‘O interesse de Lula prevaleceu’, copyright O Povo, 16/5/04
‘O desfecho da crise entre Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil, e Larry Rohter, correspondente do The New York Times (NYT), foi, na minha avaliação, uma forte demonstração de que o atual governante brasileiro coloca seus interesses pessoais acima do que se pode definir como legítimos interesses do País. Desde o anúncio da decisão do governo brasileiro de cassar o visto de Rohter, representando, na prática, sua expulsão, que tive oportunidade de participar de inúmeras discussões, grande parte delas com jornalistas, nas quais me posicionei favoravelmente à adoção da medida extrema. Considerava, e ainda considero, que a matéria publicada pelo NYT no último domingo, dia 9, nos ocasionou um sério prejuízo, não apenas ao senhor Lula, justificando uma punição àquele que a assina, no extremo do que as condições legais permitissem. Foi decepcionante tomar conhecimento, na sexta-feira à noite, de que o Presidente aceitara uma retratação simulada do jornalista norte-americano, dera o assunto por encerrado e ele não mais será responsabilizado pelo seu ato irresponsável na forma de jornalismo. Quando defendi a medida anunciada pelo governo, o fiz acreditando que tinham sido considerados os prejuízos que a veiculação da tal matéria trouxe ao Brasil e, naturalmente, imaginava que os problemas por ela trazidos ao cidadão Lula da Silva estavam relegados ao plano secundário que a circunstância exigiria. Vi, afinal, que estava enganado. Lula não poderia, em meu nome e de outros cidadãos que se consideraram atingidos pela matéria, dar a crise por encerrada da forma como o fez.
A expulsão que considerava acertada
A idéia de que as grandes decisões nacionais estão entregues a um chefe de Estado alcoólatra permanecerá como dúvida para muitos dos que leram o texto do NYT. O presidente Lula, se decidida a punição do jornalista em nome dos interesses maiores do País, não poderia voltar atrás sob pena de demonstrar, como o fez, falta de aptidão para a defesa do interesse nacional. A histérica reação, nos meios jornalísticos e políticos, deveria ser combatida com demonstrações claras de que estavam prevalecendo, naquela ocasião e naquelas circunstâncias, razões de Estado. A tese, sei, não é de fácil defesa. Lula transformara numa espécie de unanimidade contra a unanimidade a favor obtida quanto à matéria que o apresentava ao mundo como um alcoólatra. Os dez segundos de folga conseguidos junto à oposição, enquanto havia apenas a matéria, romperam-se a partir de quando surgiu o comunicado oficial de que o Governo havia decidido cancelar o visto de permanência de Rohter no Brasil. A partir de então, o mundo voltou a desabar sobre o Palácio do Planalto e vozes iradas, nem todas legítimas para fazê-lo, passaram a detectar na medida gestos de autoritarismo, intolerância, revanchismo pessoal, pra falar apenas dos argumentos mais sérios utilizados. Ou seja, perdeu-se o objeto principal a ser debatido e que, no entendimento pessoal que construi acerca do caso, justificava a opção adotada, e depois suspensa, extrema que fosse. Larry Rohter não foi impedido de escrever o que escreveu. Usou seu direito, estava sendo responsabilizado por ele, no limite das condições legais. É certo que assim seja.
Liberdade, responsabilidade e a rima
A única manifestação pública que detectei, entre jornalistas, favorável à medida inicial foi a do presidente do Sindicato dos Jornalistas do Ceará, Fred Miranda. De resto, pelo que li e daquilo que consegui extrair em vários contatos pessoais, o ato foi visto como um grave erro político. É inegável que existia um preço político a pagar com a expulsão do jornalista americano, mas, da mesma maneira que Fred Miranda, entendia que o Governo acertava ao decidir pagá-lo. A matéria não investe apenas contra o cidadão Lula, dentro de uma perspectiva que lhe permitisse uma reação legal para reparação pessoal de imagem e que lhe desse direito a parar o processo na hora em que considerasse conveniente. O texto vai direto na função pública que hoje ele ocupa, vinculando o tal hábito de beber em demasia às suas decisões e atitudes como Presidente da República. Cabia uma decisão em nome do Estado e ela havia sido tomada. Muitas vezes, o que é lamentável, argumenta-se com o direito à liberdade de imprensa para se defender o direito à irresponsabilidade. Armadilha na qual há tempos deixei de cair.
Para Wall Street, tudo como antes
É preciso que haja disposição para enxergarmos a questão a partir de um ponto de vista que considere o Estado, além do governante. O Brasil, hoje, depende de maneira decisiva de credibilidade internacional para o seu cotidiano administrativo-financeiro, pois o capital especulativo ainda representa seu maior sustentáculo, por mais indesejado que seja, volátil que é. Nada há de extraordinário em se imaginar que a matéria do NYT nos causou um sério dano ao informar àquele cidadão de Wall Street, de cujas opções depende o destino diário de bilhões de dólares, que o homem que decide pelo Estado brasileiro o faz sob o efeito do álcool. Isto, a partir de um texto que junta pedaços desconexos de notas de colunas e declarações soltas do ex-governador Leonel Brizola para justificar a conclusão e, pior, estabelecer uma falsa premissa de que o grande debate nacional do momento envolve a atividade etílica do presidente Lula. Até o domingo passado, pelo menos, não era verdade. Larry Rohter tinha, claro, o direito de escrever o que quisesse, ao seu jornal caberia decidir se era conveniente publicar o material, como o fez, mas, na mesma linha, o governo do Brasil poderia buscar para o caso uma punição que fosse justa e proporcional ao prejuízo ocasionado pelas decisões de ambos, jornalista e jornal. É o que considero ter sido feito. Até que surgiu, na noite de sexta-feira, um pedido de desculpas que só o presidente Lula e assessores conseguiram enxergar para, como sempre acontece entre nós, lamentavelmente, encontrar-se um ‘jeitinho brasileiro’ de dar o episódio por encerrado.
Com todo respeito às republiquetas
O Povo tratou do assunto em seu editorial da última quinta-feira, dia 13, fazendo eco à voz geral de que a expulsão era um erro político, falando em atropelo dos princípios regentes da liberdade de expressão, considerando que se estabeleceu uma onda de suspeita sobre o compromisso do atual governo com as liberdades fundamentais, enfim, avaliando, aquela altura, que a emenda saíra pior do que o soneto. Na verdade, esta tese, que resume grande parte do que se escreveu e disse nos meios jornalísticos nos últimos dias, embute uma idéia equivocada de que melhor seria deixar mesmo pra lá, fazer as reclamações protocolares de praxe, se satisfazer com a forte solidariedade interna. Prefiro remar contra esta maré, defendendo a medida exemplar inicial adotada como a mais correta. Agora que está todo mundo achando que parar o processo foi melhor, inclusive muitos que defendiam a decisão anterior, permanecerei abraçado ao meu entendimento de que o governo Lula agira acerto antes e age errado agora. O desfecho é, neste ponto darei razão aqueles que usaram o termo ao longo do debate, próprio de uma Republiqueta de Terceiro Mundo, cujo governo não sabe zelar pelo interesse nacional e a sociedade não consegue enxergar quando ele está em jogo.’