Desde fins do século XIX, as empresas que editam os melhores jornais do mundo começaram a aprender a dividir seus funcionários em duas equipes bem diferentes: uma é a equipe dos jornalistas, que cuidam da área editorial (a ‘Igreja’); do outro lado, fica a área comercial (o ‘Estado’). O objetivo sempre foi o mesmo: assegurar um ambiente em que interesses de anunciantes ou financeiros não distorçam as pautas e o enfoque das reportagens. A partir do final do século XX, tudo passou a mudar muito rapidamente. Em algumas redações, o pessoal de marketing ou da publicidade chega a participar da pauta, e ninguém se sente traindo a confiança do leitor. ‘Igreja’ de um lado e ‘Estado’ de outro é coisa do passado? Ou a velha fórmula funciona para um tipo de jornalismo, mas para todos? Epa: mas será que existe mais de um tipo de jornalismo? Essas perguntas valem um artigo. Pelo menos.
Henry Luce (1898-1967), co-fundador da revista Time, levou a fama. Foi ele o principal defensor da ideia de separar o lado comercial (apelidado de ‘Estado’) e o lado editorial (a ‘Igreja’) na administração de Time Inc. – e sua persistência fez escola e deixou um legado que se estendeu para empresas jornalísticas em todo o mundo. Esse tipo de separação, às vezes mais, às vezes menos intensa, já existia antes dele, é fato. Mas, depois de Luce e de sua determinação em deixar sempre explícito que suas publicações existiam para servir ao interesse público, o método ‘Igreja e Estado’ virou um padrão. Ou, melhor: virou o padrão organizacional para gerir os negócios e preservar a integridade jornalística.
Antes de tudo, o que chama a atenção nas duas palavras escolhidas para nomear as duas metades de uma casa editorial é a metáfora que elas suscitam. É como se a antiga Time Inc. fosse um híbrido de céu e inferno: de um lado, frades entoando cânticos sob tetos góticos; do outro, políticos de cara feia urdindo negociatas inconfessáveis. Claro que não é nem era nada disso. Mesmo assim, a metáfora deixou marcas moralistas no imaginário de gerações e gerações de editores.
Ainda voltaremos a essas marcas. Antes de esmiuçá-las, contudo, convém começar pelo começo.
PARTE I
O começo é entender como é que surgiu a separação entre ‘Igreja’ e ‘Estado’ no ambiente da imprensa. Um modo simples de entender é tentar fazer com que a nossa imaginação volte no tempo e tente visualizar a vida como ela era no passado.
Pensemos numa empresa jornalística de perfil clássico, numa era remota. Pensemos numa grande revista, ou num grande jornal à moda antiga. São feitos em papel, letra preta sobre fundo branco. Entre o fim do século XIX e meados do século XX, irão prosperar e atingir o apogeu. Na redação, máquinas de escrever barulhentas e homens fumando com uma mão e amarrotando as laudas com a outra. Alguns passeiam com viseiras. Estamos num filme em preto e branco.
Naquela época, os melhores profissionais não se deixavam capturar por aqueles que, insidiosos ou melífluos, procuravam influenciar a livre formação da vontade do leitor. Jornalista que tinha a consciência heróica ou romântica de sua missão sabia muito bem: o leitor era seu patrão, ponto final. Ele era a ‘Igreja’, pois se encarregava dos assuntos da ‘alma’: a ‘alma’ do negócio, ou seja, a credibilidade do jornal.
Os patrões mais talentosos também sabiam. Seus clientes eram os leitores; os anunciantes apenas pegavam carona nessa relação de confiança. A sustentação essencial vinha do leitor, que só pagava pelos jornais porque acreditava que eles tinham um compromisso de lhe entregar um relato honesto sobre os fatos de seu interesse. O leitor sabia que os jornais podiam errar, mas confiava no propósito que eles tinham de procurar acertar. Por isso, pagava. Por isso, os negócios cresciam.
