Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Guerra do Rio, a imprensa e o ódio de classe

Se a primeira página de um jornal expressa o que, no entendimento do jornal, aconteceu de mais importante no dia anterior, devemos concluir que os dois fatos mais relevantes da quarta-feira (22/11), para O Globo, foram o assassinato da ex-mulher do sócio de uma poderosa empresa brasileira de expressão internacional, num sinal de trânsito no Leblon, e a tentativa de assalto a um prédio na Avenida Vieira Souto, em Ipanema. Os dois eventos ocupam mais da metade da capa da edição do dia 23 e as três primeiras páginas internas da editoria Rio, de um total de nove.


À parte o alarme implícito na associação dos dois fatos (se vamos à rua, podemos ser mortos; se ficamos em casa, podemos ser assaltados – e, na atual conjuntura, nem nos resta a famosa saída do aeroporto…), seria possível e razoável questionar os critérios de edição do jornal. Afinal, dois dias depois, a morte de uma menina que brincava num dos acessos à Favela do Jacarezinho não mereceu qualquer menção na capa, que tratava da ‘guerra do Rio’ e destacava a reação de um policial que aproveitou a folga para ir a um shopping na Barra e baleou um assaltante que o abordou no pátio do estacionamento: o alerta era para as perspectivas de aumento dos casos de roubo nesse período de excitação consumista das festas de fim de ano. Poderíamos, portanto, questionar os critérios, mas seria ocioso: pessoas importantes e áreas nobres da cidade terão sempre prioridade na pauta de jornais de referência. Cidadãos e zonas de segunda classe serão tratados como tais.


A correta tradução


A importância relativa das pessoas também pode ser amplificada: a vítima do assalto no Leblon era uma mulher rica, mas separada do marido há mais de 20 anos. O marido é sócio de um dos maiores grupos de siderurgia do mundo e seu irmão, presidente da empresa, vinha freqüentando as páginas dos jornais devido a especulações sobre nomes para o Ministério da Fazenda no novo governo. Então o jornal foi buscar uma foto em que o casal, ainda unido, aparece sorridente e de copo na mão, numa dessas reuniões elegantes da alta sociedade. A foto é de 1983.


Mas o que importa principalmente não é nada disso. É o desdobramento do caso, que no dia seguinte ocupa espaço ainda maior.


Cercado pela massa cinzenta de texto e por imagens coloridas, o cartum se destaca na capa: debaixo da foto principal, que mostra a prisão do jovem assassino, o quadrado branco reproduz as três letras da cidade, a letra do meio em forma de traço vertical composto por marcas vermelhas de balas. A síntese é perfeita: ‘cidade partida’, um Rio de sangue.


A correta tradução dessa metáfora, porém, não está na manchete, mas na chamada ao lado: ‘Jovens entre a vida e a morte’. Não jovens de classe média, como se costuma supor até mesmo pela forma de nomear – pois os outros, já se sabe, são ‘menores’ –, mas moradores de favelas, mortos de maneira violenta: executados pela polícia, em confronto com policiais, em confronto com grupos rivais ou no decorrer de alguma ação criminosa.


‘Todos eles no paredão’


O Globo de sexta-feira (24/11) estabelece dessa forma a hierarquia relativa entre os fatos: destaca os desdobramentos do assassinato da mulher rica e investe mais uma vez na campanha em favor da redução da maioridade penal em mais uma denúncia contra o Estatuto da Criança e do Adolescente, apresentado como salvo-conduto para os crimes mais bárbaros. O que se insinua na manchete – a confissão do crime pelo jovem, como forma de inocentar o próprio irmão, maior de idade e igualmente suspeito –, torna-se explícito na página interna que acusa o ‘crime sem castigo’. A matança nas favelas, previsivelmente, só ganha alguma importância quando transborda para o asfalto: são três páginas para a violência no Leblon contra uma para a tragédia cotidiana nos morros.


Uma análise ‘técnica’ dirá que é assim mesmo, que o jornal noticia o que seu público quer saber; e naturalmente o público leitor de O Globo não quer saber como vive a sua faxineira, o servente do seu prédio, o vigia do seu condomínio, o funcionário do supermercado, o garçom dos bares e restaurantes, o policial, o flanelinha, o pequeno malabarista mambembe no sinal de trânsito: esse público paga seus impostos e acha que basta.


Ora, não basta. E é justamente isto o que um jornal precisaria deixar claro, se pretende algum dia cumprir sua missão histórica de esclarecer o público. Precisaria expor o abismo social que se aprofunda a cada dia entre nós, e abandonar o cinismo que traveste, a pretexto do ‘mero’ relato de fatos, o cultivo do ódio de classe detonado toda vez que um crime violento afeta algum membro da nossa melhor sociedade numa área nobre da cidade, e que tantas vezes resvala para o racismo mais elementar, pelo motivo óbvio da origem étnica majoritária de quem comete esse tipo de crime.


