Inédito, inusitado, insólito, mas perfeitamente natural nestas paragens amenas. O protesto do bispo d. Luiz Cáppio contra a transposição do rio São Francisco pode dar em nada. Ao longo de 10 dias, o governo ficou assustado, a igreja constrangida e a sociedade em suspenso diante da mortificação do religioso.
Todos respiraram aliviados na tarde de quinta-feira (6/10), em Cabrobó, ao ser anunciado o acordo entre o ministro Jacques Wagner, das Relações Institucionais e o sacerdote franciscano. Uma hora depois, a concordata já estava sendo contraditada com igual desconfiança pelas partes.
D. Cáppio entendera que o governo havia se comprometido a suspender o início das obras da transposição enquanto o projeto fosse debatido pela sociedade. Seu interlocutor, o ministro Wagner, rebateu: ‘Você ouviu alguém falar em suspensão ou adiamento [das obras]?’ (Folha de S.Paulo, 7/10, pág. A-15).
Ao ser informado, o bispo reagiu: ‘Se [o ministro] disse isso, deu uma declaração mentirosa… Se eu não confio nele e ele não confia em mim, nunca haverá entendimento…’
O ajuste não foi documentado apenas apalavrado e consta que compreendia os seguintes pontos: 1) prolongar o debate antes o início das obras; 2) assegurar 300 milhões de reais por 20 anos para a revitalização das águas do São Francisco; 3) encontro do presidente Lula com o bispo tão logo se restabeleça.
A base do acordo é, portanto, o debate. O religioso não quer fatos consumados nem desenvolvimento autoritário, quer progresso com consenso. O governo tem pressa, o São Francisco é o santo padroeiro da campanha da reeleição. Por isso, já no fim da tarde da quinta-feira (6/10) emitia um documento assinado pelos três ministros (Marina Silva, Ciro Gomes e Miguel Rosseto), até então rigorosamente mudos, tentando mostrar que o recém-batizado ‘Projeto São Francisco’ é algo maravilhoso, esplêndido, porque oferece água para todos etc., etc.
Questão única
A proclamação interministerial só foi publicada nesta sexta-feira por um dos três jornais nacionais, O Globo, não como informação mas como artigo, em sua página de opinião. A rápida manobra serve como amostragem da semântica oficial. Para os entusiasmados estrategistas do governo a tripla manifestação significa um debate, para os mais céticos impõe algumas perguntinhas incômodas.
Por que razão os ministros só quebraram o voto de silêncio depois do trauma da greve de fome e não antes? O debate vai resumir-se à distribuição de notas oficiais, assumidas ou disfarçadas? E em que foro travar-se-á este debate – na mídia, no Congresso? Teresa Cruvinel em sua coluna diária foi categórica: ‘Os meios de comunicação trataram superficialmente do assunto, o Legislativo também’ (O Globo, 7/10, pág. 2).
Uma Câmara desmoralizada (do alto ao baixo clero), tem estofo para organizar um debate sério, prolongado, sobre a questão do Velho Chico? O Senado controlado por dois coronéis, José Sarney e Renan Calheiros, tem credibilidade para ir fundo nesta questão?
A mídia tem condições de investir espaço, tempo e recursos para sustentar uma discussão, desprovida de emoções, necessariamente semi-árida? Uma consulta popular conseguiria sintetizar uma questão tão complexa numa pergunta para ser respondida com ‘sim’ e ‘não’? Por que razão o ministro Ciro Gomes convida a CNBB para um segundo encontro – esta seria uma questão religiosa? Diante disso, cabe perguntar: o governo está mesmo interessado em abrir-se ao debate, sem truques marqueteiros?
O bispo prontificou-se a sofrer e, eventualmente, até a morrer contra a transposição e pela revitalização do rio São Francisco. Diante da reprovação teológica dos superiores caiu em si, aceitou o debate como moeda de troca. Confia nos interlocutores mas está disposto a retomar a greve se o acordo não for cumprido – não pode frustrar aqueles pelos quais fez o protesto.
Na verdade, o debate irá resumir-se a uma única questão: depois do jejum, o religioso aceitará uma pizza?