O tema deste artigo retoma insistente questão que, a despeito da ineficiência quanto a possíveis efeitos, nem por isso deva ser descartada. A imprensa, em especial a brasileira, padece há algum tempo de ‘informatite’, à qual agrega outro deformante sintoma: ‘excitatite’. Assim, com dupla ‘inflamação’, os órgãos de comunicação debilitam tanto a saúde das matérias jornalísticas quanto a dos respectivos leitores.
Informação ininterrupta e excitação permanente travam o esforço de inserção do pensamento crítico. Principalmente os profissionais mais jovens parecem proibidos ou incapacitados de qualquer elaboração capaz de romper o viciado esquema dominante na prática jornalística nacional. Nesse modelo, inexiste espaço para análise ou para interpretação. Uma e outra são vistas como venenos letais, o que redunda numa fórmula cuja repercussão subjetiva no leitor é mínima para não dizer nenhuma.
O quadro de ‘infecção’ diagnosticado na atividade jornalística ainda se faz mais preocupante no terreno da política. Aí mesmo, é que quase ninguém arrisca coisa alguma. A maioria opta por um ‘colete’ de proteção cerebral, limitando-se a reprodução de fatos. Vamos esboçar algo, à altura de conferir melhor visibilidade à avaliação aqui proposta.
Em favor da análise
Seja na mídia impressa, seja na mídia eletrônica, o recente conflito entre ministérios (Casa Civil e Fazenda), tendo à frente respectivamente as figuras de Dilma Roussef e Antonio Palocci, foi alvo de dezenas de matérias que ainda se multiplicaram em outras tantas em função do modo como se comportou o presidente da República. Tudo que os meios de comunicação poderiam, em torno do episódio, informar, foi, além de informado, repetido à exaustão.
A ‘cultura da fofoca’ beirou o ponto máximo. Pois diante de tanta oferta, nada parecia ultrapassar a fronteira da retroalimentação de mero caráter repetitivo, à altura de escapar da mesmice em favor de uma ‘leitura crítica’ que expusesse o subtexto das intencionalidades, gerador do fato. Para não radicalizar, ali e acolá, vozes tímidas arriscaram inferir que, por trás da declaração da ministra, dada a pasta que ocupa, estaria o próprio presidente. Bem, mas aí mesmo é que o problema jornalístico toma maior proporção. Inferir sem argumentar significa mais leviandade que prospecção crítico-analítica. Nesse caso, convém não avançar o sinal da notícia, permanecendo no plano rasteiro da informação factual.
O quadro parecia tétrico até a publicação da matéria do jornalista Kennedy Alencar, na edição dominical da Folha de S.Paulo (‘Lula apóia Dilma e rejeita nova elevação do superávit’, 20/11/05). Mais importante, porém, do que a manchete era o antetítulo: ‘Auxiliar do presidente afirma que ministro da Fazenda não é o dono do governo’. Na verdade, a frase real, no corpo da matéria, era: ‘O presidente não vai deixar ninguém ser dono do governo’. Ali, posta em segundo plano, se encontrava a chave com a qual se abre a porta para o alargamento de visão a respeito dos fatos da realidade.
O que seria exemplo de inserção crítica na contramão do modelo jornalístico dominante? Tomando como referência o fato já mencionado, a primeira questão a ser formulada giraria em torno dos interesses em jogo. O que leva uma ministra tão próxima ao presidente desferir crítica frontal a outro ministro justamente na semana na qual fogo cerrado era dirigido ao ministro, alvo da crítica?
A simples formulação dessa pergunta impõe o exercício analítico. Ora, se momento apropriado houvesse para a crítica nos termos em que ela foi posta, seguramente não seria aquele. Estratégia diversionista? Se alguém pensou nessa possibilidade, terá dado prova cabal de incapacidade de avaliação do quadro. Com a crítica da ministra Roussef, o ministro Palocci ficou ainda mais exposto à fragilização da imagem. Restam, pois, os interesses reais. Para tanto, a atividade jornalística, muito ocupada com o texto, não pode prescindir do investimento no contexto. Com isso, afirma-se que o texto é da ordem da informação; o contexto é da competência da análise. Desvincular a informação da análise representa destinar à informação um caminhar nulo e vazio.