Na administração desses jornais, os assuntos mundanos, aqueles que não diziam respeito à ‘Igreja’, recaíam no outro departamento, o ‘Estado’. Era aí que os funcionários se descabelavam para ver como fechar a folha de pagamentos no final do mês, ou para fazer sair aquele financiamento decisivo, ou para vender anúncios. Eram eles que tinham que administrar a conversa dos representantes dos anunciantes, que tinham o péssimo hábito de perguntar se não havia um jeitinho de pautar uma matéria favorável ao seu produto. O pessoal do ‘Estado’ – isso naqueles tempos estamos aqui imaginando como tempos gloriosos – dizia que não, que não tinha jeitinho nenhum. Interesses comerciais não poderiam aterrissar na mesa dos editores, reservadas inteiramente às questões da ‘alma’.
Com essa mística, a velha analogia prosperou. Com o tempo, alguns se radicalizaram. Começaram a proclamar que era preciso erguer uma muralha da China entre a ‘Igreja’ e o ‘Estado’. Outros queriam elevadores separados: um para os contatos publicitários, outro para os repórteres. No nosso velho mundo ideal, a turma da ‘Igreja’ mal se encontrava com os funcionários do ‘Estado’, uns não davam bom-dia aos outros. Namorar, nem pensar. O lado da Igreja não tinha que se preocupar com ‘business plan’, e um gerente de marketing só ficava sabendo das notícias no momento em que a publicação ia para as bancas.
A credibilidade estava preservada para todo o sempre. O leitor sairia ganhando pelos séculos e séculos. Amém.
Ah, sim: e revoguem-se as disposições em contrário.
PARTE II
Acontece que os magnatas e os jornalistas não inventaram essa conversa de ‘Igreja’ e ‘Estado’ por amor à virtude. Fizeram isso apenas para ganhar mais dinheiro. O que, por sinal, não nega nada do que foi dito até aqui. Nada. O que se escreveu na Parte I deste artigo é verdadeiro. Mas o que vem agora, na Parte II, também é.
Voltemos então ao tema da metáfora, conforme prometido. De onde ela nasceu, todos sabemos. A separação entre Igreja e Estado, na construção da democracia, salvou vidas e instaurou o regime de liberdade religiosa. Graças a Deus, podemos dizer, nós vivemos em regimes democráticos que separaram Igreja de Estado. Graças ao filósofo inglês John Locke (1632-1704) e outros tantos, o Estado se tornou laico e, por ser laico, assegurou o direito de cada cidadão eleger livremente sua própria fé. A liberdade religiosa só existe porque o Estado é laico. Desde que a sociedade ganhou essa clareza, igrejas e estados – na democracia, bem entendido – existem em terrenos distintos. E foi exatamente desses terrenos diferentes que surgiu a comparação com o lado editorial e o lado comercial da empresa jornalística.
Como dizíamos, a metáfora nos trouxe um problema. Um problema de excesso de moralismo. Um problema que ‘não é nada bom para a nossa matéria’, como se ouvia em certas madrugadas na redação daquela revista semanal. Quando chamamos um departamento de ‘Igreja’ e outro de ‘Estado’, por menos que acalentemos uma sanha acusatória, fica no ar a impressão de que, no lado da ‘Igreja’, supomos não haver pecados e, do lado do ‘Estado’, não existiria chance alguma de salvação.
É claro, é evidente, é clamoroso que o mundo não é assim. Não é preciso ter notícias de nenhum escândalo de pedofilia praticada dentro dos domínios regulares do Vaticano para saber que o mundo não é assim. Os jornalistas da ‘Igreja’ não eram exatamente santos. Desde os tempos do grandioso World de Joseph Pulitzer, gostavam mesmo é de mundo cão. Esgueiravam-se como ratos no meio do lixo para criar as bases do que depois entraria para a história como o ‘yellow journalism’ (‘jornalismo marrom’). Nos órgãos de imprensa, a ‘Igreja’ nunca foi, jamais, uma sacristia de castos. Quanto ao ‘Estado’, de sua parte, até que tinha alguma compostura, aqui e ali.
