Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Gunther Grass enfrenta os jornais

É da maior importância a matéria de Marcio Damasceno enviada de Berlim e publicada com destaque no Estado de S.Paulo (domingo, 1/4, caderno ‘Cultura’, págs. D8 e D9) [ver abaixo a íntegra do texto]. E não apenas pelo assunto.


Mais uma vez comprovou-se a grande besteira dos grandes veículos brasileiros em meados dos anos 1990, quando suprimiram os correspondentes no exterior. Foi uma decisão conjunta, tipo pool, para evitar rachas. Com base numa ‘pesquisa’ com validade questionável e patrocinada por um lobby estrangeiro, decidiu-se acabar com a cobertura internacional singular.


Empresários e executivos de jornais achavam caro manter correspondentes exclusivos nas principais capitais do mundo e decidiram usar as agências ou os serviços dos grandes veículos mundiais. A tal pesquisa afirmava que os leitores de jornais e revistas não se interessavam por política internacional, preferiam as rubricas de Medicina, Saúde e Ciência. Ainda existem alguns espécimes de correspondentes estrangeiros em jornais, TVs e portais. São aves raras.


A oportuníssima matéria do Estadão revela a indignada reação do Nobel alemão Gunther Grass ao linchamento que sofreu da mídia do seu país, em agosto passado, quando admitiu que na juventude fez parte da SS, a tropa de choque nazista.


Autos-de-fé


Grass respondeu agora, final de março, com um sutilíssimo e altivo livro de versos e imagens (é um excelente desenhista), Dummer August (o ‘tolo agosto’, esclarece o jornalista). Também poderia ser entendido como ‘As palhaçadas de agosto’, porque naquele mês iniciou-se a cruzada contra o escritor pela confissão tardia, primeiro por intermédio do arrogante FAZ (Frankfurter Allgemeine Zeitung), depois pelo resto da mídia alemã e internacional.


No poema que dá nome ao livro, Grass reclama contra o ‘julgamento sumário dos justos’ e revolta-se contra o papel de palhaço imposto pela mídia. Na ilustração, colocou na própria cabeça o ‘chapéu pontudo dobrado com o jornal de ontem’. É o clássico chapéu do palhaço originário da comédia dell’arte, mas quem conhece a iconografia inquisitorial ibérica percebe que se trata também do chapéu pontiagudo usado nos autos-de-fé pelos acusados de heresias. ‘O cão me olha inquisidor’ (a tradução é do repórter).


Olheiros atentos…


A mídia alemã aplicou à resposta de Grass o tratamento convencional: desprezo ao reclamante, qualquer que seja, mesmo com um Nobel no peito. A mídia está acima do bem e do mal, inquestionável. O escritor maltratado pela incompreensão não baixou o nível – ao contrário, respondeu com notável elegância. Assumiu-se como Dichter, poeta & artista.


Talvez dentro de alguns dias os correspondentes do Le Monde, El País, The Guardian ou New York Times em Berlim se lembrem de comentar a reação do escritor-agora-poeta-desenhista. Se já o fizeram, ainda demorará algum tempo até que os olheiros dos nossos jornalões resolvam reproduzir suas matérias. O Estadão com o seu correspondente-colaborador chegou antes.


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Grass usa versos como terapia para se recuperar de escândalo


Marcio Damasceno, de Berlim # copyright O Estado de S.Paulo, 1/4/2007


Ela parecia ter-se diluído nos últimos meses, a controvérsia em torno de Günter Grass que pegou os alemães de surpresa em agosto. Depois do grande debate sobre o passado do autor, que omitiu durante cinco décadas sua participação na tropa de elite nazista Waffen-SS, quase ninguém mais falava nele, a polêmica parecia dar sinais de cansaço. E seu livro de memórias, o motivo do escândalo, se apagou das principais listas de best sellers. Mas agora o prêmio Nobel de Literatura de 1999 contra-ataca, literalmente.


Ele lança, sete meses depois, sua resposta ao que classifica como uma ‘campanha massiva da imprensa’ da qual, alega, teria sido vítima na época do escândalo. ‘Quiseram me deixar mudo como um morto’, repete sempre Grass, como um mantra, nas suas entrevistas. ‘Mas não conseguiram’, costuma acrescentar. Dummer August (tolo agosto, em tradução livre) é um livro de poesias, litografias e desenhos. O texto é salpicado de termos amargos como vergonha, ferida, dor, inimigos, desgosto, decepção.


Enquanto nas quase 500 páginas de Beim Hüten der Zwiebel (descascando a cebola, tradução literal, a ser lançado no Brasil pela Record no segundo semestre), Grass recordou a inocência do garoto que segue o nazismo sem fazer questionamentos, nas 80 páginas de Dummer August, mostra-se um velho ranzinza que retorna às trincheiras para abrir fogo contra a imprensa.


