Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

História (quase) soterrada

É prudente comentar rápido a extraordinária operação-resgate dos 33 mineiros chilenos, antes que ela seja soterrada por desdobramentos tão banais e previsíveis quanto inevitáveis. Alguns, aliás, já estão em curso. Cada sobrevivente já foi presenteado com um iPod de última geração, cortesia de Steve Jobs, e recebeu os primeiros US$ 10 mil de um empresário-celebridade local. Assim, nada impede que ‘los 33’, ou pelo menos alguns deles, se materializem nas ilhas gregas para uma semana de sol e mar. O convite da mineradora Elmin Hellenic dá direito a acompanhante. Talvez continuem a circular ostentando os óculos escuros que lhes deram proteção crucial ao emergirem da caverna. Só que, nesta segunda encarnação, não será mais por necessidade e sim por contrato com a sortuda Oakley. A indústria da celebridade e do entretenimento tudo fará para se apropriar deste butim duplamente valioso e raro: os mineiros chilenos são, ao mesmo tempo, um material ainda bruto e já no ápice da admiração global.

Da última vez em que se teve notícia de uma tragédia de grupo confrontado com recursos extremos para sobreviver – chegaram a praticar o canibalismo – o mundo era outro. Ainda não tinha se tornado esse mundinho atual, conectado em tempo real e captado 24 horas ao dia por imagens ao vivo. Naquele outubro de 1972, quando um Fairchild F-227 da Força Aérea do Uruguai se espatifou nos Andes com 45 passageiros a bordo, o blackout de notícias durou 72 dias. Tragédias em terras remotas naquela era pré-celular, pré-internet, pré-GPs só podiam ser acompanhadas pela imaginação de cada um. E, quando os 16 sobreviventes de 1972 emergiram como assombrações das montanhas, refugiaram-se no isolamento interior apropriado à época e à dimensão do drama. A primeira narrativa de um dos protagonistas, membro do time uruguaio de rúgbi que estava a bordo, levou 34 anos para ser publicada (Milagre nos Andes, de Nando Parrado).

Antes disso, existia apenas o livro reportagem do escritor Piers Paul Read, transposto para o cinema em 1993 (Vivos). Foi preciso esperar 37 anos para ler a história completa, narrada por todos os que saíram com vida da tragédia. Lançado no Brasil quatro meses atrás, A sociedade da neve, de Pablo Vierci (Companhia das Letras), baseia-se no premiado documentário do uruguaio Gonzalo Arijón, de 2007.

Fé e fé

A saga chilena de 2010 é um marco, justamente, pelo despojo. Na era em que tudo precisa ser transformado em espetáculo, prevaleceu a sobriedade andina dos mineiros e suas famílias, somada à eficácia cirúrgica dos técnicos e autoridades. Para os quase 1.500 repórteres e cinegrafistas desembarcados no deserto de Atacama, habituados a atropelar modos e maneiras em nome do furo jornalístico, o espaço foi estreito.

Ao contrário do que ocorreu em janeiro nos escombros do Haiti, ou na cobertura dos deslizamentos provocados pelas chuvas de Niterói, em abril, o vale-tudo para captar uma frase, suspiro ou imagem de sobrevivente não teve vez. Nenhum microfone à queima-roupa, nenhuma imagem invasiva. Pela primeira vez em muito, muito tempo, a mídia teve de se contentar em assistir à distância a epopeia que fora cobrir. E reaprendeu a olhar.

– De onde estou só consigo ver a imensa grua que opera o cabo de aço umbilical do resgate – informou um tarimbado enviado da CNN, para decepção inicial de quem comandava a cobertura de Nova York. Emissoras de alcance global como a americana CNN ou a britânica BBC estão habituadas a fincar barraca em locais de acesso garantido à notícia. Madrugada adentro, o mesmo repórter passou a se balizar por uma simples roldana branca, visível à distância no cenário rochoso, que fazia as vezes de coração e pulmão da grua. E surpreendeu-se. ‘Cada vez que essa simples roldana se põe em movimento, sinalizando que um dos mineiros está sendo içado de mais de meio quilômetro de profundidade, fico emocionado’, admitiu.

A decisão de buscar onde fosse a tecnologia de ponta e os profissionais mais aparelhados para o êxito da operação foi exemplar. Brocas fabricadas na Pensilvânia, componentes para a grua produzidos em Shangai, médicos da Nasa, psicólogos da Marinha chilena – toda uma linha de montagem de emergência tomou o rumo do Atacama.

No epicentro da operação, com imagens ininterruptas geradas pelo governo, só havia espaço para quem tinha motivo claro para estar ali. Daí a escassez de políticos. À parte o empresário Sebastian Piñera, primeiro presidente conservador (e bilionário) do país desde a redemocratização, e dois de seus ministros essenciais (Minas e Saúde), apenas a primeira dama Cecília Morel. Nenhum assessor no papel de papagaio de pirata.

Nenhuma retórica descabida. Esposas, uma ou outra amante e parentes dos 33 sobreviventes aguardavam a vez do reencontro com comedimento.

A rudeza daquelas vidas não se desmanchou diante das câmeras. Não se viu debulhar de lágrimas nem se ouviram prantos que costumam brotar na televisão. Também por parte dos mineiros resgatados, os primeiros passos de retorno à vida não conseguiam ser ensaiados. Quando o mais idoso do grupo, Mario Gómez, de 63 anos, se desvencilhou do primeiro abraço, encolheu o corpo e se ajoelhou para uma oração muda, os brasileiros, brindados na véspera com cenas explícitas de devoção eleitoral na basílica de Nossa Senhora Aparecida, puderam diferenciar fé de fé.

Poucos ossos

Quando tudo acabou em triunfo, o presidente Piñera permitiu-se avançar na retórica. Com visita oficial a Londres prevista para esta semana, concedeu entrevista à BBC proclamando o nascimento de um novo Chile, orgulhoso e unido pelo resgate de seus trabalhadores-heróis. Quanto ao retrato antigo, o de país-ditadura, o mundo já podia aposentá-lo. Só que para os mineiros, filhos de mineiros e netos de mineiros de Copiapó, que esta semana entoaram o refrão CHI, CHI, CHI, CHI, LE, LE, LE a plenos pulmões, a história não cabe num porta-retrato. Luis Urzúa, o chefe de turno e líder do plano de sobrevivência dos soterrados, último a emergir da cápsula de aço pintada com as cores do Chile, é hoje um senhor de 54 anos. Quando adolescente, de 17, teve o pai sumido para sempre como tantos outros desaparecidos do regime militar.

E, segundo apuraram os repórteres Simon Romero e Pascal Bonnefoy, do New York Times, Copiapó como um todo carrega há 37 anos uma marca indelével da ditadura. Na madrugada de 17 de outubro de 1973, uma unidade militar comandada pelo general Sergio Arellano Stark pousou de helicóptero na cidade. Era a chamada Caravana da Morte, que percorreu o país praticando chacinas-relâmpago com finalidade didática: deixar claro quem passara a mandar no país. Em Copiapó assassinaram 16 homens, cujos corpos foram jogados numa das minas da região. Nas décadas seguintes, quatro cadáveres puderam ser resgatados, também de uma profundidade próxima dos 600 metros.

‘A diferença é que não precisamos de nenhuma cápsula Fênix II’, contou o filho de um dos mortos. ‘Usamos baldes para os poucos ossos que restavam.’

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Jornalista