Não obstante, a gente viu, em mais de uma ocasião, um subeditor obscuro caminhando rumo à lanchonete com ares de cardeal, levantando o nariz para diretores de publicidade, essa ‘escória’. Por essas e outras, a analogia de ‘Igreja/Estado’ gerou, na cultura do mercado editorial, uma considerável antipatia – muitas vezes, justificada.
O que não importa muito (só um pouquinho). O método ‘Igreja/Estado’ não surgiu para angariar simpatia, assim como não surgiu com propósitos de catequese. Ele não foi inventado para aplacar incômodos matutinos de consciências acabrunhadas. Nada disso. Ele só virou o padrão que virou porque dá lucro. Ele gera riqueza, ele funciona, apenas isso. As empresas que o adotaram alcançaram mais sucesso que as outras.
Esse dado é indispensável para que se possa desarmar a interpretação moralista, que introduz uma esquizofrenia autofágica na vida das empresas. Ninguém teria de ser gênio para saber que a lógica que conduziu à separação da empresa em duas áreas, a comercial e a editorial, tem seu alicerce numa racionalidade administrativa elementar. É apenas uma questão de foco. Um repórter preocupado em vender anúncio perde a clareza sobre o seu próprio papel, não vai vender anúncio nenhum, sem contar o fato de que vai poluir e rebaixar os padrões do protocolo pelo qual as estruturas eficientes vendem espaços publicitários. Do mesmo modo, um contato publicitário querendo interferir na condução de uma reportagem só faz ruído na redação. Falando francamente, pouca coisa aborrece mais um jornalista.
Foi por fome de dinheiro – e não por um surto inexplicável de caridade – que os bons empresários aprenderam o método Igreja/Estado. E ele dá certo porque traz dinheiro. A redação trabalha melhor, a área comercial corre mais solta, a vida flui com mais clareza e muito, muito mais eficiência. A escala do negócio cresce. A confiança do público se institucionaliza em credibilidade, e esta reverte em ganhos. Foi assim que surgiram os grandes impérios da imprensa. Foi exatamente assim, por mais que esses impérios tenham, em sua formação, capítulos de vício, de corrupção e de baixeza.
PARTE III
É bem o contrário: sem ética na imprensa, o lucro é curto. Como já se afirmou por vezes incontáveis – e ainda terá de ser reafirmado, por muitas mais – a ética da imprensa é parte constitutiva da saúde do negócio. Um empreendimento que vai bem não é necessariamente vicioso (às vezes é, mas não tenhamos isso como regra); jornalismo rigoroso, que não faz concessão e que não trai nem nas vírgulas a confiança que recebe do público, não é fonte de prejuízo, não é inimigo da prosperidade. Uma redação de brio, numa boa empresa, é a melhor receita de bons faturamentos. Os empresários mais preparados logo aprenderam a desconfiar do pessoal do ‘Estado’ que reclama em demasia da inflexibilidade do pessoal da ‘Igreja’, assim como aprenderam a se acautelar com editores que se esmeram em mostrar proficiência lingüística no jargão do ‘ibítida’.
A virtude na empresa jornalística corresponde ao interesse público, por certo. Mas isso não significa que ela seja inimiga de rentabilidade. Normalmente, ela remunera o capital. Nas empresas públicas – uma BBC, entre outras poucas –, a virtude gera valor na percepção do público. Dá retorno. A visão do método ‘Igreja/Estado’ como um campo de batalha, com duas falanges conflagradas, foi – e é – um dos equívocos mais melancólicos que já se cometeu – e se comete – no mercado editorial. É como se a ‘Igreja’ só tivesse que ser tolerada porque serve para maquiar a empresa com uma aparência de isenção, nada mais que isso. É como se o ‘Estado’ fosse o único adulto da brincadeira, como se só ele abrigasse as boas práticas que geram receita.
