A repórter se aproxima, cria o suspense básico, informa que tem uma pessoa soterrada a menos de três metros de seus pés, aumenta o suspense carregando aflição na voz, aproxima o microfone do chão sem deixar de dizer que ‘já posso ouvir a voz de uma pessoa, de uma mulher, tem uma mulher aqui embaixo!’
Quantas dessas cenas não assistimos nas últimas semanas? É inegável que havia compaixão nas cenas gravadas pela repórter. Também é inegável que ela já intuíra que aquelas cenas iriam ocupar o melhor espaço na escalada de notícias da noite, levadas ao conhecimento público por seu principal telejornal. Reportagens como esta correram o mundo e imagens das vítimas, vivas ou mortas, fizeram o mesmo trajeto.
Foi assim que o mundo tomou consciência da existência do Haiti. Em nosso imaginário o Haiti assume as feições de pessoa ferida, impotente, entre a vida e a morte, cercada por destroços de construções e também nas informações dando conta que 150 mil a 200 mil pessoas morreram no país em decorrência do terremoto do dia 12/1/2010. As imagens na televisão capturam aquela poeirinha fina, agregando ao ar respirado partículas de areia, cimento e cal. Repórteres incluem em suas matérias frases, antes impactantes e agora absolutamente normais, óbvias como: ‘Aqui, no que foi um prédio de seis andares, deve haver algumas centenas de pessoas soterradas’ ou frases mais elaboradas e não menos dramáticas como ‘Estamos em um imenso cemitério… Porto Príncipe está todo assim!’ A linha que separa jornalismo de sensacionalismo foi, é e continuará sendo tênue, muito tênue.
Nas última três semanas o trabalho da imprensa se resumiu a mostrar imagens da destruição da capital haitiana. Devastação e caos. Resgate das vítimas. Ajuda humanitária a caminho. A cobertura brasileira abriu capítulo especial: estamos de luto também por Zilda Arns, Luiz Carlos da Costa e mais 19 militares que atuavam na Força de Paz mantida pela ONU em Porto Príncipe. A imprensa potencializou as dificuldades do país: para lidar com sua reconstrução e demonstrou que o país caribenho apresentava sérios ‘defeitos’ de construção.
Terra de ninguém. Será mesmo?
A história do Haiti verá o terremoto como evento que desnudou de vez a extrema pobreza e miséria em que o país se encontrava aprisionado. É corrente a percepção que se o Haiti fosse menos pobre os efeitos da tragédia seriam imensamente menores. O Haiti aparece no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) relativo a 2008 na 148ª posição, sendo a nação mais pobre das Américas, com uma expectativa de vida de 60,78 anos e analfabetismo atingindo 52,9% da população. Dos quase 9 milhões de habitantes, 80% vivem abaixo da linha da pobreza. Nos últimos anos, empresas multinacionais, principalmente têxteis, se instalaram no Haiti atrás de mão de obra barata.
Um mundo tão permeado de boas intenções, tão rápido em oferecer (e enviar) ajuda humanitária, tão sensível a ponto de oferecer aporte financeiro de monta para a reconstrução do devastado país parece deslocado ou incompetente para criar plano de reconstrução do país calcado em princípios básicos de auto-sustentabilidade.
O Haiti precisa ser ajudado não apenas por ter sofrido terremoto de magnitude 7 na escala Richter, mas porque tem uma história marcada por outras tragédias. No século 19 três potências européias invadiram o Haiti – a França em 1869, a Espanha em 1871 e a Inglaterra em 1877; no século 20 os Estados Unidos invadiu o Haiti três vezes: 1914, 1915, permanecendo até 1934; e novamente voltou a invadi-lo em 1969. Cada invasão externa assemelha-se a uma fábrica de saques, ruínas, destruição, dor e morte. Os haitianos foram, portanto, vítimas de terremotos morais provocados por outras nações tiveram sua auto-estima como nação e povo reduzida a nota de rodapé da História.
É bom recordar que uma nação não invade outra, mobiliza tropas, gasta fortunas com deslocamentos e guerras unicamente pelo prazer de invadir. Um país é invadido porque tem riquezas a serem saqueadas, possui localização geográfica estratégica e sua população – militar e civil – é despreparada para o exercício bem sucedido da autodefesa. As invasões, isoladamente, não foram suficientes para exterminar o Haiti e na entressafra de invasões estrangeiras o povo haitiano foi vítima de ditaduras sanguinárias instaladas pelo médico François Duvalier, o temido bicho-papão (tonton macoute) conhecido como Papa Doc (1957 a 1971), sucedido por seu filho Papa Doc (1971 a 1986). Ajoelhado, ante o pedestal dos dominadores estrangeiros, o Haiti viu sua história desaparecer no ralo. E de forma quase ininterrupta.
