Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa subestima reivindicações indígenas

O 19 de abril passou faz já um tempo, mas a semana passada que ofereceu oportunidade ímpar para uma reflexão dos jornalistas sobre a temática indígena no país. Dois eventos paralelos aconteceram, e a maneira como a chamada ‘grande imprensa’ brasileira os acompanhou dá pistas interessantes sobre como são pensadas e decididas nas redações as coberturas relativas às questões indígenas.

Em Brasília, um grupo de cerca de 1.200 lideranças, de mais de uma 150 povos vindos de todo o Brasil, acampou pacificamente no gramado da Esplanada dos Ministérios para levar aos poderes federais suas reivindicações e prioridades, dialogando com ministros, parlamentares e toda espécie de líder branco envolvido em temas como demarcação de terras, saúde e educação que se disponha a recebê-los. Foi o 6º Acampamento Terra Livre, liderado pelas principais organizações indígenas do país, como a Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), a Apoinme (Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste e Minas Gerais), a Arpinpan (Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal) e a Arpinsul (Articulação dos Povos Indígenas do Sul), entre outras.

A representatividade do acampamento é indiscutivelmente ampla. O momento era propício para os jornalistas descobrirem quais são os novos focos de conflitos indígenas depois do desfecho da disputa em Raposa/Serra do Sol. Por exemplo, estavam lá presentes diversas lideranças do Mato Grosso do Sul, estado onde, recentemente, os fazendeiros prometeram ‘guerra aos índios’ (ver aqui), caso persista o plano de demarcações da Funai em curso. Em março (O Estado de S.Paulo, 23/3/2009), o próprio presidente da Funai avisou que, depois de resolvida a situação em Roraima, o novo foco de tensões fundiárias é o Mato Grosso do Sul.

Estatuto anacrônico

Vindos desse estado, estão em Brasília dezenas de lideranças dos Guarani-Kaiowa, o grupo indígena que é campeão nacional, hoje, em matéria de violações de direitos humanos. Um relatório publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na segunda-feira (4/5) atualizou os números de uma tragédia que prossegue há quase duas décadas: a maioria absoluta dos assassinatos e suicídios entre povos indígenas no país, hoje, acontece nas comunidades Guarani-Kaiowa. Na raiz dos problemas está a falta de terras.

Em Brasília, também, estavam em discussão questões cruciais para o futuro desses povos. Primeiro, as consequências das 19 condições impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) às novas demarcações de terras indígenas, durante o julgamento das ações contra a demarcação de Raposa: não está claro qual será sua abrangência, nem a competência para definir, por exemplo, como se dará a participação de estados e municípios nos processos, ou mesmo como ficará a situação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que, apesar de ratificada pelo Congresso Nacional há mais de cinco anos, foi claramente atropelada pelo STF.

Segundo, estavam também em discussão no Terra Livre os acertos finais no projeto do Estatuto dos Povos Indígenas, que deve ser enviado pelo governo federal ao Congresso depois de ampla concertação entre as comunidades indígenas. A versão anterior está parada no Congresso desde o início da década passada. O estatuto em vigor data de 1973, é tão anacrônico como a recentemente derrubada Lei de Imprensa e se baseia em princípios evolucionistas que são constrangedores para um país com uma Constituição tão avançada como a nossa.

Debates negligenciados

Tudo isso aconteceu em Brasília, numa semana particularmente fraca em matéria de notícias na capital federal. Ao mesmo tempo, em São Paulo, um grupo de 100 índios ocupou a sede da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) no estado, como forma de protestar contra as más condições de atendimento nas aldeias. Eles pediram a substituição do coordenador estadual da Funasa. É um problema sério, certamente, mas a dimensão do protesto é incomparável com a do acampamento que acontece em Brasília.

O que explica, então, a visível discrepância no espaço concedido aos dois eventos na cobertura jornalística da semana? A ocupação em São Paulo mereceu até link ao vivo em telejornal na quarta-feira (6/5). Não me lembro de ocasião em que o acampamento em Brasília, que já está em sua 6ª edição, tenha merecido privilégio semelhante. Não vou me alongar. O artigo é um chamado para o debate: os participantes deste fórum podem opinar livremente no espaço dos comentários.

Traço, apenas, breve hipótese baseada na experiência pessoal como repórter, editor e pauteiro. Recentemente, um conhecido me falou da reação que recebeu, em uma grande Redação onde trabalha, sua proposta de cobertura sobre uma questão indígena: ‘Já morreu alguém? Há conflito? Feridos? Não? Então, não temos como dar prioridade’. Esse caso parece típico. O que define o espaço dado aos povos indígenas na cobertura, no que se refere a questões políticas, é a violência, a tragédia, o escândalo. Debates sobre questões estruturais, como os que acontecem esta semana em Brasília, são, sistematicamente, negligenciados.

Tesouro cultural

Não se trata de exceção, claro: poderia citar temas como a reforma agrária e os movimentos de luta pela terra como exemplos de tratamento semelhante. O que torna a cobertura sobre os povos indígenas particularmente perversa é que ela colabora para a manutenção do racismo. As representações expostas nas reportagens (sem falar no desequilíbrio gritante em alguns veículos no que se refere aos artigos de opinião) estão, quase sempre, muito próximas dos estereótipos construídos ao longo de 500 anos de colonização, sejam eles negativos – bárbaros, violentos, bêbados, imprevisíveis, temperamentais – ou traiçoeiramente positivos – ‘bons selvagens’, em harmonia com a natureza etc.

Como num círculo vicioso, só merecem destaque na imprensa manifestações desesperadas – como a ocupação de um prédio público – que as comunidades utilizam como recurso extremo, depois de esgotadas todas as possibilidades de diálogo. No campo dos direitos, por sua vez, a ênfase, como acontece nas ações afirmativas voltadas à população negra, é na apresentação de direitos inscritos na própria Constituição brasileira há mais de 20 anos, depois de amplo debate público nacional, como meros ‘privilégios’. No caso dos índios, como demonstra o estatuto de 1973, estamos falando de um tratamento rejeitado há muito pelos povos indígenas. Para eles, instrumentos como a tutela têm se convertido muito mais em aborrecimentos e dificuldades do que em solução para seus problemas.

Vivem hoje no Brasil quase 1 milhão de pessoas de mais de 220 povos indígenas, que mantêm 180 línguas e ocupam quase 13% do território nacional. Quando será que a evidente riqueza potencial dessa diversidade cultural será mais bem percebida pelo debate público nacional?

A imprensa brasileira tem imensa responsabilidade na promoção do respeito, da tolerância e da compreensão do valor desse tesouro cultural. E, por enquanto, não parece estar à altura do desafio.

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Jornalista e antropólogo, pesquisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP