Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

George W. Bush a indulgência da mídia

A cobertura que os meios de comunicação de massa americanos estão fazendo da campanha presidencial deste ano é um bom teste para verificar o quanto George W. Bush foi bem-sucedido em sua tentativa de colar sua imagem à noção de patriotismo.

Logo após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, era evidente que pelo menos no curto prazo aquela estratégia estava dando certo. A patética declaração de Dan Rather a David Letterman, na qual o âncora da CBS se colocou à disposição do presidente para fazer o necessário em nome da pátria, foi sintomática desse êxito.

Mas quando jornais de prestígio como The New York Times e The Washington Post tiveram de admitir a seus leitores que haviam publicado inverdades sobre o conflito no Iraque por terem abdicado do espírito crítico ao receber informações do governo e retransmiti-las ao público, as coisas começaram a mudar.

Nenhum ativo é mais importante para um veículo de comunicação do que sua credibilidade. E foi exatamente ela que ficou em xeque por causa – entre outras razões recentes – da sucessão de engodos sobre o Iraque propalados pela imprensa com base em fontes oficiais.

Naturezas distintas

A primeira eleição presidencial americana pós-11 de setembro de 2001 dá a impressão de se parecer muito, na essência, com as imediatamente anteriores no que se refere à maneira como vem sendo jornalisticamente tratada.

Acusações pessoais recebem muito mais destaque e espaço do que propostas de conteúdo, por exemplo. Aparentemente, existe uma tentativa deliberada de ser equânime com os dois principais candidatos.

Assim, após o festival de reportagens sobre as acusações de que John Kerry não fora no Vietnã tão heróico quanto sua biografia oficial tentava fazer crer, seguiu-se uma avalanche de matérias sobre as reais circunstâncias do serviço militar que Bush prestou no Texas e no Alabama no mesmo período histórico.

Embora à primeira vista as duas coisas se equivalham, na verdade o efeito reverencial em relação à figura do presidente da República se faz sentir no trato das acusações que cada um dos candidatos recebeu.

Para ser justo, é preciso ressaltar que a imagem do presidente nos EUA tem sido tradicionalmente objeto de respeito por parte dos jornalistas como um todo muito similar ao que se dedica a uma semidivindade – muito diverso do que ocorre no Brasil, por exemplo.

O presidente americano é visto pela sociedade como uma encarnação do Estado e da pátria, independentemente de quem seja. Trata-se de uma característica muito pouco republicana e contraditória com o espírito antimonárquico que marcou o nascimento da nação americana.

Mas, em todo o caso, é assim que é. No caso de Bush, esse efeito reverencial foi potencializado pela tragédia do 11 de Setembro a dimensões sem precedentes. Atacar o presidente ou mesmo discordar dele foi por muitos meses equivaleu a crime de lesa-majestade.

As esparrelas do pós-guerra no Iraque, como já mencionado, amenizaram um pouco esse panorama. No entanto, o episódio das denúncias contra Kerry e Bush referentes à carreira militar de cada um mostra que as coisas não ficaram tão uniformes.

Tratar os dois conjuntos de delações e defesas como se fossem do mesmo gênero é fundamentalmente equivocado porque num caso (o de Kerry) se coloca em dúvida o grau do heroísmo e, no outro (o de Bush), o que se discute é a extensão da fraude.

Não há nenhuma dúvida sobre o fato de Kerry ter se voluntariado para ir ao Vietnã, de ter combatido e de ter ganhado condecorações por seu comportamento em ação. Nem sobre o fato de Bush (como Bill Clinton) ter se valido de subterfúgios e usado influências para permanecer nos EUA (em vez de ser mandado para o sudeste asiático).

A natureza dos dois episódios é fundamentalmente distinta, antagônica até. Mas a maneira como o jornalismo americano lida com elas é basicamente igual.

Evidentemente que se poderia argumentar que o público é capaz de perceber as diferenças. Mas faz parte da obrigação do bom jornalismo alertar o leitor-consumidor para os elementos mais importantes de qualquer evento.

Mais quatro

O mesmo ocorre em relação às mentiras que Bush pregou aos americanos e ao mundo em relação aos motivos que o levaram a invadir o Iraque. O jornalismo americano tem lidado com elas como se tivessem o mesmo caráter das que Clinton impingiu a seus compatriotas no caso Mônica Lewinski. Mas umas (as de Bush) tinham a ver com decisões de Estado e resultaram na morte de pelo menos mil americanos e dezenas de milhares de iraquianos, enquanto outras (as de Clinton) diziam respeito à intimidade de umas poucas pessoas e causaram males apenas a elas.

De fato, a indignação média da imprensa americana em relação às inverdades de Bush é até muito menor do que a registrada no verão de 1998, quando as de Clinton ficaram evidentes – o que chega a ser absurdo, mas é compreensível.

Na verdade, qualquer jornalismo reflete os valores coletivos predominantes da sociedade a que serve. Para o americano típico – puritano, punitivo, corretório – a mentira por pretensa razão de Estado é mais nobre do que a mentira egoísta (e, além de tudo, originada por um pecado que envolvia sexo) e, portanto, mais fácil de ser redimida, mais suscetível ao perdão.

Assim, Bush continua a contar com a indulgência da mídia, embora ela até não precise ser justificada pelos motivos da identificação de sua figura com a pátria ameaçada. Circunstâncias diversas e fortuitas podem explicar não apenas a boa vontade jornalística de que ele desfruta, mas – muito mais importante – a benevolência com que pelo menos metade de seus concidadãos o trata e provavelmente o conduzirá para mais quatro anos na Casa Branca.

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Jornalista, diretor da Patri Relações Governamentais & Políticas Públicas