Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprensa vive o axioma de Lampedusa

‘Conheci ontem o que é celebridade’, escrevia Machado de Assis em A Semana, em 14/2/1897. E, deixando brilhar o gênio, que nele faísca em todos os textos, sejam romances, contos ou crônicas, resume o ocorrido:

‘Estava comprando gazetas a um homem que as vende na calçada da Rua São José, esquina do Largo da Carioca, quando vi chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz descansada: – Me dá uma folha que traz o retrato desse homem que briga lá fora. – Quem? – Me esqueceu o nome dele’.

Machado, talvez influenciado pela esposa Carolina, portuguesa de nascimento e formação, ainda muito apegada à ortodoxia sintática, que no Brasil sofreria sérias transformações, ou por quem editou seus textos, fixando-os com concessões indevidas à língua portuguesa que entretanto evoluía em outras direções na modalidade coloquial brasileira, escreve ‘me esqueceu o nome dele’. Ora, a mulher teria dito evidentemente ‘esqueci o nome dele’.

Descontada a pequena imprecisão, o nome em questão era Antonio Conselheiro. No dia anterior, o D. Quixote tinha publicado um desenho de Ângelo Agostini que mostrava Antônio Conselheiro como um velho barbudo, de pé, cajado à mão, bacamarte cruzado nas costas, uma cruz dependurada na cinta, de botas, tendo uma multidão ajoelhada a seus pés. A legenda dizia:

‘O fanático e bandido Antônio Conselheiro. Sendo a ignorância a mãe do fanatismo, os sertanejos engrossam o tal conselheiro e os tais sertanejos beijam-lhe as vestes. Quem sabe se não lhe coçam o pé?’.

De novo precisamos dar os devidos descontos à forma escolhida: o brasileiro daquela época já preferia dizer de outro modo: ‘Vai saber se não coçam o pé dele?’, por exemplo.

Chapéu alto

Acima de tais detalhes, entretanto muito importantes para quem escreve, está a sagacidade machadiana, em nenhum momento nublada por vacilações léxicas ou sintáticas.

‘A mulher provavelmente não sabe ler, ouviu falar mal da seita dos Canudos, com muito pormenor misterioso, muita auréola, muita lenda, disseram-lhe que algum jornal dera o retrato do Messias do sertão, e foi comprá-lo, ignorando que nas ruas só se vendem as folhas do dia. Não sabe o nome do Messias; é `esse homem que briga lá fora´. A celebridade, caro e tapado leitor, é isso mesmo. O nome de Antônio Conselheiro acabará por entrar na memória desta mulher anônima, e não sairá mais. Ela levava uma pequena, naturalmente filha; um dia contará a história à filha, depois à neta, à porta da estalagem, ou no quarto em que residirem’.

Machado podia ser profético porque sabia ler o presente. ‘Esta é a celebridade. Outra prova é o eco de Nova Iorque e de Londres onde o nome de Antônio Conselheiro fez baixar os nossos fundos’. E avisava a gente da cidade: ‘Com teu nome nas folhas ou nas esquinas de uma rua, não chegarás ao poder daquele homenzinho’ que um dia haverá de ‘entrar nos almanaques’.

Cronista, ele sabia divagar com graça e a seguir, como se houvesse já um Observatório da Imprensa, passa a comentar o Jornal do Commercio, que noticiava as comemorações, na mesma Londres, do centenário do chapéu alto, invenção surgida em 15 de janeiro de 1797. E como nascera?

‘Ou foi exposto à venda naquela data, ou apontou na rua, ou algum membro do parlamento entrou com ele no recinto dos debates, à maneira britânica’.

E vaticinava o futuro do chapéu alto, já denominado cartola, mas também identificado como chaminé e canudo, a última denominação para ‘rebaixá-lo até à cabeleira hirsuta de Antônio Conselheiro’.

Negação suprema

Claro que não podemos exigir que os jornais nos dêem só Machado de Assis todos os dias ou ao menos uma vez por semana. De todo modo, há uma grande diferença de projeto editorial entre dar espaços a colunistas inventivos e manter o tedioso ramerrão das dezenas de colunistas, quase todos escrevendo do mesmo modo, sobre os mesmos temas, pasteurizados por editores que buscam sempre o mesmo, raramente o diferente, o original.

Costumam elogiar o novo com olhos velhos e cansados, incapazes de discernir o original. No máximo, chegam ao lugar-comum de dizer que acabaram de descobrir um humorista que escreve como Millôr ou Luis Fernando Verissimo – papas do gênero – esquecendo-se de que quando esses dois surgiram não imitaram ninguém, não se pareciam com ninguém.

O que fazem nossos editores? Ignoram o novo, as formas do novo e querem novos leitores. Os leitores de jornais e revistas envelhecem e, naturalmente, diminuem. Ressentido, quem erra a receita, a dieta, o jeito de arrumar a mesa, culpa os convivas. Ora, quem vai pagar para ler a maioria dos colunistas? Ler o quê?

Portanto, atenção, leitores. A mídia, ao manifestar tamanho desapreço pela qualidade dos textos de seus colunistas, manifesta antes um profundo desrespeito por você, leitor, achando que você engolirá tudo o que ela lhe servir.

Não é assim! Notem como os mais jovens (os que ainda lêem jornais e revistas), manuseiam os periódicos: vão procurando seções ou nomes conhecidos, sabedores de que há pouco o que garimpar. A língua portuguesa é chutada pela maioria logo no primeiro parágrafo. Quer dizer, dos jovens exige-se mão-de-obra qualificada para tudo, naturalmente para disfarçar um pouco mais as terríveis taxas de desemprego, menos para quem quer escrever na imprensa.

Por fim, Machado é a negação suprema de todas as quotas. Preto, pobre, epiléptico, gago, órfão e sem escola, venceu por seus méritos, seus esforços, tudo o que infelizmente a Bolsa-Família resolveu banir da vida brasileira. A classe dominante teve que engolir como representante supremo de nossas letras um homem que veio de baixo, lutando.

Textos de qualidade

Se houvesse um Bolsa-Família, Lula teria ficado no Nordeste. Esta é a verdadeira astúcia do processo social, tão bem resumida no clássico italiano O Leopardo (‘Il Gattopardo’), de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), transposto para o cinema por Luchino Visconti (1906-1976). Livro e filme podem ser resumidos na bela síntese que o romance apresenta: ‘É preciso que tudo mude para que tudo permaneça como está’.

E a imprensa? Ou muda ou não ficará mais como está: não terá mais leitores! Já há multidões de novos leitores, mas refugiados na internet. E os anunciantes, claro, baterão em retirada.

A imprensa precisa, com urgência, buscar textos de qualidade, revelar autores que saibam escrever. Somente assim ganhará novos leitores. Serão eles que a haverão de salvar, são sempre os leitores que salvam quem escreve, pois a tríade autor-obra-público é indestrutível.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br