Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Homem sem fome, jornalismo inapetente

O mestre iogue Prahlad Jani, da Índia, tem 83 anos. Afirma que há mais de 70 não come nada. E passa bem. Há poucos dias, ele se deixou internar num hospital na cidade de Ahmedabad, onde uma equipe de 30 médicos, escolhida pelo Ministério da Defesa indiano, dedicou-se a monitorá-lo minuto a minuto. Os resultados divulgados são simplesmente inacreditáveis: ao menos durante o período em que esteve sob vigilância, o religioso efetivamente não ingeriu nem expeliu coisa alguma.


Como? É verdade? Bem, quem quiser saber mais sobre a história talvez apanhe um pouco. As notícias são escassas e vagas. Há referências a Prahlad Jani em sites variados, mas a internet é generosa e abundante em relatos que não merecem crédito. De calúnias contra os candidatos à Presidência da República (fantasias de mau gosto) a depoimentos minuciosos sobre excursões em discos voadores (mirações ‘do bem’), o inacreditável é o que não falta.


O caso do iogue, porém, foi registrado no Brasil em publicações sérias. Dou apenas dois exemplos. O Estado de S.Paulo, em sua edição de 11 de maio, deu poucas linhas a respeito, na página A20: ‘Iogue hindu não come nem bebe’. No sábado, a revista Época trouxe algo mais alentado: duas páginas com mais dados e algumas ironias – como chamar o iogue de ‘autossustentável’ e afirmar que, ao não comer nada, o mestre hindu realizou ‘o sonho de boa parte das mulheres’.


Saúde perfeita


Piadas à parte, das duas, uma: ou estamos diante de um embuste desprezível (e ainda não desmascarado) ou diante de um fenômeno que põe em xeque o que imaginamos saber sobre biologia. Difícil pensar num acontecimento mais interessante e de maior relevância. Mesmo assim, a maior parte da imprensa dá de ombros. A revista Época, que procurou apurar um pouco mais, foi ouvir o médico cardiologista Nabil Ghorayeb, do Hospital do Coração, em São Paulo, que descartou a hipótese sem a menor hesitação: ‘Isso não existe, você não pode ficar sem nutrientes. De algum lugar ele tem de tirar.’ É como se ele decretasse: se esse tal de Prahlad Jani existe de verdade, ele precisa ser ‘desinventado’ o quanto antes, pois não anda muito de acordo com os nossos cânones.


É claro que Ghorayeb tem sua razão: não há registro de uma célula que viva e se reproduza sem captar do exterior os tais ‘nutrientes’, devolvendo ao exterior, depois, os, digamos assim, dejetos. Mas, se o cardiologista está certo, esse iogue é um impostor? A incerteza do leitor aumenta.


De seu lado, Prahlad Jani está aí, imperturbável. Ele não está lá longe, na cidade indiana de Ahmedabad: está bem próximo, na página do Estadão e também nas duas páginas da Época. Ele foi registrado como um fato jornalístico, ainda que meio discutível. Aparece no noticiário com algum índice de veracidade. Mais ainda: vem sendo estudado por um grupo de cientistas, dentro de parâmetros metodológicos aparentemente rigorosos. E se aí está, com o estatuto de fato jornalístico, por que não surgem reportagens mais conclusivas sobre ele? Por que a indiferença?


É bom anotar, estamos falando de uma indiferença reincidente. Há poucos anos, em 2003, uma pesquisa semelhante com o mesmo personagem apareceu na nossa imprensa e, também naquela ocasião, nada mais se falou. Agora, nesta semana, ele reaparece. Com a saúde perfeita, afirmam os médicos que o examinaram. Mentira? Verdade?


Desejo de viver


Às vezes bate na gente a sensação de que o mais fascinante da existência passa a milhares de quilômetros dos jornais que a gente lê. Às vezes o leitor experimenta o incômodo de se sentir mais curioso do que o jornalista que é pago para informá-lo. Esse iogue vem para nos fazer experimentar o mesmo incômodo. Ou os jornais demonstram a farsa, ou têm de ir mais fundo. Quando não optam nem por uma alternativa nem por outra, parece que não se incomodam com aquilo que nos aproxima da fronteira do desconhecido, o que deveria ser parte da inquietação jornalística.


Há mais de 20 anos eu li pela primeira vez a comparação que depois se tornaria um lugar-comum nos debates sobre a mídia: uma única edição do jornal The New York Times contém ‘mais informação do que o comum dos mortais poderia receber durante toda a sua vida na Inglaterra do século 17’. A frase aparece no livro Ansiedade de Informação, de Richard Saul Wurman. Nunca acreditei muito nela, por um motivo elementar: o que os jornais chamam de informação é uma parte ínfima, exígua, das múltiplas manifestações com que fazemos contato diariamente. Quais eram as informações relevantes para um inglês do século 17? O dia em que as folhas começavam a cair das árvores? O sonho que ele teve na véspera? A gente não sabe – e esse tipo de coisa não sai no New York Times.


No mais, acreditamos que o desconhecido seja matéria para a ciência, não para o jornalismo. E quanto à ciência, ela mesma não passa de uma chama de vela tentando iluminar a escuridão, como Carl Sagan gostava de dizer. Em matéria de ciência, nós não sabemos quase nada. E em matéria de jornalismo, nós nos perguntamos menos ainda. Inclusive sobre ciência.


E então? Quem é esse homem que diz não precisar do ‘pão nosso de cada dia’? Por acaso ele sabe rezar o Pai-Nosso? Ou também não precisa? Num mundo sufocado pelas necessidades artificiais, em que vamos aos tropeções, em massas compactas de seres que se sentem solitários, famintos de afeto, de prazeres intoxicantes, de deuses que nos acudam, de um copo d´água, de uma esmola, de aparecer na coluna social fazendo caridade, de azeite ‘trufado’, qual o significado de um iogue que não sente fome? Será que ele sente desejo? Talvez até exista vida depois da morte, mas pode existir vida além do desejo de viver? Que pergunta nos espreita nos olhos plácidos de Prahlad Jani?


E que jornalismo é o nosso, que não encara essa pergunta?

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Jornalista, professor da ECA-USP