Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa fica no superficial

O caso da menina maltratada por sua mãe adotiva – uma procuradora aposentada –, no Rio de Janeiro, comoveu a mídia e rendeu matérias sensacionalistas na TV, que fez questão de mostrar o áudio (que vai servir como prova contra a acusada, finalmente presa).


O assunto chegou à revista Veja, que registrou a história na matéria ‘Adotar para maltratar?’:




‘Acusada de torturar uma menina de 2 anos que estava sob sua guarda e a quem pretendia adotar, a procuradora aposentada carioca Vera Lúcia de Sant´Anna Gomes, 66 anos, com a prisão decretada, entregou-se na semana passada à Justiça depois de ficar oito dias foragida. Presa numa penitenciária da Zona Oeste do Rio de Janeiro, ela se limita a dizer, por intermédio de seu advogado: `Acho que me excedi.´ O caso chama atenção pela extrema brutalidade.


‘Os laudos do Instituto Médico Legal revelam que T.E., encontrada por Vera Lúcia num abrigo para menores, foi vítima de violentas surras e pancadas na cabeça. Nos 29 dias em que permaneceu na casa da procuradora, ela passava boa parte do tempo trancada no quarto, sozinha. Numa fita em posse da polícia, escutam-se os gritos de Vera Lúcia: `Maluca, engole, você vai comer tudo. Pode chorar, cachorra!´ Foi depois de uma denúncia anônima que o conselheiro tutelar Heber Leal esteve no apartamento da procuradora, em Ipanema, para verificar o estado da criança. Segundo relata a Veja, encontrou-a repleta de hematomas e com os olhos tão inchados que mal conseguia abri-los. Perguntou: `Quem fez isso com você?´ E ouviu: `Foi a mamãe´.’ (Veja, 16/5/2010).


Atestado de saúde mental


A revista pergunta:




‘Como alguém com o perfil de Vera Lúcia conseguiu autorização da Justiça para adotar uma criança? Seu nome consta em nada menos que quinze boletins de ocorrência. Além disso, a procuradora já havia tentado adotar outra menina, dois anos atrás. Quando a mãe desistiu de lhe entregar a filha, Vera Lúcia foi à maternidade e arrancou do bebê recém-nascido as roupas que havia comprado. Os especialistas concordam que seu comportamento revela traços de psicopatia. `Os acessos de ódio diante da frustração e o hábito de subjugar os outros são típicos´, diz a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva. O caso faz refletir sobre a fragilidade do sistema de adoção no Brasil. A lei é bastante vaga no que diz respeito à avaliação de quem quer adotar: exige dos candidatos um atestado de saúde mental, mas não especifica quem deve emiti-lo. Assim, qualquer médico pode colocar ali a sua assinatura. Conclui o psicanalista Luiz Alberto Py: `Uma avaliação mais séria teria mostrado que essa mulher não está apta a exercer a maternidade´.’


Tendência a ‘esquecer’


A impressão que fica da leitura de Veja é de que era preciso registrar a brutalidade da candidata a mãe adotiva – o que foi feito – e pronto. A leitura do noticiário da semana responde à pergunta de Veja sobre a avaliação da procuradora:




‘Para conseguir a guarda provisória de menina, a procuradora passou por um rigoroso e longo processo. Durante um ano, ela participou de reuniões mensais com membros do Conselho Tutelar e profissionais da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, passou por avaliação psicológica e por uma pesquisa social até, finalmente, obter a habilitação para adoção, quando o juiz autoriza o candidato a ter visitas com a criança. Ela passou por todas as etapas e foi considerada apta. O que aconteceu foi um choque para todos. O processo de adoção tem que ser por amor e não por ver a criança como uma mercadoria que você pega da prateleira para experimentar. Mais de 90% dos casos são bem sucedidos. ‘O pior desse caso é que tinha um casal também habilitado e muito interessado pela menina’, disse a magistrada Ivone Ferreira Caetano. Há na vara 800 pessoas inscritas para adotar uma criança.’ (Portal Terra, 5/5/2010).


O assunto – que parece ter sido encerrado por Veja com essa matéria, assim como também pelos jornais, que certamente só voltarão a ele se o advogado da procuradora conseguir a prisão domiciliar de sua cliente – vai cair no esquecimento da mídia. Essa tendência de ‘esquecer’ assuntos tratados quase com histeria num primeiro momento parece estar se tornando uma característica de jornais e revistas nestes tempos de informação instantânea.


Falta de sensibilidade


E a menina, de volta ao orfanato, nunca mais será mencionada. Nem Veja, nem as emissoras de TV, nem os jornais tiveram sensibilidade para aprofundar a história, como fez a Folha on Line que revelou a extensão da tragédia de caso:




‘Aos seis meses de idade, em janeiro de 2008, a menina foi abandonada na casa de desconhecidos, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, e levada para um abrigo. Seis meses depois, a mãe procurou o abrigo e recuperou a filha. Em fevereiro de 2009 a criança foi mais uma vez abandonada, desta vez na favela Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, zona sul do Rio. Em documento protocolado na 1ª Vara da Infância e Juventude, o Conselho Tutelar informa que a menina ficou durante dois meses e 15 dias aos cuidados de uma família da região. Durante este período, a mãe a visitou apenas duas vezes, `não dando nenhuma contribuição para o sustento da criança, embora frequentasse a comunidade para obter drogas´, afirma o texto. Mais uma vez a mãe recuperou a guarda para pouco depois deixar a criança com desconhecidos no morro Azul, no Flamengo (zona sul), e mais uma vez resgatada pelo Conselho Tutelar e encaminhada para adoção. Quando foi agredida, a menina estava em processo de adoção pela procuradora, que tinha sua guarda provisória.’ (Folha Online, 7/5/2010).


O simples fato da criança ter sido abandonada pela mãe verdadeira três vezes daria uma excelente matéria. Será preciso uma prisão e o espancamento de uma criança para sensibilizar a imprensa? Essa imensa tragédia do abandono, das idas e vindas para a casa dos pais verdadeiros – sem falar na tragédia das mães despreparadas e incapazes de criar os filhos – daria matérias sensacionais e sensacionalistas, tão ao gosto da mídia hoje em dia.


O que falta é sensibilidade para o drama dessas pessoas mais pobres que geram filhos e não têm condições de continuar com eles pelo resto da vida. Se revistas como Veja têm espaço para dar matéria de capa sobre os jovens gays (só os de classe média, é claro) e sua nova aceitação, bem que poderiam reservar um espaço maior para essas crianças que ficam anos nos orfanatos esperando pela chance de ter uma família. Ou então, espaço para discutir a situação dessas mães que não tem como criar os filhos.

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Jornalista