A perda de credibilidade tem sido a causa mais mencionada por analistas de vários matizes teóricos para explicar, em países como os Estados Unidos, a queda continuada na leitura (circulação) da mídia impressa. Condutas antiéticas que vieram à tona contribuíram para isso: a descoberta de reportagens inventadas e a cobertura ‘oficialista’ da invasão do Iraque são dois exemplos emblemáticos.
Dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC) e da Associação Nacional de Jornais (ANJ), recentemente divulgados, indicam que, no Brasil, a circulação dos grandes jornais mantém a curva descendente dos últimos anos [ver artigo ‘O mercado andou de lado’, remissão abaixo].
Quais seriam as razões para esse problema entre nós?
A competição com outros meios, sobretudo a internet, ao lado da carência de bons profissionais e da falta de novos investimentos – conseqüência da crise financeira que teve origem na década de 1990 – têm sido algumas das razões apresentadas pelas empresas. Apesar das séries históricas das pesquisas de opinião indicarem perda relativa de credibilidade da mídia impressa em relação à mídia eletrônica, poucos a mencionam como outra causa da queda de circulação.
É preciso, todavia, avançar a hipótese de que a perda de credibilidade está se transformando em uma das razões determinantes para a queda de circulação de jornais e revistas também no Brasil. E por que isso acontece?
Ironia suprema
O tratamento que alguns de nossos principais veículos impressos têm dado a certas questões está tão distante dos padrões mínimos, tanto das técnicas como da ética jornalística, que a hipótese da perda de credibilidade torna-se incontornável. São inúmeros os exemplos que se sucedem a intervalos cada vez mais curtos.
Pesquisa conduzida pelo Observatório Brasileiro de Mídia e pela Universidade de São Paulo, ao longo do processo eleitoral para a Prefeitura de São Paulo em 2004, revelou como a cobertura dos candidatos realizada pelos jornais Agora, Diário de S.Paulo, Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e o Jornal da Tarde foi desequilibrada, favorecendo de maneira inequívoca a apenas um deles – por coincidência (?), o vencedor.
Agora, a revista Veja (edição 1896, de 16/3/2005), com a matéria de capa ‘Tentáculos das Farc no Brasil’, oferece uma contribuição definitiva à coleção de exemplos. Em oito páginas sob o título ‘Laços explosivos’, ilustradas com fotos do exército de ‘guerrilheiros, terroristas e narcotraficantes’, Veja insinua – mas não comprova – uma associação criminosa das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) com o Partido dos Trabalhadores (PT) nas eleições de 2002. Vejamos como isso foi feito.
Os principais trechos graficamente destacados da matéria afirmam:
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Documentos secretos guardados nos arquivos da Abin informam que a narcoguerrilha colombiana FARC deu (sic) 5 milhões de dólares a candidatos petistas em 2002.**
Os 5 milhões de dólares saíram de Trinidad e Tobago e entraram no Brasil por intermédio de cerca de 300 empresários amigos do PT, que, por sua vez, doaram o dinheiro aos comitês regionais do partido como se fossem contribuições suas.Na seqüência, uma nova matéria descreve o que são as Farc. A primeira frase afirma:
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A Abin descobriu que as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) deram dinheiro para militantes petistas.A se tomar por esses trechos, qualquer leitor acreditou que os ‘pilares’ da objetividade jornalística – que não implica imparcialidade, mas o ritual estratégico de uma apuração independente dos fatos – teria sido preservado intacto. Houve apuração, fontes foram ouvidas e se chegou à conclusão presumida na capa e nos títulos. A aparência formal do que constitui uma matéria jornalística séria estava assegurada.
No entanto, apesar das afirmações de Veja destacadas acima – todas estabelecendo uma relação aparentemente lógica entre as Farc e o PT – o corpo da matéria revela uma outra realidade. As citações que se seguem são auto-explicativas:
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A doação financeira é dada como realizada pelos documentos da Abin, mas a investigação de Veja não avançou um milímetro nesse particular.**
A revista não encontrou elementos consistentes para que se faça uma afirmação sobre esse aspecto [se a doação foi apenas uma bravata do padre Olívio Medina].**
Apesar da verossimilhança e da aparência lógica do esquema, é vital ressaltar que, fora os registros feitos pelos espiões da Abin, não foram encontradas evidências sólidas da ajuda financeira da guerrilha da Colômbia.**
Os documentos arquivados na Abin, sucessora do velho SNI do regime militar, são célebres por seus erros e equívocos, motivados em geral pela paranóia anticomunista de seus agentes na época da ditadura. Os papéis que relatam a transação em que as Farc prometem ajuda financeira a candidatos esquerdistas no Brasil também não são imunes a erros.E, por fim, a suprema ironia:
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As suspeitas em torno de ligações do PT com as Farc costumam servir para manipulações políticas, com o objetivo de envolver o partido com um grupo terrorista.Nesse ponto, cabe perguntar: seriam as afirmações da revista reproduzidas acima apenas a explicitação do ponto de vista contraditório que toda matéria jornalística deveria contemplar?
