A Folha de S.Paulo publicou, nos dias 31/05 e 01/06/2009, mais uma rodada de pesquisas do Instituto Datafolha sobre os cenários para as eleições de 2010 e avaliação de governos. O enfoque do jornal trouxe à lembrança o Planeta Diário, que, lá pelos idos de 1985, com a ironia habitual, noticiou o falecimento de um dos próceres da ditadura militar com uma de suas manchetes mais famosas: ‘Médici morre, mas passa bem’. Pois bem, dessa vez ninguém morreu e nem houve ousadia semelhante da Folha, mas a leitura que o jornal faz das pesquisas bem que sugere algo na linha ‘Serra patina, mas dispara’ ou ‘Serra cai, mas voa’.
A fama de ‘serrista’ da Folha vem se espalhando e, de fato, o governador de São Paulo não pode reclamar do jornal, que se esmera em ressaltar resultados positivos e em polir os deméritos que o eleitorado eventualmente venha a debitar de seu cacife político. Foi assim no último ranking de governadores, de março deste ano, quando Serra perdeu posições e o jornal tratou de ressaltar que sua popularidade havia subido.
O que vale, dessa vez, é que o Datafolha foi a campo para saber em quem os brasileiros pensam em votar em 2010 – no Brasil e em São Paulo –, o que pensam de um terceiro mandato para Luiz Inácio Lula da Silva e como avaliam o presidente e o governador José Serra (nesse caso, apenas os paulistas responderam, claro). Para as perguntas iniciais, o Datafolha apurou dois fatos que valem notícia: a ministra Dilma Rousseff encurtou em oito pontos percentuais a distância que a separa de Serra (ela subiu, ele caiu); e cresceu o número de eleitores que aprovam o terceiro mandato. No mais, os outros pré-candidatos ficaram onde estavam nas pesquisas anteriores, oscilando dentro da margem de erro e com pequenas modificações nos cenários.
Tarefa da oposição é difícil
O jornal não pode brigar com os fatos, mas pode lê-los de maneira, digamos, alternativa. Em primeiro lugar, o jornal optou por destacar o tema do terceiro mandato – um fantasma que ronda o cenário político brasileiro, mas com pouquíssima chance de se materializar –, com direito a editorial e a avaliação do governo Lula, em detrimento do crescimento da ministra, este, sim, o cenário mais plausível. Depois, tratou de amenizar com as sutilezas habituais o fato incontestável de que Serra caiu e Dilma subiu. E evitou um ‘cruzamento’ das três informações: estão em alta o terceiro mandato, o governo de Lula e sua candidata.
Na matéria sobre 2010, especificamente, a manchete foi correta: ‘Distância entre Serra e Dilma cai 8 pontos’. Nos subtítulos, porém, o jornal sonega a informação de que o governador caiu. Diz apenas: ‘Diferença entre tucano e petista diminuiu de 30 para 22 pontos; ministra subiu de 11% para 16%; governador de SP tem 38%’. O leitor vai saber que Serra caiu três pontos em relação ao levantamento anterior no terceiro parágrafo, mas fica sabendo também, no oitavo parágrafo, que ‘apesar de ter perdido três pontos, Serra ainda é o nome eleitoralmente mais forte da oposição ao presidente Lula’.
A Folha, com seu passado de coragem e combatividade, bem que poderia testar uma outra análise desses números. O que a pesquisa Datafolha mostra, na verdade, é que o presidente Lula estaria, hoje, com todos os talheres e todos os queijos nas mãos para manter seu grupo no poder. A abordagem sobre nova eleição para ele – ‘Hipótese de 3º mandato de Lula divide eleitorado’ – é tecnicamente correta, já que 47% apóiam e 49% reprovam a tese, mas omite o fato de que a rejeição era de 65% há 18 meses. Logo, a tarefa da oposição – e de Serra – é difícil, apesar da liderança atual.
Áreas bem avaliadas são ressaltadas
Já nas suas versões da internet (Folha Online e UOL), durante boa parte de domingo o enfoque foi para outro lado, com um determinismo assustador: com Aécio, o PSDB perde a eleição. Ou seja, baseado em pesquisa realizada a mais de um ano da eleição, o grupo Folha já sabe que o governador mineiro será derrotado. E vale lembrar que a pesquisa do Datafolha continua devendo algumas informações vitais para uma análise mais clara, tais como os índices de conhecimento e de rejeição dos pré-candidatos entre aqueles que realmente os conhecem bem e por que há um cenário com Ciro e Aécio, sendo que o primeiro já disse que não concorrerá com o segundo?