A imprensa substitui olho humano por olho de vidro
A imprensa vem informando que o maior desafio pós-terremoto é levar a ajuda humanitária aos milhões de necessitados, no menor espaço de tempo possível. E até a guerra de bastidores envolvendo brasileiros e americanos para determinar qual país seria o responsável pela coordenação geral das operações recebeu amplo espaço na imprensa. O Brasil tinha 1.266 militares no Haiti, subiu para 2.600. Os Estados Unidos que tinham menos que 1.000 soldados no país apoiando a Força de Paz da ONU para Estabilização do Haiti (Minustah) elevou este contingente para 20.000.
Considerando que a embaixada dos EUA em Porto Príncipe era a terceira maior embaixada americana no mundo e tinha 3 mil homens, o número de americanos no Haiti ronda os 25.000. Neste ponto a imprensa tem deixado vazios abissais como o de não apresentar tabelas comparativas com número de militares, por nacionalidade, chegando e saindo do Haiti, e inexistência de ‘boxes’ no estilo ‘Entenda o caso’ para informar sobre a história do país e a relação destes com algumas das potências estrangeiras que no passado ali estiveram como invasores e agora como pontas-de-lança de ajuda humanitária pós-terremoto.
A cobertura privilegia o superficial, as imagens da tragédia, as dificuldades para a vida voltar ao normal na capital haitiana; denúncias sobre seqüestro de crianças vem sendo veiculadas. Mas nenhuma emissora de televisão e nenhum jornal de renome chamaram a atenção de sua audiência e de seus leitores para o fato de que os 20.000 soldados norte-americanos no Haiti, país com 9 milhões de habitantes, perfaz proporção superior às forças conjuntas dos Estados Unidos e da OTAN no Afeganistão nesse primeiro ano do governo Obama: 70 mil para uma população de 28 milhões. A imprensa parece ter perdido nos escombros de Porto Príncipe sua capacidade de análise – afinal, em um cálculo preliminar constata-se que numa base per capita haverá mais tropas no Haiti do que no Afeganistão, zona de guerra declarada já há bastante tempo.
Para além das imagens de mães em transe acalentando filhos mortos em seus braços, cenas que perfuraram minha alma como se fossem afiados ganchos, a imprensa apresentou ao mundo o Haiti como um país, como um Estado falido, uma nação desgovernada por completo, como se um terremoto – por maior que fosse seu grau na escala Richter – tivesse o poder letal de transformar em ruína a capacidade de um povo de usufruir o direito à autodeterminação. Nesse sentido, vemos o terremoto como pano de fundo para que se passe à opinião pública mundial o conceito de que o Haiti é incapaz de se organizar e se governar por si só. Está, então, desfraldada a perversa tese de que o Haiti necessita ser monitorado e seu bem-estar passa por um regresso aos tempos dos protetorados. E tudo isso para o seu bem. Os haitianos que vi nos telejornais eram todos eles sobreviventes da catástrofe.
Procuram-se: 8.800.000 haitianos
Onde se encontram os demais oito milhões e oitocentos mil haitianos, esse formidável contingente populacional não afetado diretamente pelo terremoto? Faltam imagens em minha mente de haitianos não afetados e falando de seu país. É preciso destacar que a população do Haiti ultrapassa aos 9 milhões. Onde estão professores, engenheiros e médicos haitianos? E seus comerciantes e donas de casa? Por que não foram alcançados pelos diligentes profissionais da imprensa? Será que não deveríamos saber a opinião dos próprios haitianos sobre como entendem que deveria ser conduzido o trabalho de reconstrução de Porto Príncipe?
Como a população vê a ação de militares estadunidenses ao empreender o resgate de seu país tão terrível e tragicamente empobrecido? Eles entendem que se trata, desta vez, de uma ação humanitária ou de uma nova invasão? Alguém conhece algum jornalista haitiano que tenha se pronunciado sobre o dia seguinte, sobre a semana seguinte, após o terremoto? A cobertura sobre o Haiti, como um todo, nos subtraiu a voz e o pensamento dos haitianos. E chega de mais matérias tratando apenas do sofrimento humano.
É mais fácil, claro, tirar um peso da consciência assinando cheque de 375 milhões de dólares ou de 50 milhões de euros do que propor e executar políticas públicas de inclusão social e educacional, diminuir sua elevada taxa de mortalidade infantil e criar mecanismos para elevar a qualidade de vida do povo haitiano. Quanto a este aspecto penso que a imprensa tem um importante papel a desempenhar trazendo tais temas para a agenda relacionada à cobertura do Haiti nos próximos meses.
Existem muitas maneiras de ajudar o povo do Haiti, mas nem só de pão vivem as vítimas de catástrofes, sejam estas naturais ou históricas. Veículos de comunicação poderiam influir no futuro do Haiti se mantivessem ‘acesas’ reportagens críticas ao mero assistencialismo – sábio e oportuno num primeiro momento e danoso como forma de minar a capacidade de seu povo – e colocassem na agenda do dia a necessidade de que governos e organismos multilaterais agissem de forma ousada e consistente para reconstruir a confiança dos haitianos de que são eles quem melhor poderão… escrever seu próprio futuro.
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Jornalista e escritor, mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter