Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Ines Garçoni

‘João Goulart tinha origem nas bases sindicais e assustava os militares desde os tempos em que era ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, nos anos 50. Por isso, só assumiu a Presidência em 1961, depois da renúncia dee Jânio Quadros, porque aceitou a condição das Forças Armadas: teria seus poderes reduzidos num parlamentarismo aprovado às pressas pelo Congresso. No Planalto, Jango anunciou as reformas de base – agrária, fiscal, administrativa, entre outras. Em 1964, defendendo uma política que para os conservadores cheirava a comunismo, já estava entalado na garganta dos militares. Em 13 de março, assinou sua sentença: na tentativa de provar que tinha o apoio popular, discursou na Central do Brasil, no Rio, para cerca de 200 mil pessoas, ao lado do cunhado esquerdista Leonel Brizola. ‘As bandeiras vermelhas pedindo a legalização do PC, as faixas que exigiam a reforma agrária, etc. foram vistas pela televisão, causando arrepios nos meios conservadores’, diz o historiador Boris Fausto, no livro História do Brasil. Foi uma provocação. Os militares o acusaram de tentar um golpe comunista. Quinze dias depois, em 31 de março, tropas de Minas Gerais e de São Paulo marcharam para depor o presidente. Com a derrota inevitável, em 1º de abril Jango rumou para o exílio no Uruguai. Assumiu o cargo para o moderado marechal Humberto Castelo Branco – o que não impediu a escalada da repressão aos opositores nos primeiros anos. Políticos foram cassados, a União Nacional dos Estudantes entrou na clandestinidade e universidades foram invadidas no dia seguinte ao golpe. Em 1965, estava instaurada a ditadura de fato, quando foi instituída a eleição indireta para a Presidência.’



Murilo Fiuza de Melo

‘No Rio, seminários dissecam período’, copyright Folha de S. Paulo, 20/03/04

‘Quarenta anos depois, o golpe militar de 31 de março de 1964 será tema de três seminários, no Rio, entre os dias 22 e 2 de abril.

A idéia é dissecar o período do regime militar, analisado sob várias perspectivas (histórica, política, cultural, social) pela ótica de personalidades da época, políticos, historiadores, militares, cineastas, dramaturgos, shows de música, peças e leitura de poesias.

O primeiro seminário, mais acadêmico, é o ‘40 Anos do Golpe: 1964/2004’, organizado pelo CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), da Fundação Getúlio Vargas, em parceria com a UFRJ e a UFF (Universidade Federal Fluminense). De 22 a 26 de março, pesquisadores vão discutir luta armada, censura, repressão, milagre econômico, cultura, cinema e outro temas.

‘Trata-se de um balanço da atual historiografia sobre o golpe de 64. Durante muito tempo, a análise histórica sobre a ditadura se baseou na análise memorialística, fundamentada em jornais. Hoje, com acesso à documentação de fontes primárias, começamos a pensar em uma análise mais interpretativa da época’, afirma o historiador Carlos Fico, coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, um dos organizadores do seminário. Estarão presentes o sociólogo Chico de Oliveira, da USP, e o historiador Jacob Gorender.

Gorender, aliás, estará nos outros dois seminários. Em ‘64+40: Golpe e Campo(u)s de Resistência’, organizado pelo CFCH (Centro de Filosofia e Ciências Humanas) da UFRJ, o historiador será um dos palestrantes da mesa ‘Ditadura e Resistência’. De 29 de março a 2 de abril, serão discutidos variados temas sobre a época.

Gorender também será uma das atrações do seminário ‘Pensando 1964’ -de 23 a 26 de março, no CCBB,do Rio-, que contará com as participações do brasilianista Thomas Skidmore, do poeta Ferreira Gullar e dos historiadores Celso Castro (FGV) e Daniel Aarão Reis Filho (UFF).’



Alexandre Martins

‘Um golpista legalista’, copyright Jornal do Brasil, 20/03/04

‘Justiça fardada, Renato Lemos, Bom Texto Editora, 368 páginas R$ 47

É possível considerar defensor do primado da Lei alguém que em duas oportunidades conspirou contra um presidente eleito segundo as regras vigentes? E como explicar que, entre esses dois episódios, tenha enfrentado seus pares para defender outra posse apelando para a Constituição? A mesma pessoa que, após defender um governo implantado por intermédio de ato claramente ilegal, passe quatro anos combatendo esse governo usando como argumento a legalidade? Essa aparente contradição é a questão abordada em Justiça fardada, do pesquisador Renato Lemos, que traça um perfil do general Peri Constant Bevilaqua, apoiado nos pareceres e votos dados por ele quando foi ministro do Superior Tribunal Militar, nos primeiros anos do regime de 64.

Peri Constant Bevilaqua, que morreu em 1990, aos 91 anos de idade, era neto de Benjamin Constant, militar, organizador do golpe que instaurou a república, ministro da Guerra do Governo Provisório (1889-1891) e pioneiro na divulgação do Positivismo no Brasil, princípios que o neto defendeu e que muitas vezes serviram de argumento aos dois lados das polêmicas em que se envolveu. A identidade entre ambos foi usada, por exemplo, pelo general Olímpio Mourão Filho para convencê-lo a conspirar contra João Goulart, e pelo deputado comunista Marco Antônio Tavares Coelho, que contava com seu apoio classificando-o como militar legalista. ‘Legalismo’ que, segundo Renato Lemos, o levou a apoiar em 1954 um movimento contra um presidente eleito, e em 1964, em cargo de confiança, a permanecer ‘em posição de dúbia neutralidade em face da conspiração contra o chefe do Executivo’ que ajudara a tomar posse.

Peri Bevilaqua começou sua cerreira em 1917, na Escola Militar de Realengo, no Rio, e viu as revoltas tenentistas de 1922 e 1924. Capitão desde 1925, integrou a secretaria da Junta Pacificadora que depôs o presidente Washington Luís em outubro de 1930. No último ano do segundo governo Vargas (1951-1954), já general-de-brigada, foi um dos 30 generais que exigiram a renúncia do presidente pelo atentado praticado contra Carlos Lacerda, dizendo que esse seria ‘o melhor caminho para tranqüilizar o povo e manter unidas as Forças Armadas, processando-se a sua substituição de acordo com os preceitos constitucionais’.

Quando da renúncia de Jânio Quadros, Bevilaqua comandava a 3ª Divisão de Infantaria em Santa Maria (RS), e foi um dos poucos a opôr-se ao veto à posse de João Goulart, defendendo a obediência à Constituição. Sua postura teria sido fundamental para garantir a posse de Jango.

Outra importante faceta do comportamento de Bevilaqua, a de nacionalista, ficou patente em 1962, quando, comandante da 3ª Região Militar em Porto Alegre, escreveu uma carta ao governador Brizola apoiando a encampação da Companhia Telefônica, de uma empresa norte-americana. Publicada nos jornais, a carta custou a ele uma prisão domiciliar de dois dias. No mesmo ano, ‘já identificado como um expressivo líder legalista-nacionalista’, segundo Renato Lemos, disputou a presidência do Clube Militar contra adversários liberais e foi derrotado em pleito em que houve suspeitas de fraude. Algo que em 1967, já ministro do STM, recordou em declaração de voto sobre pedido de habeas corpus impetrado em favor do coronel reformado Pedro Álvares: ‘Desgraçadamente, conheço por experiência própria as cavilosidades e as reservas insondáveis de falta de escrúpulo dos ‘trusts’ e de seus seguidores, estes algumas vezes iludidos em sua boa fé. Essas idéias nacionalistas assustaram os trustes e serviram de toque de alarme. E qual foi a sua reação? Uma campanha insidiosa buscando confundir o nosso puro ideal nacionalista com o comunismo, caluniando a chapa União de comunista. E esses interesses espúrios levaram algumas pessoas de boa fé e bem intencionadas a admitir que em hipótese nenhuma o Clube Militar seria entregue aos comunistas. E atiraram-se, uns poucos sócios destituídos de escrúpulos, à execução de um plano amoral – fraudar o pleito pela falsificação maciça de votos a fim de anular, pela duplicidade, os votos bons recebidos pela chapa União.’’

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‘Alertas contra o totalitarismo’, copyright Jornal do Brasil, 20/03/04

‘As concepções conservadoras positivistas de Bevilaqua ganharam peso no início de 1963, quando, com o fim do parlamentarismo, recusou proposta do General Odilio Denys de combater Jango, dizendo ‘que não poderia participar de um movimento contra o governo, pois tinha por princípio ser a favor da legalidade’. Mas, promovido a general-de-exército, atacou organizações sindicais que considerava ilegais, como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o que o aproximou da Direita. Conservador, legalista e defensor da hierarquia, foi pivô de nova crise ao condenar a ligação entre suboficiais da Marinha e da Aeronáutica que pleiteavam o direito disputar cargos legislativos e sindicalistas que sustentavam o governo. Perdeu o comando do 2º Exército, que então ocupava, e foi promovido a chefe do Estado Maior das Forças Armadas, função que ocupou ainda durante um ano sob o general Humberto Castelo Branco, que assumiu a Presidência em 1964 após o golpe que, no mínimo, Bevilaqua não teria tentado impedir.

Embora tenha inicialmente apoiado o novo governo, que, em março de 1965, definiu como ‘administração saneadora e previdente inaugurada no país’, o general divergia da sua política econômica e repressiva, tendo inclusive questionado a aplicação do Ato Institucional nº 1. Foi então exonerado da chefia do EMFA e nomeado ministro do Supremo Tribunal Militar. Lá, como em vários outros cargos que ocupou, continuou a desafinar da orientação central, defendendo, por exemplo, a anistia política e criticando a Lei de Imprensa. Mesmo quando vencido, fazia questão de registrar sua justificativa de voto, sempre apoiado em preceitos legais, que acabaram servindo de argumento para advogados de presos nos pedidos ao Tribunal. Questionou a competência da Justiça Militar para julgar crimes considerados políticos, afirmou que não havia crime a punir no caso de atos cometidos no ambiente das leis em vigor até o movimento militar de 1964 e fez campanha contra o uso político dos Inquéritos Policiais-Militares, classificados por ele de ‘bolchevização da Justiça’. Concedia habeas corpus e, cada vez menos golpista e mais legalista, chegou a classificar a decretação do Ato Institucional nº 2 de golpe de Estado e a Lei de Imprensa de ‘petardo atômico nos alicerces da Democracia’.

Incompatibilizado com o governo, foi afastado compulsoriamente do STM em 16 de janeiro de 1969, com base no AI-5, apenas três meses antes da data em que teria obrigatoriamente de se aposentar por atingir a idade-limite de 70 anos. O anticomunista, golpista, nacionalista e legalista Peri Constant Bevilaqua saiu então de cena, mas não sem ter deixado alguns alertas, como o contido na declaração de voto em favor da concessão de habeas corpus a Vladimir Palmeira, em agosto de 1968: ‘Desgraçado do povo que perde a confiança na Justiça de seu País. É lançado ao desamparo, presa fácil de qualquer aventura totalitária’. Um alerta que deveria ser ouvido no contexto atual por delegados de polícia, comandantes de batalhões da PM e juízes civis.’

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‘Livros fundamentais para se entender o golpe de 64’, copyright Jornal do Brasil, 20/03/04

‘A ditadura derrotada, Elio Gaspari, Companhia das Letras

A ditadura envergonhada, Elio Gaspari, Companhia das Letras

A ditadura escancarada, Elio Gaspari, Companhia das Letras

Os idos de março e a queda de abril, Alberto Dines, Carlos Castello Branco e outros, Editora José Álvaro

O ato e o fato, Carlos Heitor Cony, Objetiva

1964: a conquista do Estado, René Dreiffus, Vozes

História indiscreta da ditadura e da abertura. Brasil 1964-1985M, Maria Celina D’Araújo, Record

O fantasma da revolução brasileira, Marcelo Ridenti, Unesp

1964: visões críticas do golpe, Caio Navarro Toledo (org.), Editora da Unicamp

O Brasil republicano. O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século 20. , Jorge Ferreira e Lucília de Almeida Neves (orgs.), Civilização Brasileira

O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil 1961-1964, Moniz Bandeira, Civilização Brasileira

21 Anos de regime militar. Balanços e perspectivas, Thomas Skdimore, FGV

Brasil: de Castelo a Tancredo, Thomas Skidmore, Paz e Terra

Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão, Maria Celina D’Araujo, Glaucio Ary Dilson Soares e Castro Celso, Relume Dumará

Sessenta e quatro: anatomia da crise, Wanderley Guilherme dos Santos, Vértice

A democracia interrompida, Gláucio A. Dillon Soares, Editora FGV

O modelo político brasileiro e outros ensaios, Fernando Henrique Cardoso, Difel

A revolução faltou ao encontro, Daniel Aarão Reis Filho, Perseu Abramo

Comando Geral dos Trabalhadores no Brasil (1961-1964), Lucilia de Almeida Neves, Vozes

A esquerda e o golpe de 64, Denis de Moraes, Espaço e Tempo

As esquerdas e a democracia, Marco Aurélio Garcia (org.), Paz e Terra

Ditadura militar, esquerdas e sociedades, Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Zahar

Conformismo e resistência, Marilena Chauí, Brasiliense

Exílio: entre raízes e radares, Denise Rollemberg, Relume Dumará

Rabo de foguete, Ferreira Gullar, Revan

O que é isso companheiro?, Fernando Gabeira, Codecri

Combate nas trevas, Jacob Gorender, Ática

Dois filhos deste solo, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, Boitempo

Viagem à luta armada: memórias romanceadas, Carlos Eugênio Paz, Civilização Brasileira’