de produzir o anúncio com o texto expurgado e maquilado, a agência de publicidade do Objetivo entrou em negociações comerciais com a Folha que, mediante pagamento pelo uso do seu material, concordou com o abuso.

Suzana interpelou a Secretaria de Redação, que defendeu a distorção cometida:

‘A avaliação foi a de que a essência da reportagem não foi adulterada.’

Mas, cumprindo conscienciosamente sua função, a ombudsman sustenta que o procedimento foi aberrante:

‘Se fosse isso mesmo, a reportagem original teria algo bem errado, já que seria praticamente um press realese. Mas não era. Foi retalhada e usada como peça de marketing.

Para os leitores, expostos mais vezes ao anúncio do que à reportagem, fica a impressão de que a Redação da Folha prestou um serviço ao Objetivo. O jornal permitiu uma autofagia perigosa.’

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Jornalista e escritor; seu blog