O título de sua nova obra é um trocadilho. É o nome pelo qual os alemães chamam o mais ingênuo e atrapalhado personagem da tradição circense, o palhaço dummer August (o tolo Augusto). Günter Grass se mostra, assim, como alguém exposto ao ridículo, acusa a mídia de tê-lo feito de palhaço, de transformá-lo num bobo da corte. O auto-retrato dele com cara de derrotado sob um chapéu pontudo, ilustração para o poema que dá nome ao livro, é um dos desenhos mais expressivos do livro. Mas outra possível tradução para o título é ‘agosto tolo’, lembrando ter ocorrido no mês ‘maldito’ o escândalo que acompanhou o lançamento de Beim Hüten der Zwiebel.


Na autobiografia, Grass contou suas lembranças da infância em Danzig, as vivências como soldado, o sofrimento da fome enquanto prisioneiro de guerra do Exército americano e o período em Paris, quando transferia para o papel O Tambor. A narrativa vai até o ano do lançamento desse que se tornou seu primeiro e mais famoso romance. Mas a passagem em que revela ter formado os pelotões da Waffen-SS foi, sem dúvida, o detalhe que causou todo o alvoroço e as altas cifras envolvidas nas vendagens. A primeira edição desapareceu das estantes em poucos dias, ao mesmo tempo em que o livro ia em tempo recorde para o cume das listas dos mais vendidos.


Mas desta vez o barulho parece não ser tão grande. A recepção dos veículos do país a Dummer August foi relativamente fria, e os jornais não deram à sua poesia ressentida nem a metade do destaque obtido pelas confissões tardias do autor. Lançado na Alemanha na penúltima semana de março, o livro não galgou a relação dos mais vendidos – pelo menos por enquanto. As poesias de Dummer August são, quase todas, curtas, contam impressões de seus passeios no campo, nos bosques da região em que reside, descrevem seus exercícios na arte da culinária – uma de suas paixões – e refletem sua relação com a morte.


Entretanto, o tema dominante é mesmo a relação do escritor com a imprensa durante a discussão que invadiu a mídia alemã no segundo semestre do ano passado. É um desabafo em versos, lamentos que costuram as folhas do início ao fim, emoldurando aqui e ali, em garatujas, os desenhos saídos da pena de Grass.


As críticas, o destaque dos cadernos culturais dos periódicos alemães, tudo isso tem sido classificado pelo autor repetidamente como uma ‘encenação mediática’, uma ‘tentativa de destruição’, que o ‘magoou profundamente’, a ponto de, na época, ter chegado a pensar em deixar a Alemanha, como declarou recentemente.


Günter Grass alega ser um injustiçado, se diz vítima de uma inquisição moderna e usa de sarcasmo para ir contra seus ‘inimigos’, leia-se ‘imprensa’. Seus críticos se perguntam se o Nobel, sempre tão hábil em lidar com a mídia, não tinha idéia da onda de discussões que sua confissão tardia ia causar e por que prefere morder como uma fera acuada em vez de reconhecer um erro. Em vez disso, parte para o ataque, agora na forma de arte literária e gráfica. No livro, chama seus críticos ora de ‘heróis’, ora de ‘imaculados com o dedo em riste’, sempre lançando mão de jogos de palavras com criatividade limitada. Num poema descreve sua luta contra eles como se participasse de uma briga de boxe, em que o autor é nocauteado e sai do ringue carregado, sob vaias e comentários maldosos dos adversários. ‘Acabado,/ ele está finalmente acabado,/concordam /nossos comentadores literários.’


Principal alvo de Grass entre todos os veículos de mídia é o diário Frankfurter Allgemeine Zeitung, para o qual o escritor deu a entrevista em que falou pela primeira vez de seu passado na Waffen-SS. O jornal é citado em várias folhas, em parte de forma camuflada, ou nem tanto. ‘Por isso eu já digo agora, onde – em Frankfurt -/o infame e poderoso /Tira altos lucros e espirra fezes secas em redemoinho’, diz um poema parodiado de quadras de autoria de nada mais nada menos que Johann Wolfgang von Goethe, bardo maior da língua alemã.


O processo de criação para o livro teve, segundo ele, um valor terapêutico, foi um fator importante para superar a situação do escândalo. ‘Poder escrever poemas é maravilhoso. A poesia é um instrumento de auto-reconhecimento e autodefesa, útil mesmo contra uma campanha (feita contra mim). Eu me sinto melhor desde então. Se tivesse me calado, teria sido muito difícil para mim’, observou Grass numa das entrevistas para promoção da obra durante a Feira do Livro de Leipzig.


