Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Goste ou não a imprensa, o Senado é soberano

Atingido por uma profusão de adjetivos, o leitor foi nos últimos dias bombardeado pela idéia de que o julgamento do senador peemedebista Renan Calheiros representou a última pá de cal sobre a credibilidade do poder Legislativo. Decretou-se o fim do Senado, o enterro da democracia representativa, o fim da ética, o funeral da Política. ‘Vergonha!’, esbraveja a capa de Veja. O Senado é o Brasil do atraso, o STF – que abriu processo contra os acusados no escândalo chamado de mensalão –, é o ‘Brasil que abraça e deseja a modernidade’, discursa Época. Faltou acrescentar: ‘E julga conforme o desejo da imprensa’.


No meio da indignação geral, a verdade tenta levantar um dedo para se fazer ouvir. Em vão. Para que ela pudesse se manifestar, seria preciso afastar alguns entulhos, antigos vícios que o jornalismo acumula e que aos poucos se consolidam como paradigmas de qualidade. Encontrar uma opinião nos jornais que contrarie a grita geral seria como localizar uma agulha no palheiro sem a ajuda de um ímã. Qualquer indivíduo que se proponha a colocar em questão a interpretação generalizada sobre a decisão tomada pelo plenário do Senado na quarta-feira (12/9) será estigmatizado.


Um desses vícios é a absoluta compulsão por conclusões. Como praticamente não existe mais investigação jornalística, ganha pontos quem alinhar a interpretação mais apropriada, juntando argumentos, indícios e principalmente boas frases que formem uma lógica – desde que essa lógica seja compatível com o viés predeterminado por esse universo de conhecimento e poder que chamamos de imprensa. É próprio desse universo considerar-se superior aos poderes públicos, é natural que esse universo esteja sempre expondo as fragilidades dos poderes públicos, até como justificativa para sua necessidade, para a inevitabilidade do seu papel fiscalizador desses poderes.


Falta de decoro


Outro vício é a acumulação de opiniões sobre uma base pobre de conhecimento. Por exemplo, nenhum dos grandes jornais – que, sendo igualmente donos das principais agências noticiosas, direcionam tudo que se publica no Brasil –, nenhuma revista semanal, nenhum dos telejornais de grande audiência explicou, nesses últimos dias, o que é decoro parlamentar, princípio sobre o qual se deveria avaliar o julgamento de Renan Calheiros.


Sobre a figura do presidente do Senado, o que se conhece dele publicamente não inspira qualquer sentimento de admiração e respeito. Sua trajetória política, as táticas imorais e condenáveis, sob o senso comum, que utilizou para assegurar um processo que lhe fosse favorável, e os próprios indícios de crimes que se acumulam contra si, apenas reforçam a baixa reputação que carrega há muitos anos. Mas não estava em julgamento, na semana passada, o decoro de Renan.


Como lembra Maria Cláudia Bucchianeri Ribeiro, professora de Teoria Geral do Estado e de Direito Constitucional, citando o jurista Miguel Reale em artigo no site Consultor Jurídico, falta de decoro é a ‘falta de decência no comportamento pessoal, capaz de desmerecer a Casa dos representantes (incontinência de conduta, embriaguez etc.) e falta de respeito à dignidade do Poder Legislativo, de modo a expô-lo a críticas infundadas, injustas e irremediáveis, de forma inconveniente…’


O ‘caso Mendes Júnior’


Do modo como vem sendo noticiado o caso, o leitor é induzido a acreditar que o que se julga é o decoro do parlamentar, quando o que está em julgamento é, na verdade, o decoro do Parlamento. Outros pareceres citados no artigo da professora indicam que, apesar de a Constituição não definir o que é exatamente a falta de decoro, conceitua-se que o julgamento é feito pelo Parlamento em sua própria defesa, ou seja, um deputado ou senador perde o mandato quando há provas concretas de que seu comportamento ameaça a integridade de um dos poderes da República.


O espírito do julgamento em plenário não é o de punir o parlamentar, mas de excluir da Casa alguém que, por seu comportamento inapropriado, coloca em risco a própria Casa. E mantê-lo longe de um novo mandato por oito anos.


