A Folha de S. Paulo publicou na primeira página, em 14 de junho, a imagem de um homem de paletó e gravata que comprava crack e o consumia no Centro de São Paulo. Dá perfeitamente para identificar o usuário. Houve uma tempestade de críticas (ver, neste Observatório, “Alguém como nós na Cracolândia”). A própria ombudsman, Suzana Singer, questionou no domingo seguinte: “Por que a Folha decidiu expor dessa forma um suposto viciado?”
A Secretaria de Redação respondeu: "A política do jornal vinha sendo não resguardar a identidade dos usuários de crack em locais públicos. Não vimos motivo para alterarmos o padrão porque a personagem, desta vez, vestia paletó e gravata".
Nos dias 15 e 16, cartas de leitores apoiavam ou questionavam a decisão editorial:
** “Mais fotos, por favor, muito mais fotos para chocar.”
** “Além de o exporem desnecessariamente, elas podem causar um estrago tão grande na sua vida como o uso do crack.”
** “Constantemente, a mídia retrata casos de anônimos não engravatados que acabam expondo suas vidas, honra e imagens ao incidirem voluntariamente em práticas ilícitas, inclusive durante a luz do dia. Parece-me que os ‘mal trajados’ não recebem a mesma manifestação de solidariedade, preocupação e defesa dirigida aos ‘engravatados’.”
** “Se o anônimo retratado está se drogando, onde está a informação disso? Seria porque pessoas bem-vestidas se curvaram às drogas? Minha solidariedade ao retratado.”
** “A Folha agora criminaliza os usuários de drogas e os expõe na Primeira Página?”
Ficha completa
Em 25 de julho, o Globo publicou reportagem sob o título “Metamorfose ambulante. Ao comparar fotos de sucessivas prisões, polícia mostra como usuários de crack definham”. A cena da foto principal, que ocupava meia página, acima da dobra, se passava no Jacarezinho, subúrbio do Rio. Rostos borrados de pessoas, algumas parecendo crianças, passando em fila indiana por uma ponte ferroviária sobre um riacho, conjuntos habitacionais ao fundo, no dia 12 de maio.
Abaixo da dobra, fotografados de perto, três homens e uma mulher, com nomes e sobrenomes na legenda. (Na versão online, mais fotos e nomes.)
Nos dias seguintes, não houve protesto nenhum de leitores do Globo. Por certo não havia ninguém de paletó e gravata entre os retratados – pessoas, como se diz no Brasil, “do povo”. Como os exibidos corriqueiramente em fotos e vídeos feitos em cracolândias do Brasil afora.
Circo de horrores
A essência da reportagem consistia em louvar o trabalho de uma delegada de polícia que fez um álbum com fotos de usuários “antes” (por ocasião da primeira prisão) e “depois” (ao serem novamente presos, semanas ou meses depois). Funcionariam como escarmento.
A iniciativa da delegada carioca não é exclusiva. Na seção Blogosfera da Veja (3/8), uma chamada para o blogue de Ricardo Setti apresenta fotos mais nítidas e mais dramáticas, sem os nomes das vítimas de drogas. Iniciativa do gabinete do xerife do condado de Multmomah, Oregon, EUA.
A intenção pode até ser boa, mas o resultado não é informado, nos dois casos. Se a chamada natureza humana não mudou recentemente, essas exposições ao opróbrio provavelmente têm efeito dissuasório nulo.
Uma coisa é certa: dá notícia. O velho circo de horrores.
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