A estratégia da gangorra
Retroagindo a passado não muito distante, constata-se, quase com clareza absoluta, a neutralização, um por um, de qualquer integrante do governo (ou do partido do governo) cuja imagem estivesse associada a prestígio. Se formos aos episódios da história, perceber-se-á primeiramente a paulatina marginalização dos intelectuais e/ou ideólogos do Partido dos Trabalhadores. Afora os que saíram, os raros que permaneceram foram subtraídos pela invisibilidade e pela anomia.
Igual procedimento, passo a passo, se foi consolidando na esfera governamental. Se a memória não falha, a seqüência foi essa: Carlos Lessa, Frei Betto, Cristovam Buarque, Tarso Genro e José Dirceu. Inclua-se na lista também a figura da própria ministra Dilma Roussef. É preciso lembrar que, à frente do ministério das Minas e Energia, Roussef, reconhecidamente, gozava de alto prestígio pela competência com que conduzia os projetos. Seu deslocamento para a Casa Civil só concorreu para enfrentamentos desgastantes.
A única figura do governo, além da imagem ‘olímpica’ do presidente da República, que sobrevivia com cacife alto era o ministro da Fazenda. Chegou a sua vez. Nesse contexto, é que se compreende a frase proferida pelo assessor do presidente, reproduzida na matéria de Kennedy Alencar.
Como processo de dissimulação, que procedimento teve o presidente da República? Nos primeiros dias, fez passar discreto apoio à crítica da ministra; em seguida, dada a rentável atuação do ministro na sabatina do Senado, o presidente deu depoimento de reforço à permanência do ministro da Fazenda. Quando indagado a favor de qual dos dois litigantes o presidente estava, respondeu assim: ‘Estou a favor do povo brasileiro’.
Como ninguém sabe de que lado está o povo brasileiro, fica por isso mesmo. E, assim, entre discursos desencontrados, aplicando tosca ‘estratégia da gangorra’, o presidente segue sua trilha, livrando-se de quem lhe pode fazer sombra.
O que a pontuação anterior quis insinuar? Para além das fronteiras dos fatos, um aspecto comum liga todos os desafortunados: inteligência, eficiência e prestígio. Em síntese, todos que poderiam lançar alguma sombra sobre a figura do presidente, curiosamente, conheceram a experiência da ‘queda’. A falta de respaldo do presidente ao ministro só pode ser compreendida – descartada a hipótese pouco provável da insensatez – pelo viés da estratégia da diluição. Falta, contudo, ainda melhor enquadramento ao roteiro analítico.
Suporte de campanha
Aproxima-se o ano eleitoral. A bandeira a ser desfraldada pelas hostes governamentais só encontra apoio no setor do gerenciamento da economia, e, ainda assim, descontadas as deformações. Ora, lançar-se a um projeto de reeleição, dispondo apenas do trunfo do mito do crescimento econômico, da estabilização da inflação e da moeda, significa deslocar para o centro das atenções os nomes à frente do ministério da Fazenda (Palocci) e do Banco Central (Henrique Meireles: lembremo-nos de que este já teve o período de pressão); ou seja, nada poderia ser creditado à figura mesma do presidente da República, a não ser sua vocação ‘discursivista’ sempre temperada de alucinações tropicais, entoando cânticos compostos no ‘oásis’ do Planalto.
No caso anterior – governo FHC – a bandeira da eficiência econômica estava inteiramente associada à imagem do presidente. Afinal, além de sua formação intelectual, liderara a equipe formuladora do Plano Real. A credibilidade oriunda do plano assegurou, no primeiro turno, a vitória nas eleições.
No caso atual, pelas razões já expostas, a situação é exatamente oposta. Para a campanha, algo terá de surgir que esteja diretamente integrado à imagem do presidente. Recursos até agora engessados terão de ser liberados. A lógica que rege o ministro da Fazenda não segue a cartilha das aspirações presidenciais. Daí, decorre o impasse e, dele, advém a fritura com suficiente efeito para deslustrar, sem exterminar.
Se a ‘estratégia da gangorra’ vai ter sustentação como suporte de campanha, é a dúvida que fica em aberto. Seja como for, é assim que tem sido, a exemplo da capacidade de o presidente, num mesmo discurso, conseguir, por ‘lapso’, conforme declarou, proclamar-se candidato à reeleição para, em seguida, desdizer. Foi apenas modesto exercício de análise.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha – Rio de Janeiro)