A imprensa levou duas semanas para descobrir o assunto econômico e político mais polêmico do momento – o decreto presidencial sobre o novo programa de direitos humanos. O primeiro jornal a cuidar do tema com a amplitude necessária foi o Globo, na edição de sexta-feira (8/1). Até esse momento, os meios de comunicação haviam noticiado a reação de alguns grupos e setores – como a cúpula militar, a igreja católica e os fazendeiros – a pontos do decreto assinado em 21 de dezembro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas o decreto era muito mais complexo e um de seus primeiros críticos, o jornalista Reinaldo Azevedo, chegou a descrevê-lo, em seu blog, como ‘uma constituição do presidente Lula’.
Todos haviam noticiado, na semana anterior, a reação dos comandantes e do ministro da Defesa, Nelson Jobim, à proposta de investigação das violências cometidas durante o período militar. Os chefes das três forças e o ministro, segundo os jornais, chegaram a pedir demissão. Mas o presidente os convenceu a mudar de ideia, concordando em mexer no texto do decreto.
Conflito entre presidente e generais é assunto da maior importância em qualquer país. Estranhamente, os editores, pauteiros e repórteres políticos não parecem ter tido curiosidade suficiente, mesmo diante da crise, para examinar o assunto com maior cuidado.
Para isso seria necessário procurar o texto, disponível no site da Presidência da República, e enfrentar 92 páginas quase ilegíveis, cheias de expressões como ‘fortalecimento dos direitos humanos como instrumento transversal das políticas públicas e de interação democrática’, mas também carregadas de combustível para muita polêmica.
Sem referência
O Globo foi o primeiro a apresentar com clareza a ambição política embutida no decreto: ‘Da regulação de hortas comunitárias à revisão da Lei de Anistia, da taxação das grandes fortunas à mudanças nos planos de saúde, passando pela reforma agrária e pelo financiamento público de campanhas, o programa pretende criar 27 leis’, informou o jornal na chamada de capa na sexta-feira (8/1).
Quem leu o decreto com alguma atenção deve ter examinado as assinaturas de ministros no fim do documento. Não constava da lista o nome do ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes. Ninguém valorizou o detalhe imediatamente. Mas o fato se impôs.
Na edição de sábado (9/1), o ministro Stephanes aparecia nas primeiras páginas dos maiores jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Dois diários, o Globo e a Folha de S.Paulo, foram diretamente ao ponto mais sensível: a crise no interior do governo. ‘Ministro critica plano de direitos humanos’ foi a manchete da Folha. ‘Decreto de direitos humanos abre nova crise no governo’ foi o título principal do Globo. O complemente desse título foi também forte: ‘Ministro da Agricultura diz que pacote cria insegurança jurídica no país’.
O assunto continuou quente nos dias seguintes. Poderia ter esquentado mais cedo, antes do réveillon, se alguém tivesse tido suficiente curiosidade para ler, logo depois da assinatura do presidente, o texto do decreto sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos. Mas essa falha é está longe de ser excepcional. Projetos importantes tramitam longamente no Congresso Nacional, motivam debates intensos e raramente os autores das coberturas dão sinal de haver lido os textos e tentado decifrá-los por sua conta.
O mais frequente é o noticiário se basear em declarações de políticos, empresários, sindicalistas e outros interessados, sem referência direta aos tópicos discutidos, como se os textos fossem inacessíveis à imprensa. Esses textos muitas vezes não contêm mais que dois ou três artigos muito simples, mas o leitor fica limitado às opiniões das pessoas interessadas no assunto e em geral inclinadas a distorcer ou ocultar detalhes.
Como funcionará?
Curiosamente, a cobertura da crise na Argentina, detonada com a tentativa da presidente Cristina Kirchner de usar US$ 6,5 bilhões de reservas cambiais para pagar dívidas do Tesouro, foi coberta muito mais pronta e claramente do que o caso do decreto brasileiro sobre o programa de direitos humanos. O leitor foi razoavelmente informado sobre as intenções da presidente, sobre o status legal do presidente do BC e sobre seus argumentos contra o uso daquele dinheiro.
Os autores e editores do material noticioso poderiam ter sido mais velozes na comparação do caso argentino com o do Brasil, onde a diretoria do BC tem operado com autonomia de fato, por decisão da Presidência da República, embora não disponha de autonomia legal.
Como será determinada a política de juros no próximo governo? Como funcionará o sistema de metas de inflação? Qual será o regime cambial? São questões cruciais para o futuro da política econômica e não se poderá simplesmente ignorá-las na campanha eleitoral deste ano.
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Jornalista