Em artigo publicado no caderno ‘Mais!’ da Folha de S.Paulo (7/8/2005), o politólogo e militante político César Benjamim referiu-se a um texto de Roland Barthes sobre o catch a propósito das sessões protagonizadas pelo deputado Roberto Jefferson na Câmara dos Deputados. Nesse texto, que consta do volume intitulado Mitologias, Barthes analisa a luta do catch como uma espécie de teatro popular em que se encenam o Bem e o Mal, encarnados em personagens folhetinescos (o vilão, o mocinho etc.), provocando as identificações projetivas e a fácil tomada de partido por parte do público.
Nada é real na encenação, nem a luta, nem o caráter afixado dos personagens, exceto as emoções dos espectadores, capazes de se indignar verdadeiramente com os golpes baixos dos vilões e de aplaudir até às lágrimas a performance dos mocinhos. E essa catarse teatral não deixa de suscitar efeitos político-sociais, na medida em que, pelo menos ali, com a vitória dos ‘bons’, o Bem se realiza sem a distância das abstrações jurídicas. As quedas e os murros na cara substituem longos discursos sobre a moralidade, concretizando o difícil equilíbrio dos pratos na balança da Justiça.
Comentários de botequim
Não escapou à imprensa o jogo cênico do deputado Roberto Jefferson, o principal autor das denúncias que deflagraram a atual crise política. Não foi, porém, suficientemente destacada toda a retórica implícita em sua atuação.
Haveria aí material para uma longa dissertação sobre figuras intuitivamente empregadas pelo deputado, como a hipotipose, uma figura de enunciação que consiste num conjunto variado de procedimentos destinados a tornar uma narração viva e realista, com o objetivo de provocar o riso ou pequenas emoções.
Os silêncios curtos, os olhares fixos (geralmente dirigidos às câmeras de televisão), a entonação excessiva eram, assim, recursos comuns, ajudados por acumulações, que se desdobravam em polissíndetos (repetições enfáticas), epitrocasmos (invectivas expressivas), metáboles (acúmulo de sinonímias) e outras.
Ainda mais marcante, porém, era a presença constante daquilo que, em retórica argumentativa (argumentos associativos e dissociativos), se chama de autofagia, isto é, a incompatibilidade de um princípio com suas condições de enunciação, suas conseqüências ou suas condições de aplicação.
No clássico silogismo ‘Epimenedes, o cretense, diz que todos os cretenses são mentirosos’, a autofagia é evidente: a idéia ‘come a si mesma’, na medida em que impossibilita o estabelecimento da verdade, geralmente levando seu enunciador ao ridículo. Como determinar o verdadeiro no palco televisivo das comissões parlamentares de inquérito? Não seriam todos ali ‘cretenses’?
Esta era a dúvida que perpassava os comentários daqueles que, em pé nos botequins ou refestelados nas poltronas de suas casas, compraziam-se com o espetáculo escancarado da política autofágica. Assumindo retórica e folhetinescamente a própria culpa, mas inculpando os parceiros, Roberto Jefferson, tal e qual um combatente de catch (de olho machucado, inclusive), ofereceu-se às identificações projetivas do público leitor e telespectador, conquistando até mesmo um certo número de simpatizantes, como se pôde verificar em sites (Orkut, por exemplo ) na internet.
Repetição melosa
Catch-as-catch-can, agarre como puder agarrar, é o que de fato significa o nome da luta encenada. Claro que os espectadores estão a par do quanto de encenação presente no espetáculo, mas ainda assim o ‘Mal’ se visibiliza e se produz o pathos coletivo de sua purgação imaginária.
Daí, a pergunta da repórter que deixou meio sem jeito o presidente da República: ‘Presidente, há males que vêm para bem?’ A suposição parte de um senso comum – ou de um bom senso – segundo o qual o acontecimento do Mal seria o pretexto para a restauração de uma ordem ética preexistente, na qual o Bem estaria a cavaleiro.
Seria aqui o caso, talvez, de citarmos um outro texto de Barthes, no mesmo Mitologias, em que ele define o bom senso como ‘o cão de guarda das equações pequeno-burguesas: ele fecha todas as saídas dialéticas, define um mundo homogêneo, onde cada um está em sua casa, protegido dos tormentos e das fendas do ‘sonho’ (entenda-se uma visão não contábil das coisas)’.
Caberá de agora em diante à seriedade da imprensa complementar o cipoal das informações e dos incidentes que se multiplicam com matérias mais analíticas e mais consistentes sobre o fato social por trás desses acontecimentos, estabelecendo as relações de causa e efeito entre o desgaste político-social da estrutura eleitoral mantida pelas oligarquias no poder e os incidentes que trazem a tona esses aspectos da corrupção sistêmica.
Não basta a repetição melosa, e também retórico-espetacular, dos textos de indignação. Esse é um show de catch sem graça nenhuma, decididamente triste para a cidadania.
Mas, claro, há malas que vêm para bem.
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Jornalista, escritor, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro