A quem interessa defender a integridade e a credibilidade da imprensa? Apenas os empresários, somente os jornalistas ou unicamente os leitores?
Estamos acostumados a ver o patronato jornalístico insurgindo-se contra os desmandos de certos caudilhos e governos. São rotineiros os protestos pela internet das entidades profissionais e organizações não-governamentais contra as violências sofridas por jornalistas no exercício de sua atividade em todos os cantos do mundo.
E os leitores, onde podem se manifestar? Apenas nas pequenas seções de cartas dos grandes veículos, somente através dos ouvidores ou unicamente na ‘imprensa do leitor’ que ainda não existe?
A liberdade de expressão, o direito à crítica e o exercício de um jornalismo livre de constrangimentos concernem a todos, indistintamente. Trata-se de uma cruzada holística, obrigatoriamente convergente e ampla. É deletério e perigoso aplicar a essas questões os dilemas e conflitos oriundos da luta de classes.
Os sucessivos pedidos de desculpa do New York Times não decorreram das preocupações empresariais do publisher, dos interesses dos acionistas por um balanço mais lucrativo ou das preocupações dos editores e repórteres pela qualidade de suas matérias. Todos perceberam que tanto o jornal como a empresa editora seriam igualmente prejudicados por um racha na credibilidade. A salutar reação não resultou de uma categoria, mas do conjunto de categorias envolvidas na produção do mesmo veículo.
Então, por que razão o patronato espanta-se, esconde-se ou sai dando tamancadas quando surgem críticas à sua incapacidade de controlar os apetites dos departamentos comerciais e financeiros? Por que instruem todos os escalões a não entrar no debate sobre procedimentos jornalísticos? Mais grave de tudo: o que se esconde atrás da arrogância exibida pelos executivos das redações quando suas decisões são publicamente discutidas ou confrontadas?
Esses tabus corporativos (e arrogâncias gremiais) fragilizam e tornam suspeitos os ardores em defesa da integridade da imprensa. Uma instituição que não sabe conviver com a exposição pública, foge das explicações e resguarda-se de qualquer debate não tem o direito de cobrar transparência das demais instituições ou poderes. Faz o papel do fiscal que não admite ser fiscalizado.
Sem espírito crítico
Quando Veja classifica o comentarista esportivo Jorge Kajuru como ‘colecionador de encrencas’ (edição 1.858, pág. 123) está fazendo o jogo dos flagrados pelas denúncias do jornalista (no caso, o governador mineiro Aécio Neves). Esta perspectiva invertida para marginalizar os profissionais intransigentes transige com um dos elementos básicos do jornalismo: a defesa do interesse público.
Estigmatizar aqueles que levam às últimas conseqüências os compromissos sociais e morais da profissão é uma forma disfarçada de colocar-se contra a profissão. Esta prevaricação pode ser disfarçada no primeiro momento, mas acaba entranhada no espírito da equipe e um dia torna-se procedimento oficial.
Em recente ediçào do Observatório da Imprensa na TV (15/6/04), o jornalista Kajuru reclamou contra o estigma de ‘encrenqueiro’ e denunciou a manipulação imposta ao depoimento que deu à revista. Como castigo vai entrar para a Lista Negra, o tétrico rol de pessoas que não são notícia, não existem. Ou só existem para levar pancada.
O que está acontecendo em nossa imprensa é que ela não está mais interessada em valorizar os exemplos profissionais edificantes que ocorrem em suas paróquias simplesmente porque a bravura, o inconformismo e o espírito crítico ameaçam diretamente o conforto daqueles que fizeram a opção pela complacência e pela acomodação.
Já houve tempo em que nas redações os preferidos eram justamente os encrenqueiros. Hoje, premiam-se aqueles que mantêm seus dilemas morais em casa ou, no máximo, os levam até o botequim.
No mais recente mea-culpa do New York Times, os autores admitiram que seus repórteres e editores não foram suficientemente críticos e céticos. Curvaram-se às fontes e induziram a sociedade americana a cometer um dos seus erros mais clamorosos.
A imprensa brasileira passa pela maior crise da história enquanto os seus altos sacerdotes fazem justamente o contrário do que preconizam seus colegas americanos: não querem repórteres e editores desenvolvendo o seu espírito crítico.
Este inconformismo pode contaminar os leitores. Perigoso.