‘Tem que botar todos eles no paredão e fuzilar’, resume um leitor na edição online do jornal, simplificando e radicalizando os muitos comentários indignados que clamam por medidas repressivas mais duras, sem perceber que todos eles já estão nesse paredão há séculos, como indica, muito palidamente, a acanhada chamada de capa sobre os meninos que ‘tombaram’ na guerra do tráfico.


Resposta elementar


Em suma, o jornal precisa demonstrar a seus leitores que se eles não querem saber como vive essa gente acabarão descobrindo da pior maneira.


Insistir no contrário é insistir numa orientação ideológica que fomenta o ódio e dissemina o medo. Pode ser perfeitamente coerente com o projeto neoliberal que leva o Estado a cancelar investimentos sociais para comprometer-se pesadamente na repressão a essa massa de marginalizados gerada pelo próprio sistema e que se avoluma nas nossas metrópoles.


Mas essa opção não resiste à crítica mais singela. Um exemplo claro é a campanha recorrente do jornal pela limpeza das ruas – limpeza do lixo humano que prolifera nos nossos cartões-postais, dormindo ao relento em plena luz do dia, cheirando cola, embriagando-se, deambulando com seus trapos e sucata e agredindo a paisagem. ‘Turismo quer choque de ordem’, clamava a manchete da página de abertura da editoria de cidade em 4 de outubro, sobre foto de uma negra, ‘moradora de rua’, dormindo de bruços na areia de Ipanema, debaixo do sol da manhã, envolta num cobertor e cercada por caixas de papelão e alguns cocos verdes.


É claro: a cidade precisa estar bonita, atraente e segura para os turistas. Será possível, porém, pensar em segurança para os turistas se não houver segurança para os próprios moradores? A resposta é elementar, a não ser que se pretenda fazer desta cidade uma ilha da fantasia.


Exclusão o tempo todo


(Provavelmente é o que se pretende mesmo, quando as autoridades falam em escoltar os visitantes que desembarcam no aeroporto internacional, para evitar a repetição de casos como o recente ataque ao ônibus repleto de ingleses. É claro que isso dá a medida do descalabro a que chegamos, mas o jornal se contenta em publicar esse disparate, e em momento algum acusa a enorme agressão à cidadania que essa proposta representa).


Porém, se, em vez de apelarmos para o ‘choque de ordem’, resolvêssemos indagar ‘para onde vai essa gente?’, estaríamos fazendo a pergunta fundamental para o enfrentamento dessa tragédia cotidiana e exigindo uma resposta adequada tanto para os que sonham com a eliminação – a qualquer título – da chamada ‘população de rua’ quanto para os que desejam erradicar as favelas para ver brotar ali novamente a exuberância natural das nossas matas e o canto dos passarinhos.


Garotos marginais assaltando e matando nos sinais de trânsito ou fazendo seu malabarismo mambembe, catadores de papelão e alumínio que se abrigam sob as marquises, indigentes que perambulam pelas ruas – são tantos os indesejáveis que gostaríamos que, de alguma forma, desaparecessem da nossa frente. Impossível não pensar para onde iriam, depois da solução mágica. Porque é impossível pensar em cidadania quando uma parcela significativa da população não tem onde morar ou mora em condições inaceitáveis, não tem instrução adequada nem perspectivas de emprego. E porque é menos ainda possível pensar em inclusão fomentando a exclusão o tempo todo.


À espera do MP


Jornais em má condição financeira costumam apelar para recursos inescrupulosos com o objetivo de chamar a atenção e, claro, reduzir o encalhe. Assim talvez possa ser entendida a atitude de um mais que centenário e outrora respeitável jornal do Brasil quando resolveu publicar, sem tarja, na capa de sua edição de domingo (26/11), a foto do jovem suspeito do assassinato da rica senhora do Leblon. Dois dias antes, o mesmo jornal protestava, com a foto enorme do rapaz recortada sobre fundo violeta: ‘Este homem confessou o assassinato de Ana Cristina’ – ‘Mas é menor e seu rosto não pode ser mostrado’.


A atitude criminosa foi apresentada justamente como um ‘protesto’ contra a impunidade atribuída ao Estatuto da Criança e do Adolescente, classificado no editorial como ‘lei a serviço do crime’.


Que o jornal resolvesse utilizar esse assassinato para desencadear mais uma campanha contra o Estatuto, estaria no seu direito; que aproveitasse para estimular o pânico, criando uma vinheta sobre o ‘paraíso ameaçado’ e anunciando que o ‘crime toma conta da cidade toda’, estaria apenas agindo da maneira rotineiramente irresponsável característica da nossa imprensa diante da ‘questão criminal’; que decida ignorar os limites legais e decretar o ‘fim da impunidade’ por suas próprias páginas, é absolutamente insuportável.


Resta saber o que fará o Ministério Público diante disso.

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Jornalista, professora de Jornalismo da UFF