Com isso, o próprio conceito de Ética Jornalística se viu escanteado. A ética, na história da imprensa, existe para proteger a credibilidade. Pode-se resumir a ética, sem perda alguma, nessa única frase. Sem outros complementos. Tudo o que concerne à ética jornalística diz respeito à proteção da credibilidade do discurso jornalístico. E credibilidade, não custa repetir, tem imenso valor de mercado. É o cerne do valor em jornalismo. Fixemos bem esse ponto. A credibilidade – ou a reputação, como se diz, com mais frequência, na era digital – é o valor em torno do qual os demais se articulam. É para ela, credibilidade (ou reputação), que concorrem todos os serviços prestados ao público em matéria de informação jornalística. A excelência constrói e reconstrói a credibilidade e ela, credibilidade, depois, propulsiona o alcance social da excelência.
É verdade que o mesmo raciocínio vale para qualquer negócio, ao menos em tese. Mas aqui existe uma diferença mortal. A credibilidade, no jornalismo, depende da independência: a redação não pode ser – nem pode parecer que é – subserviente ao poder que cabe ao jornalismo investigar: o poder político ou o poder econômico, tanto faz. Isso porque a imprensa, que se estabeleceu nas democracias como um negócio independente, é também uma instituição da democracia. Antes de ser negócio, ela é instituição. Mais que negócio, é instituição. Ela é uma instituição que só vive se for independente, tanto do poder político quanto do poder econômico.
Aí é que entra, agora em outro nível, a compreensão das razões históricas que concorreram para que se erigisse esse método conhecido como ‘Igreja/Estado’: ele tem a função de proteger a independência editorial das pressões que ela pode sofrer de agentes que se encontram no interior da própria empresa jornalística. Exatamente por isso, aliás, a visão moralista e moralizante desse método encontrou terreno fértil: de fato existem, no interior de qualquer empresa jornalística, interesses que entram em conflito (o do leitor e o do anunciante, por exemplo). Esses interesses estão lá o tempo todo. Para quem insiste em ver as tensões sempre como uma polarização entre bem e mal, o bem e o mal lá estão, atuando 24 horas por dia. Por isso, enfim, é que a visão moralizante encontrou um terreno fértil no interior das empresas.
Por sua vez, esses interesses que entram em conflito dentro das organizações se enraízam em forças externas, que se estruturam fora das organizações. Esses feixes de interesse vêm, naturalmente, de fora para dentro. Não há como barrar o ingresso dos interesses numa corporação, seja ela pública ou privada, tenha ela fins lucrativos ou não. Pretender envolver a empresa de mídia com uma blindagem anticonflito de interesses é uma forma de neurose, ainda que bastante recorrente. Órgãos de imprensa têm paredes porosas – ou não são imprensa. A elas chegam e devem chegar todos os tipos de contradições que vicejam na sociedade. O que é possível fazer é administrar os conflitos, para que eles tenham vias regulares de solução, para que eles não se dêem sem que o público (o cliente) se dê conta, ou seja, para que eles não ocorram às escondidas do público e não venham, com o tempo, a matar de hemorragia a confiança do público. E, não custa insistir: esses conflitos não são duelos do vício contra a virtude, mas disputas entre interesses distintos, muitas vezes legítimos.
Pois então: a melhor forma de administrá-los é pelo método ‘Igreja/Estado’.
PARTE IV
Mas esse método, hoje, admite variações. Bem mais do que admitia antigamente. Pode-se separar a área comercial da área editorial de mil maneiras, assim como se pode fazer com que elas se aproximem de mil maneiras também, conforme o tipo de negócio e conforme o nível hierárquico (afinal de contas, na hierarquia organizacional, as duas funções precisam ‘fechar’ em algum comando, que fará, simultaneamente, as vezes de ‘Papa’ e de ‘Presidente’). Na Parte V deste artigo, logo adiante, falaremos um pouco mais sobre isso. Antes, convém recuperar o que um dos principais estudos recentes sobre a realidade das redações nos Estados Unidos tem a dizer sobre a atualidade das relações entre a ‘Igreja’ e o ‘Estado’.