Não se trata, como parece induzir o noticiário em geral, de uma questão moral ou criminal, mas de um instrumento pelo qual a vontade dos votos é amputada pelo arbítrio dos parlamentares. O voto, que conduz o representante da sociedade ao poder Legislativo, é soberano em relação à vontade dos parlamentares, e uma das poucas ocasiões em que essa relação de valores se inverte ocorre quando o comportamento do representante ameaça a integridade do próprio poder. Os julgadores só podem tomar essa decisão, de desfazer o que foi produzido pelo voto da sociedade, com provas absolutas de que o decoro do Parlamento foi quebrado por este ou aquele deputado ou senador.


Os jornais vêm publicando denúncias contra Renan Calheiros há 120 dias. A primeira delas, que conduziu ao julgamento no plenário, se refere à hipótese de o presidente do Senado ter usado recursos da empreiteira Mendes Júnior para pagar pensão à jornalista Mônica Veloso, com quem teve uma filha em relacionamento extraconjugal. Renan se defendeu alegando que tem recursos próprios e que não precisaria se socorrer junto à empreiteira. A acusação sustentou que ele não provou ter esses recursos, a partir de evidências de que as fontes de renda que comprovou possuir não alcançariam o total dos gastos.


Sessão fechada


O senador Francisco Dornelles (PP-RJ), integrante de um partido aliado ao Executivo, ofereceu a alegação de que precisavam os defensores de Renan e aqueles que não tinham plena convicção de sua culpabilidade. Dornelles, que já foi secretário da Receita Federal, afirmou que, tecnicamente, não havia nos dois relatórios de acusação provas suficientes para que o Senado considerasse que a solução dada por Renan ao seu affaire privado tivesse afetado o decoro do poder público. Renan aproveitou para observar que a maior parte do texto acusatório era composta por reproduções de notícias e artigos da imprensa. Usou as pressões da imprensa como argumento a seu favor.


Os senadores sabiam que, para violentar a vontade dos eleitores alagoanos que conduziram José Renan Vasconcelos Calheiros ao Senado, precisariam de provas absolutas contra ele. A maioria entendeu que não havia. Esses são os fatos. Se a escolha da maioria dos 81 senadores foi influenciada por ameaças do acusado, se alguns consideraram que o governo perderia ou ganharia com a cassação de Renan e sua substituição na presidência do Senado, são interpretações. A grita da imprensa nasce neste terreno, não nos fatos em si.


Os fatos apresentam muitas outras ocorrências contra Renan Calheiros, como a dureza com que interpretou e fez valer a seu favor o estatuto do Senado, que prevê sessão fechada e voto secreto no julgamento por quebra do decoro parlamentar. O que se esperava? Que o acusado facilitasse a tarefa para os acusadores? Assim como fizeram os deputados que conseguiram uma liminar para assistir ao julgamento, a imprensa poderia ter usado os 120 dias entre o pedido de abertura do processo e a realização da sessão para assegurar na Justiça a presença de jornalistas no plenário.


Capa de revista não é prova


O Brasil tinha o direito de ver e ouvir diretamente dos julgadores as razões pelas quais decidiram, em maioria, poupar temporariamente o mandato do senador. A República deveria ter em seus registros todos os detalhes do julgamento, porque se trata da História do Brasil. Renan Calheiros dificilmente escapará dos próximos processos. Ele ainda terá que responder por acusações muito mais graves, e com evidências mais concretas do que a correção de suas finanças particulares. E o país haverá de comemorar se, provada sua culpa, ele for escorraçado de Brasília.


Mas o julgamento deverá ocorrer dentro das regras, no ambiente soberano do Senado. Por mais suspeitas que se possam lançar sobre muitos parlamentares, aquela ainda é casa maior do Legislativo. A não-condenação de Renan não significa que a República ficou perneta. As manchetes dos últimos dias são apenas a repetição de um mantra que pode induzir a emoções fortes de indignação, mas não ajuda a entender como funciona uma democracia. As notícias têm sido nada mais do que a busca de novas metáforas para a mesma e imutável opinião.


A imprensa bem que poderia fazer a lição de casa, ajudando a desvendar a verdade, em vez de amplificar o coro dos histéricos. E lembrar que recorte de jornal ou capa de revista não é prova em nenhum tribunal sério.


 


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Jornalista