Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprensa na luta para sair do vermelho

Em 1997, quando surgiu, o newseum, Museu da Notícia, tinha uma sede modesta, mas suas atividades eram muito atraentes.

Localizava-se em Arlington, ao lado de Washington, e vizinha do USA Today, jornal criado em 1982 com o objetivo de combater a TV, então o principal adversário dos veículos impressos, cujo fundador, Al Neuharth, concebeu o projeto do Newseum.

Fazia tanto sucesso ao mostrar ao público aspectos dos modos de fazer jornalismo, que em 2000, quando a crise estrutural do negócio já era latente, mas ainda não aguda, resolveu mudar-se para a capital americana.

Não faltou ambição. O novo edifício, com mais de 23.000 m2, sete andares, 15 teatros, na Avenida Pensilvânia, perto da Casa Branca, é uma obra faraônica para celebrar o poder do quarto poder.

Quando foi inaugurado, em 2008, já não havia muito a ser comemorado. O século vinha sendo cruel para a imprensa, em particular para os meios impressos.

As empresas jornalísticas, que se comprometeram a dar suporte ao museu em sua honra, mal conseguiam sustentar-se a si próprias; muitas ou foram vendidas ou quebraram.

Não era difícil prever que o “Taj Mahal do jornalismo”, como alguns o chamam, também teria dificuldades para se manter.

Quem o sustenta é o Freedom Forum, outra obra de Neuharth, estabelecido para defender a liberdade de imprensa e divulgar sua importância.

O presidente e CEO do museu, Jeffrey Herbst, renunciou aos cargos no final de agosto, e o Freedom Forum divulgou nota em que reconhece a sua calamitosa situação financeira, que põe em risco a sobrevivência da própria mantenedora, agora liderada por Jan Neuharth, viúva do fundador.

Neuharth também anunciou que vai deixar seu posto, e admitiu que entre as alternativas em consideração para superar a situação está a venda do imóvel que abriga o museu.

O drama do Newseum reflete o da instituição que ele homenageia. As más notícias não param de se acumular, e alguns dos mais tradicionais títulos da imprensa se esforçam em busca de soluções, sem grande sucesso.

O New York Times, ícone máximo do jornalismo, resolveu eliminar funções clássicas, como as de “copy desk” e editor de fotos, lançou um novo plano de demissões voluntárias e jogou no mercado produtos novos, alguns de mérito ético questionável.

Por exemplo, uma volta ao mundo de 26 dias para 50 pessoas ao preço individual de US$ 135 mil, num avião fretado e na companhia de algumas de suas estrelas.

A ideia lembra uma das últimas da família Graham para tentar manter o controle do Washington Post há poucos anos: a venda de ingressos para jantares na sua mansão em Georgetown, na companhia de editores, colunistas e repórteres do diário.

A possibilidade de essas iniciativas serem interpretadas como venda de acesso privilegiado a formadores de opinião é irresistível. O Post não chegou a colocar em prática o projeto, talvez o Times também não o faça.

Outra fórmula, menos suspeita, mas economicamente complicada, é transformar o negócio em organização sem fins lucrativos (veja texto acima), como prometeu o britânico The Guardian e, em certa medida, o Times.

Enquanto isso, quem pode se livrar do problema o vende na bacia das almas. Foi o que acabou de fazer o tradicionalíssimo Daily News, tabloide sensacionalista de Nova York.

Seu legendário dono, Mort Zuckerman, o cedeu pelo valor de US$ 1 à Tronc, Inc., que já é a dona do Los Angeles Times e do Chicago Tribune, dois jornais familiares
respeitadíssimos, que foram vendidos para quem acha que sabe como tirar qualquer empresa do vermelho.

 

ALTERNATIVA ONG

Se não consegue ter lucro, melhor não ter tal fim  

Alguns veículos jornalísticos importantes estão tentando uma saída radical para sua incapacidade de gerar lucros: simplesmente desistir deles.

O britânico The Guardian acaba de estruturar-se nos Estados Unidos como entidade sem fins lucrativos para buscar fundos em organizações filantrópicas e fundações e financiar reportagens sobre temas como mudança climática e direitos humanos.

Quem seguiu a mesma linha foi a revista The Atlantic, comprada pelo Emerson Collective, organização não governamental presidida por Laurene Powell Jobs, viúva de Steve Jobs, da Apple.

Fundada em 1857, The Atlantic tem tido sucesso na sua versão digital, mas não o suficiente para seu proprietário, David Bradley, tirá-la do vermelho.

O New York Times também criou uma divisão para captar recursos e desenvolver atividades beneméritas.

 

FIM DOS ALTERNATIVOS

Semanários de cultura e vida noturna se acabam

Por 62 anos, o village voice foi um símbolo da cultura alternativa de Nova York. Nele escreveram, entre muitos outros, Norman Mailer, Ezra Pound, James Baldwin. Distribuído de graça desde 1996, pagava-se com anúncios.

Mas parece que a própria vida alternativa americana está em baixa, ao menos para sustentar seus veículos jornalísticos.

Como o Voice agora, antes já deixaram de circular o Boston Phoenix, o San Francisco Bay Guardian, o City Paper da Filadélfia e de Baltimore.

Por enquanto, o Voice vai tentar sobreviver digitalmente. Seu principal concorrente no passado, o New York Press fechou em 2011, e não sobreviveu em nenhum formato.

O dono do Voice, Peter Barbey, que comprou o título em 2015, diz que isso não vai acontecer com ele: “Ainda há mercado para um jornal que trate da cidade seriamente”.

 

NúMEROS FORTES

  • 67% dos americanos dizem se informar ao menos em parte pelas mídias sociais
  • 55% dos americanos com mais de 50 anos fazem parte desse grupo; é a primeira vez que mais da metade dos mais idosos entram na categoria
  • 74% dos americanos dizem obter pelo menos parte das notícias pelo Twitter
  • 68% dos americanos dizem obter pelo menos parte de suas notícias por meio do Facebook
  • 85% dos americanos dizem obter suas notícias por meio de um aparelho móvel (telefone ou tablet); em 2013, eles eram 54%
  • 67% dos americanos com mais de 65 anos dizem obter pelo menos parte de suas notícias por aparelho móvel (em 2013, este grupo era de 22%)
  • 60% dos brasileiros dizem confiar nas notícias veiculadas pela imprensa, número inferior apenas ao da Finlândia (62%)
  • Fontes: Pew Research Center e Reuters Institute for the Study of Journalism

 

UMA FRASE

“O Newseum, que foi aberto como uma catedral do jornalismo, em breve poderá se transformar em santuário de um ofício ultrapassado”

(Alan Rusbridger, editor-chefe do diário britânico The Guardian entre 1995 e 2015, atual diretor do Reuters Institute for the Study of Journalism; seu ex-jornal pretende transformar-se em organização sem fins lucrativos)

 

LIBERDADE DE IMPRENSA

Ameaças violentas em todos os continentes

com a abdicação pelos Estados Unidos do papel de defensor de direitos humanos e a simpatia de seu novo presidente por homens fortes em todos os quadrantes, a liberdade de imprensa tem sido alvo de ataques cada vez mais frequentes, intensos e geograficamente diversificados.

Na Índia, os desmandos do premiê Narendra Modi incitam violência contra jornalistas. A mais trágica, o homicídio de Gauri Lankesh, 55, crítica do nacionalismo direitista de Modi, durante a campanha eleitoral no Estado de Karnataka.

Nas Filipinas, o extremista presidente Rodrigo Duterte se vale de vários estratagemas, até ameaças públicas de morte (“Não quero assustá-lo, mas o seu dia de carma vai chegar”) para forçar a venda do único jornal que lhe faz oposição, o Philippine Daily Inquirer, para um empresário amigo seu.

Em Israel, única democracia da sua região, o governo do radical Benjamin Netanyahu ameaça fechar a sucursal da rede de TV Al Jazeera, expulsou um de seus jornalistas de um debate sobre liberdade de imprensa e hostiliza qualquer profissional de imprensa que não lhe agrade.

Na Venezuela, os correspondentes do New York Times, Nick Casey, e da Associated Press, Hannah Dreier, foram expulsos do país, e a repórter de rádio Elyangelica González foi espancada e ameaçada de morte por partidários do presidente Maduro.

 

NA TRUMPLÂNDIA

Coisa de terceiro mundo

Episódios inconcebíveis para o país onde a liberdade de expressão tem tradição mais enraizada estão ficando comuns na América de Trump.

Dan Heyman, repórter da agência Public News Service, foi algemado e preso por oito horas após ter feito reiteradamente uma pergunta ao secretário de Saúde, Tom Price, que o ignorava. Foi solto após pagar fiança de US$ 5.000 e processado por “tentativa intencional de perturbar processos de governo”.

A ativista Desiree Fairooz foi duas vezes julgada por ter gargalhado após uma resposta do secretário de Justiça, Jeff Sessions, em audiência pública do Senado. Numa delas, foi condenada pelo júri por “conduta desordeira”, mas o juiz do caso descartou a decisão.

Uma ONG, a US Press Freedom Tracking, foi criada para registrar os casos de agressão à imprensa no governo Trump. Nos seis primeiros meses, houve 19 prisões, 12 buscas em equipamentos e 11 agressões físicas.

Isso sem contar interferências de autoridades, até do próprio presidente, para coibir jornalistas. Por exemplo, o presidente viu com antecedência e aprovou matéria cheia de informações falsas veiculada pela Fox News (que depois teve de se retratar) sobre o funcionário do Partido Democrata Seth Rich, acusado de vazamentos de informações de governo depois atribuídos a hackers russos.

 

O FIM DOS DOIS LADOS?

Terrorismo neonazista nos EUA deflagra debate sobre liberdade

Os dias 12 e 13 de agosto marcaram novo estágio no debate sobre a questão de garantir tratamento igual aos dois lados de um debate.

A questão é se o princípio vale até quando parece claro que um deles representa o mal, como os movimentos neonazistas americanos que aterrorizaram a cidade universitária de Charlottesville, Virginia, naqueles dias e mataram uma ativista liberal que se manifestava pacificamente pela retirada de estátuas locais de líderes confederados da Guerra Civil americana.

O presidente Trump reagiu aos incidentes dizendo que os dois grupos tinham “pessoas muito boas” e pessoas violentas, equiparando-os moralmente.

Mas, como revelou um extraordinário documentário de Elle Reeve, do Vice News, só os neonazistas estavam armados, pesadamente, e dispostos a um confronto físico extremo.

As declarações do presidente provocaram reação negativa até de muitos de seus aliados de partido e empresários. Mesmo Rupert Murdoch, o dono da Fox News, que apoia Trump incondicionalmente, discordou dele em público.

Google e Twitter passaram a negar abrigo a publicações neonazistas, como The Daily Storm, que veiculava um vídeo para ensinar a atropelar inimigos, como ocorreu com Heather Heyer, a vítima de Charlottesville.

Visa e Mastercard cortaram relações de negócios com grupos neonazistas que eram seus clientes.

O tema certamente não é simples. Quem traça a linha que separa o aceitável do intolerável? E quando? O candidato Adolf Hitler na Alemanha em 1932 deveria ter tido suas liberdades negadas nas eleições parlamentares? E o candidato Donald Trump em 2016? E Jair Bolsonaro em 2018?

E a imprensa: quando pode ou deve escolher um lado e negar a alguém ou a um partido o direito de expor suas ideias ao público?

No caso específico de Charlottesville, pesquisas indicam que 56% dos americanos desaprovaram a reação de Trump aos eventos ao igualar os dois lados em confronto. Para 42%, não se pode nunca equivaler neonazistas a seus oponentes (mas 35% dizem que às vezes é possível que sim).

Estatisticamente, portanto, há nos Estados Unidos maiorias contrárias à equiparação entre os dois lados, mas está longe de haver unanimidade.

Em ambientes politicamente polarizados, é um assunto dificílimo.

 

ENQUANTO ISSO NO BRASIL…

País é o segundo que mais confia nos veículos jornalísticos

Em meio aos seguidos furacões de más notícias para a instituição da imprensa, no Brasil houve raro momento de celebração quando o Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo, da University of Oxford divulgou pesquisa que mostra que aqui os veículos jornalísticos gozam de credibilidade só inferior à da Finlândia no mundo.

O Relatório de Jornalismo Digital 2017 também revela que as redes sociais vêm sentindo reflexos negativos da proliferação de notícias fraudulentas. Com isso, o Facebook e outras perdem prestígio em diversos países, inclusive no Brasil.

Aqui, 57% dos entrevistados disseram usar o Facebook para acessar e compartilhar notícias, uma queda de 12 pontos percentuais em relação a 2016.

Merecem elogios e incentivo iniciativas que buscam ampliar ainda mais essa confiança da sociedade no jornalismo, como o projeto Credibilidade, que no Brasil é desenvolvido
pelo Projor, criado por Alberto Dines e agora presidido por Angela Pimenta.

O Credibilidade trabalha para produzir indicadores de credibilidade jornalística tanto para usuários quanto para plataformas de distribuição de notícias. A partir de um conjunto inicial de 38 indicadores, o consórcio internacional destacou oito prioridades e as aplica para ajudar a melhorar a qualidade da prática jornalística.

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Carlos Eduardo Lins da Silva é livre-docente, doutor e mestre em comunicação; foi diretor-adjunto da Folha e do Valor.