Apesar dos atenuantes e da abordagem, o fato é que Serra não ficou ‘bem na foto’ com a pesquisa publicada no domingo. Na segunda, porém, ele ganhou seu quinhão. A Folha destacou: ‘Aprovação dos paulistas a Serra atinge 56%’. No subtítulo: ‘As áreas mais bem avaliadas do governo de São Paulo, segundo pesquisa Datafolha, são cultura, esporte e educação’.
O uso do verbo ‘atingir’ é totalmente desproporcional ao resultado medíocre (56%) de aprovação. Ele cabe, isso sim, nos resultados obtidos pelo presidente Lula, já que traz em si um sentido de ‘alcançar’ patamares extraordinários, fora do comum, aliás em perspectivas extremas de sucesso ou de fracasso. Para os eleitores não familiarizados com números de pesquisas, o verbo induz uma compreensão equivocada de que o resultado é muito bom. Veja que o jornal evitou publicar no mesmo dia os números de Lula e de Serra.
Além de ser um resultado mediano, a notícia deveria ser calibrada pelo fato de a aprovação de Serra ter oscilado três pontos percentuais em relação à pesquisa anterior, pouco acima da margem de erro, que é de dois pontos percentuais. Além disso, contrariando sua prática, o jornal ressalta as áreas bem avaliadas no subtítulo, em vez das que obtiveram resultado negativo, como a segurança pública que, reconheça-se, foi tratada em matéria secundária à parte.
Influência difícil de negar
Para completar, o governador foi brindado com uma verdadeira pérola do jornal. Ao tratar as intenções de voto para o governo do estado em 2010, o jornal transformou o líder disparado, Geraldo Alckmin, em mero apêndice do governador. Alckmin já foi governador, candidato à presidência e, mais recentemente, à prefeitura de São Paulo. Tem um eleitorado originalmente forte e conta com o recall das últimas campanhas, liderando as consultas prévias há tempos.
Mas, ao ler a Folha, logo na abertura da matéria, o leitor fica sabendo por linhas tortas que a razão de seu desempenho é outra: ‘Quatro meses após ter assumido um cargo de primeiro escalão no governo de José Serra (PSDB) em São Paulo, Geraldo Alckmin ampliou ainda mais sua dianteira na corrida pelo Palácio dos Bandeirantes’, diz o jornal. Para reforçar, mais adiante repete-se: ‘Em março deste ano, quando o Datafolha realizou o primeiro levantamento para a sucessão ao governo do estado, o atual secretário de Desenvolvimento de Serra variava de 41% a 46% das intenções de voto, e a petista atingia 13% no principal cenário (os dois apresentados ao eleitor) – portanto, a diferença entre eles era de 28 pontos percentuais e agora está em 32.’
Para completar, o Datafolha sonega ao eleitor um cenário com a participação de Serra como candidato à reeleição, algo plenamente possível e que, seguramente, deixaria o governador realmente contente. Na espontânea, ele aparece com 11% das citações, seguido de Alckmin, com 8%. Ou seja, Serra apareceria com uma liderança incontestável num eventual cenário de pesquisa estimulada. Então, cabe a pergunta: por que o Datafolha não especula essa hipótese? Será que já tem a certeza de que Serra só disputa a presidência?
Num trecho da reportagem, que chega a ser constrangedor e contraria as regras básicas do jornalismo, o jornal opta por fazer uma apaixonada defesa do governador. O jornal resolveu ‘explicar’ porque a área de educação (onde o governador enfrenta sérios problemas) tem uma boa avaliação da população: ‘Nesta última área, Serra tem se empenhado pessoalmente, com visitas regulares a escolas, onde ele próprio ministra aulas e conversa com professores.’
Inacreditável!
Finalizando, pode até ser que tudo isso seja coincidência, que não haja nenhum interesse de fundo nas opções do jornal e que tudo não passe de uma opção editorial – ainda que contestável. Mas está cada vez mais difícil negar a influência de Serra sobre o noticiário do jornal.
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Advogado, Belo Horizonte, MG