Na edição de 2007 de Elements of Journalism (New York: Three Rivers Press – Crown Publishing Group, Random House), Bill Kovach e Tom Rosenstiel alertam para que a convivência difícil entre ‘Igreja’ e ‘Estado’ nos tempos que correm poderia ser, por assim dizer, ‘civilizada’. Eles não insinuam, nem de longe, que o compromisso com o interesse público deva ser relativizado. Sustentam que o jornalismo crítico e independente não pode permitir que interesses comerciais poluam a relação de confiança entre a redação e o público. Coerentemente, defendem que os valores do jornalismo independente, e somente eles, é que devem nortear a conduta de todas as áreas da organização. Ainda que as equipes comerciais e editoriais não se misturem no dia a dia, tanto uma como outra deveriam se pautar pelos mesmos princípios. Os critérios que devem decidir os impasses são critérios editoriais, não critérios de negócios.
Ora, mas isso não passa de tautologia, dirá alguém. Em princípio, é verdade, parece mesmo uma tautologia, conveniente para quem quer escapar ao debate. Afinal de contas, se o negócio das empresas de jornalismo (que têm, entre outros, veículos jornalísticos) é o negócio de bem informar o público, o melhor critério para o negócio só pode ser mesmo o critério editorial – e o melhor critério para o editorial só pode ser a saúde do negócio, em bases de integridade e credibilidade, naturalmente. Portanto, o critério editorial é igual ao critério de negócio. Nada mais tautológico. Mas há sabedoria na formulação de Kovach e Rosenstiel. Basta lê-la com mais atenção.
Ela ensina que a atividade jornalística não alcança a excelência se não deixar claro, bem no alto da escala de valores, a quem é que aquela empresa presta serviços. Aí é que está: ou ela bem trabalha para o leitor (internauta, telepectador, ouvinte etc), ou trabalha para o anunciante, ou, ainda, para seus donos ou financiadores (um banco que não quer aparecer, um agente do governo ou até mesmo uma igreja, aí em sentido literal). Se trabalha para o leitor, e sabe disso, a empresa deixa bem claros e públicos os parâmetros que ela segue. Nesse caso, está jogando limpo. Se, de outro lado, admite colaborar com os interesses do anunciante – sem deixar claros esses procedimentos para o público –, está tapeando seu cliente principal.
Por isso, nos dias que correm, dizer que os critérios do negócio, numa empresa jornalística, devem se subordinar aos critérios editoriais, não é apenas uma tautologia. A saúde de todo veículo dedicado a informar o público dependerá desse jogo limpo: o cliente (o que paga pela informação) precisa ter a segurança de que os conteúdos foram preparados segundo os seus interesses, não segundo ambições estranhas que não se deixam ver claramente. Sem isso, o vínculo de confiança tende a se deteriorar.
Enfim, os formatos e os protocolos das relações entre ‘Igreja’ e ‘Estado’ podem variar bastante, podem ser mais distantes em níveis hierárquicos mais baixos, podem ser mais próximas em outros níveis, mas, de algum modo, haverá sempre alguma separação entre as duas áreas. Se não, das duas, uma: ou o sucesso virá em doses tímidas, e por pouco tempo, ou o negócio de que estamos falando não é exatamente jornalismo.
No final do século passado, o diário Los Angeles Times anunciou que derrubaria o muro que separava a ‘Igreja’ do ‘Estado’, o que suscitou um bom debate. A partir daí, profissionais da área de marketing ganharam ingresso nas editorias para sugerir assuntos de pauta, numa drástica mudança de cultura. Depois disso, muitos solavancos se seguiram, entre eles os solavancos econômicos que alcançaram quase todos os jornais nos Estados Unidos. O ponto aqui não é fazer a análise das crises sucessivas que vieram. Só o que interessa é registrar que, lá pelas tantas, um grande jornal americano julgou que tinha que por o muro abaixo. E pôs. Por um tempo, mas pôs. Depois viriam trocas de direção no jornal e essas relações se ‘normalizariam’ outra vez, mas em outras bases, numa sequência de reformas que não vêm ao caso.