A mesma encenação mediática parece também trazer lucro ao escritor. Caso contrário, ele não teria atendido a tantos eventos promocionais na semana retrasada em Leipzig. A ponto de a Feira do Livro de Leipzig deste ano – segundo maior encontro do mercado literário alemão, depois de Frankfurt – ter sido definida por alguns jornais de ‘festival Grass’. Nela, o intelectual acionou mais uma vez a metralhadora giratória contra a mídia, chegando a cometer um deslize, lançando mão de um termo comum no vocabulário da ditadura do 3º Reich. Na hora de xingar seus desafetos, referiu-se à imprensa alemã como entartet (degenerada), palavra com que os nazistas rotulavam obras produzidas por artistas judeus. Ele se viu forçado a recuar pouco depois. ‘Está bem, eu corrijo a palavra’, voltou atrás numa entrevista posterior.


E a imprensa alemã não perdeu tempo para alfinetar o mestre, que completa 80 anos em outubro. ‘Günter Grass abre mão da rima, mas se os versos dele podem ser chamados de poesia, é uma outra história. Muitas das linhas são apologéticas demais, auto-confiantes demais, destinadas demais à afirmação de si próprio’, acusa o crítico do diário Süddeutsche Zeitung, apelidando a coleção de estrofes de ‘cartas do leitor em forma lírica’.


***


Da confissão em agosto até o atual contra-ataque


Histórico — A revelação de Grass veio a público na entrevista publicada em 12 de agosto pelo jornal Frankfurt Allgemeine Zeitung (FAZ), quando do lançamento da autobiografia Beim Hüten der Zwiebel. Ninguém havia se dado conta da ‘bomba’ contida nas suas recordações apesar de, semanas antes da entrevista, o livro ter sido distribuído à imprensa. Grass admitia haver servido não como um soldado qualquer na 2ª Guerra. Ele fora, por meses, membro da tropa da elite nazista Waffen-SS, responsável por crimes de guerra, entre eles massacres de povoados inteiros e fuzilamentos sistemáticos de mulheres e crianças.


A impressão na Alemanha era que acabava de cair o mito Günter Grass, um dos mais barulhentos e severos defensores dos valores éticos, sempre pronto a condenar os mínimos desvios de conduta de políticos e intelectuais do país. Muitos se perguntavam o porquê de o escritor ter omitido por tanto tempo fato tão importante do currículo, mesmo que a passagem pela Waffen-SS tenha sido, como alegou, involuntária e não tenha disparado um tiro sequer no campo de batalha. ‘Foi a vergonha de ter estado na Waffen-SS. O motivo de (meu silêncio) ter durado tanto tem a ver com o fato de não saber de que forma deveria escrever sobre isso. E não dava para ser através de simples declaração, devia ter forma literária. Eu tinha que alcançar uma idade definida para achar essa forma, que é escrever um texto autobiográfico’, justificou, na Feira do Livro de Leipzig.


Essa a explicação dele desde agosto. Agora, tem atacado a imprensa, em especial o FAZ. Em janeiro, ganhou na Justiça ação contra o jornal, proibindo a publicação de duas cartas suas ao ex-ministro da Economia alemã Karl Schiller, dos anos 60. Nelas, Grass apelava ao amigo para que revelasse à opinião pública seu envolvimento com o partido nazista. Ele mesmo só teria coragem de fazê-lo mais de quatro décadas depois. (M.D.)


***


Poemas


Dummer August
Wie während Kinderjahren der Clown
Im Zirkus Sarrasani,
so gleichen Namens der Monat.
Faxen machen,
Grimassen schneiden,
wie einst mit vierzehn.
Schon komme ich mir komisch vor,
gestellt vors Schnellgericht
der Gerechten.
Und auch der spitze Hut, gedreht
Aus der Zeitung von gestern,
kleidet, weil allzeit gültig.


Tolo Agosto
Como o palhaço
nos tempos de criança
Lá no circo Sarrasani,
Com mesmo nome do mês.
Fazia palhaçadas,
Fazia caretas,
Como quando tinha catorze.
Me sinto estranho,
Levado a julgamento sumário
Dos justos.
E também o chapéu pontudo dobrado com jornal de ontem,
Cai bem, pois vale
em qualquer época.


Fragen
Was tun?
Mit der Zeitung – doch mit welcher?
das Gesicht schützen?
Oder den Leser bitten,
das Buch aufzuschlagen,
damit er mich finde,
verloren in einer Zeit,
die nicht enden will?
Jetzt über ich Schritte
Auf abschlüssigen Wegen,
weiß nicht die Richtung.
Fragend blickt mich
der Hund an.


Perguntas
O que fazer?
Com jornal – mas com qual? –,
proteger o rosto?
Ou pedir ao leitor,
para abrir o livro,
Para que ele me encontre,
perdido num tempo
que não quer terminar?
Agora dou passos
Por caminhos escarpados,
não sei por onde ir.
O cão me olha inquisidor.


[Tradução de Marcio Damasceno]