Chamadas sem sustentação
Gaye Tuchman, velha conhecida dos que estudam a produção de notícias, diz que o uso de certos procedimentos característicos da chamada objetividade jornalística (como o recurso das aspas para uma citação, a apresentação de possibilidades conflitantes ou a estruturação da informação em uma seqüência apropriada) não passa de uma rotina para proteger o jornalista dos riscos da atividade e das críticas.
Estaria a revista apenas tentando evitar processos e acusações em uma matéria sobre tema polêmico? Na verdade, Veja vai muito além.
Suas próprias afirmações sobre a inexistência de provas do recebimento do dinheiro; as suspeitas sobre os documentos produzidos pela Abin e até mesmo a confissão de que ‘a investigação (…) não avançou um milímetro’ sobre a existência da doação, colocam em xeque a própria reportagem como texto jornalístico.
Na edição nº 1897 (de 23/3/2005), Veja volta ao assunto. Agora no espaço de seu editorial – ‘Carta ao leitor’ – e em matéria sob o título ‘Eles sabem tudo’.
O editorial vangloria-se de ter ‘forçado’ (sic) os petistas a explicitarem sua posição contra as Farc e promete mais sobre o tema. A nova matéria diz que a Abin mente; continua sem revelar a identidade da fonte da informação (o espião) e publica o nome de um coronel ex-funcionário da Abin que teria descumprido um acordo de conceder nova entrevista a Veja após a publicação da primeira reportagem.
O espião afirma: ‘Não sei se o dinheiro foi pago’. E o coronel é citado dizendo: ‘Não podemos afirmar que era o dinheiro da guerrilha mesmo. Eram indícios. Indícios fortes, mas a investigação parou quando o PT ganhou as eleições e eu saí da Abin’.
Que tipo de jornalismo é esse?
No jargão profissional trata-se de uma ‘cascata’, isto é, os títulos e as chamadas são afirmativas, mas não há nada que as sustente. A matéria foi ‘esquentada’. Não houve qualquer comprovação das afirmações e insinuações do texto. E mais: os supostos documentos relacionados à matéria de Veja exibidos em redes de televisão ao longo da semana – que, aliás, nada comprovariam – tiveram sua autenticidade tecnicamente negada pela própria Abin em nota oficial divulgada na quinta-feira (17/3). A Abin reconhece possuir documentos sobre o suposto envolvimento do PT com as FARC, arquivados porque ‘sua credibilidade desautorizava sua difusão’ (sic).
Princípios básicos
A grande mídia deu discreta repercussão à ‘denúncia’ e uma reunião da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência no Congresso Nacional, pela voz de seu presidente, considerou o assunto encerrado.
Os jornalistas norte-americanos Bill Kovach e Tom Rosenstiel, em livro popular no Brasil (Os elementos do jornalismo – O que os jornalistas devem saber e o público exigir, Geração Editorial, São Paulo, 2003), sintetizam, dentro dos padrões liberais da profissão vinculada ao interesse público, alguns elementos constitutivos do fazer jornalístico. Dentre eles estão a obrigação com a verdade, a lealdade para com os cidadãos e a disciplina de verificação, isto é, de apuração da verdade dos fatos. Na apuração, enquanto técnica, deveria se impor a transparência na relação com as fontes; a revelação do interesse delas em fornecer as informações; a comprovação dos fatos e a resistência em acrescentar ilações que não podem ser sustentadas.
Estivesse Veja comprometida com os elementos identificados por Kovach e Rosenstiel seria publicada uma reportagem de capa como essa que estamos discutindo aqui? Será que a revista supõe que seus mais de um milhão de leitores não percebem as contradições da matéria? Ou será que acredita ser este o tipo de jornalismo procurado por seus leitores? Seria essa a Veja ‘imparcial e apartidária’ celebrada nas campanhas publicitárias do final da década de 1990?
Luis Weis, em artigo publicado neste Observatório [edição 320, remissão abaixo], colocou bem a questão. Diz ele:
‘(…) por que publicar uma antimatéria dessas, ainda mais como capa? Essa pergunta traz de volta [uma outra]: como se deve chamar a matéria de capa da Veja (…)? Para jornalistas sérios, as respostas podem ser várias – algumas delas impublicáveis, talvez. Mas nunca será esta: jornalismo.’
Por essas e outras é que parte da grande mídia impressa no Brasil, ao ignorar não só as regras elementares do bom jornalismo mas, sobretudo, os princípios básicos da ética jornalística, caminha a passos largos para o limite de sua própria credibilidade. E está inevitavelmente perdendo aquilo que a imprensa deveria prezar, acima de todos os seus inconfessáveis interesses.
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Respectivamente, pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004); e jornalista, pesquisadora do NEMP-UnB e doutoranda em Comunicação pelo PPGCOM da UFRGS