A atitude heterodoxa do diário californiano indicava uma crise no modelo. Uma crise real. A necessidade de revê-lo, de reestudá-lo, de entender de que modo ele (ainda) dá certo, e em que condições, estava escancaradamente posta. E continuou em pauta. Hoje, nos Estados Unidos, o debate a respeito é no mínimo acalorado. Ou mesmo ensandecido. Para certos observadores, o quadro é tão desalentador que poderia matar de desgosto. ‘Se Herny Luce estivesse vivo até hoje, ele morreria’, escreveu John Brady, professor de jornalismo da Universidade de Ohio. ‘Nos ‘United States of Amarketing’, as revistas deixam as redações abertas para a propaganda sem a menor cerimônia’ (‘Church and State‘).
PARTE V
(ou seria uma briga e alguém precisa apartar?)
No Brasil, ‘Igreja’ e ‘Estado’ também não têm vivido harmoniosamente. Ultimamente, andam querendo discutir a relação.
No dia 14 de setembro, no Congresso da ANER (Associação Nacional dos Editores de Revistas), um debate serviu de termômetro. Não se pode dizer que a conversa pegou fogo, mas quase. A mesa contou com a presença de quatro profissionais de larga experiência: Edgardo Martolio, CEO da Editora Caras, Ricardo Gandour, diretor de conteúdo do Grupo Estado, Nelson Blecher, diretor de redação da Época Negócios, da Editora Globo, e José Bello, diretor de publicidade da Editora Três. Alguns trechos do debate iluminaram o estágio discussão. A mesa também foi bastante rica em apontar algumas das inúmeras variações que o modelo passou a admitir entre nós.
Edgardo Martolio afirmou com franqueza e objetividade que o modelo clássico ‘Igreja/Estado’ não serve mais para todas as publicações. Segundo ele, devemos pensar em três tipos de revistas. As primeiras são as semanais de informação. A essas, segundo ele, cabe investigar e fiscalizar o poder e nelas, portanto, a separação entre a área editorial e a área comercial é indispensável. Ele mesmo define, em e-mail enviado a este articulista:
As semanais de informação, ou as quinzenais jornalísticas, são ‘revistas críticas, jornalismo de informação dura e opinião decisiva, fria, austera, sem adjetivação; sem chance de aceitar nada que possa colocar baixo suspeita sua credibilidade.’
No segundo tipo ele classifica as ‘revistas de serviços, como moda, decoração, automóveis, negócios, que eu chamo de ‘marqueiras’ porque o potencial anunciante é parte de seu conteúdo ou, dito de outro modo, as marcas são seu conteúdo.’ Por fim, o terceiro tipo reúne ‘as revistas de entretenimento’. Exemplo? As revistas de celebridade que são a grande mania da temporada. ‘Para mim’, diz Martolio, ‘nessas se pode ter intromissão da ‘Igreja’ no ‘Estado’, mas também e ainda aqui é analisar o caso a caso, pois tudo precisa de certo equilíbrio, dose, lógica.’
Durante o debate, ele foi contundente em afirmar que estas, do terceiro grupo, não fazem jornalismo, mas entretenimento. Levemos em conta que, hoje, esse ponto de vista exerce profunda influência no mercado editorial. Algumas revistas de celebridades chegam a fazer merchandising em suas páginas. O formato desse merchandising é conhecido: reúnem-se os famosos em um ambiente produzido pela própria revista e então exibem-se mercadorias e grifes que, sem dúvida, pagaram para aparecer dentro do que seriam, em termos convencionais, as páginas editoriais. Todos hão de concordar que, numa revista semanal de informação, a adoção de merchandising seria um barbarismo suicida. Mas, em revistas que se definem como veículos de entretenimento, o merchandising não seria um deslize, não comprometeria a credibilidade. Naturalmente, o merchandising só é possível se a publicidade interferir nas pautas e no ângulo das fotografias publicadas. Portanto, adeus à separação entre ‘Igreja’ e ‘Estado’. Além disso, a separação entre páginas publicitárias e páginas editoriais, cláusula pétrea na convivência clássica entre ‘Igreja’ e ‘Estado’, vai pelo ralo. Nessa modalidade de merchandising, a propaganda está ali, no meio da ‘notícia’.
Para Martolio, o estatuto a reger esse tipo de relação entre o editorial e os anunciantes é exatamente análogo àquele adotado nas telenovelas e nos filmes de ficção. Fica, porém, uma pergunta capital: o leitor sabe disso? Ele sabe que os produtos manuseados pelos seus ídolos nas ‘reportagens fotográficas’ não estão ali porque a celebridade realmente gosta deles, mas porque pagaram pela exposição? E, mais importante: o leitor concorda com esse expediente comercial?
Bem, se ele sabe ou não, não sabemos. A dúvida ainda persistirá. Mas – e isso é indiscutível – o pacto que as revistas de celebridade propõem ao leitor não é um pacto de fiscalizar o poder, mas o de colocá-lo, a ele, leitor, mais próximo das atrizes, manequins e galãs que ele gosta de ver. Disso, o leitor sabe muito bem. Ele quer ter isso – e o resto não lhe parece ser demasiadamente relevante. Essa é a promessa que ele recebe – e essa promessa é cumprida. Nesse sentido, a ‘cobertura’ que essas revistas entregam a ele é o registro de uma espécie de programa de auditório expandido. Elas não realizam reportagens a respeito dos fatos postos no vasto mundo; elas apenas organizam e montam as cenas, cenas produzidas no pequeno mundo de seu espetáculo particular, e depois divulgam essas cenas em suas páginas. Em suma, esse pacto com o leitor é respeitado. Mas, outra vez, é o caso de perguntar: isso será claro para todos os envolvidos? Será, aliás, que isso é claro para os jornalistas que lá trabalham e se veem como jornalistas, não como entertainers? Leitores e jornalistas sabem o jogo que são convidados a jogar?
O interessante, ou, dependendo do ponto de vista, o embaraçoso é que, se formos embarcar nessa lógica, outras complicações logo vão aparecer. Como definir com segurança onde termina o jornalismo e onde começa o ‘entretenimento’? É possível enxergar a fronteira? Jornais diários publicam quadrinhos e horóscopo, além de contos, eventualmente: eles então fazem entretenimento? Se fazem, por que preservar, neles, a fronteira entre ‘Igreja’ e ‘Estado’?
Sim, essa pergunta é fácil; o peso do entretenimento nos diários impressos é mínimo. Mas não percamos de vista que sempre há elementos estéticos e até recursos ficcionais nos órgãos jornalísticos. Não há como pensar no jornalismo puríssimo ou no entretenimento puríssimo. Entre o jornal sisudo e as revistas de celebridades, surgem os casos menos óbvios – e mais desafiadores.
O que dizer das coberturas esportivas na televisão, como os campeonatos de futebol, a Fórmula 1 ou a Fórmula Indy? Para transmitir uma Copa do Mundo, a emissora compra os direitos. Por meio dessa contratação, ela se associa aos promotores do evento, virando parte interessada do êxito comercial desse evento. Ela não vai cobri-lo com a típica voracidade de jornalismo investigativo, tanto que não costuma informar aos telespectadores nem mesmo o valor pago pelos direitos de transmissão. Por essas e outras, na televisão, o esporte é um híbrido: é jornalismo, em parte, mas também é entretenimento. Nesse campo (de futebol), as fronteiras entre o jornalismo e a publicidade são bem mais sinuosas do que eram nos tempos da Time de Henry Luce. Os anúncios invadem o gramado, seja pelos tablados nas laterais, seja nas inserções eletrônicas, feitas na base de computação gráfica. Temos aí, também, outro tipo de mescla entre jornalismo e promoção de eventos, cujas linhas divisórias se apagam com facilidade. Onde está a ‘Igreja’ e onde está o ‘Estado’ quando ‘abrem-se as cortinas e começa o espetáculo’?
PARTE VI
Em meio a heterodoxias, reviravoltas e volteios, não há receita definitiva para disciplinar essa matéria. Antes de falarmos em princípios – e eles são fundamentais – observemos um dado curioso, que revela algo sobre o modo de trabalho, sobre a operação das publicações mais ou menos jornalísticas. A despeito de tantas variações, mesmo no mundo das celebridades ou na transmissão de eventos esportivos pelo rádio e pela televisão, preserva-se, em algum nível, uma separação operacional entre duas alas. O comercial se ocupa da prestação de serviços ao anunciante, enquanto o editorial se dedica a manter satisfeito o destinatário do conteúdo editorial (seja ele mais próximo do entretenimento ou mais próximo do jornalismo). Até aí, até mesmo onde a ideia de separação entre ‘Igreja’ e ‘Estado’ soa como um discurso fundamentalista, até mesmo aí existe uma separação na rotina de trabalho. Um mínimo de separação de método existe.
Também é certo que as redações não são iguais. Há níveis diferentes para as distâncias e as proximidades entre o que é editorial e o que é comercial. As publicações de empresas aéreas, ou as revistas customizadas, isso para ficarmos apenas com duas das espécies que hoje convivem dentro da Aner, não têm nem podem ter um método formalmente idêntico ao das semanais, que também são filiadas à ANER.
Talvez, no futuro, os diferentes pactos que hoje se desenham entre os públicos, cada vez mais múltiplos, e os veículos informativos, cada vez mais diversos, requeiram éticas específicas. É provável, porém, que todos os veículos venham a ser instados a prestar contas sobre as regras que adotam para separar – ou juntar – informação e propaganda. É uma questão de jogo limpo com o leitor.
Talvez isso venha a afetar, também, os contornos do conceito que temos hoje de jornalismo – e aqui chegamos ao plano dos princípios. Vivemos um momento, sobretudo no Brasil, em que o jornalismo independente precisa clarear seus contornos, separando-se de outras áreas da comunicação. Nesse processo, seria uma boa notícia se essa palavra, jornalismo, deixasse de designar de forma tão indiscriminada todo tipo de relato que se pretenda factual. Isso inclui a independência editorial. Assim, onde houver jornalismo independente, a ‘Igreja’ estará sempre lá, com sua liturgia característica. Em algum lugar, lá estará o ‘Estado’, com as leis que o definem. Separados, mas em boa convivência.
Como disse Nelson Blecher, da Editora Globo, na abertura da mesa da ANER, em setembro: ‘A propaganda comercial é a fiadora da independência editorial’. Ricardo Gandour, de O Estado de S. Paulo, aprofundou o mesmo ponto de vista, mostrando que o anunciante que tem visão de futuro não quer um elogio na matéria que vai ser publicada amanhã: acima disso, ele entende que o fundamental é apoiar e dar sustentação, econômica e política, à imprensa independente, pois dessa relação de confiança ele, anunciante, é beneficiário direto quando se trata de comunicar a seriedade de seus produtos e serviços. Imprensa independente só é possível com redações independentes. Às vezes, independente até mesmo da empresa em que está instalada. O público acredita nisso. Valoriza isso. Que os dirigentes da mídia saibam respeitar seus públicos – e suas redações.
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Jornalista, professor da ECA-USP e diretor do Curso de Pós Graduação em Jornalismo com Ênfase em Direção Editorial, da ESPM