De um lado, uma empresa que tem como objetivo empacotar a informação apurada ao longo do dia em uma edição de papel a ser distribuída na manhã seguinte. Do outro, um grupo que além do tal produto em papel, abastece um site 24 horas por dia com notícias em textos, fotos, vídeos e infográficos e distribui conteúdo e interage com os leitores também pelas redes sociais. Estas não são, na verdade, empresas em lados opostos, mas sim o mesmo jornal em momentos distintos, separados por um intervalo de mais de duas décadas. A transformação ocorrida neste período faz parte de um ciclo que ainda não está completo e que não pode ser concretizado sem mudanças expressivas em toda uma lógica administrativa, produtiva e comercial.
Mudanças de mentalidade, de comportamento e de ação prática no fazer jornalismo. É fundamental preservar a essência, o jornalismo reconhecido como utilidade pública, a informação verdadeira e relevante para uma sociedade democrática, o trabalho de apuração e checagem devidamente realizado com responsabilidade por profissionais. Mas resistir ao que muda em todo o entorno profissional na era digital é, além de não se preparar para o futuro, negar o próprio presente.
No livro “Inversão de papel: prioridade ao digital, um novo ciclo de inovação para jornais impressos”, lançado agora em julho pela Editora Insular aponta-se a priorização da produção de conteúdo informativo para as plataformas digitais em redações com um fluxo de trabalho até então regrado pelo ritmo do impresso como um novo e necessário ciclo de inovação em empresas jornalísticas. Trata-se de uma inversão de papel que acarreta mudanças de formatos narrativos e de processos de produção, com impactos em diferentes frentes, promovendo, por exemplo, a antecipação das jornadas de trabalho e a criação de diferentes deadlines dentro do mesmo dia. Um movimento que exige investimento em pessoal, tanto em quantidade quanto em qualidade, diante da necessidade de novos perfis e do respeito às questões trabalhistas.
O ponto de largada do trabalho foi um levantamento sobre as transformações nos processos de apuração, produção, formatação e distribuição do conteúdo jornalístico na era da internet. Nestes mais de 20 anos de experimentações e testes em redações mundo afora, inicialmente replicando no meio on-line o que se fazia em outras plataformas, muita coisa mudou radicalmente. Aos poucos, diante dos recursos que só a rede oferece e trabalhando com técnicas em constante modernização, passou-se produzir conteúdo jornalístico pensado especificamente para o ambiente on-line, aproveitando características como a hipertextualidade e o alcance proporcionado, a multimidialidade como integração de diferentes recursos em um mesmo produto informativo, e a interatividade como uma nova forma de se relacionar com o público consumidor. Neste contexto, a apresentação da notícia e da reportagem na internet é, ou pelo menos tem potencial para ser, diferente daquelas publicadas em papel ou exibidas na rádio ou na TV.
Mas, ao mesmo tempo que apresenta novas potencialidades, a internet traz grandes desafios. O resgate da credibilidade, diante da acentuada velocidade do ritmo de apuração, é um dos pontos cruciais a serem trabalhados. A ideia a ser desmistificada, no entanto, é a de que a internet é um espaço sobretudo para publicação de textos curtos, superficiais e imediatistas. Se em algum momento do passado foi realmente assim, hoje, porém, definitivamente esta não é a regra geral.
A organização do trabalho é outro ponto chave no cenário contemporâneo. Estudado e debatido ao longo das últimas décadas, o conceito da convergência encontra definições mais eficientes na teoria do que na prática. Manter uma equipe multimídia capacitada para informar em diferentes formatos a serem divulgados em distintas plataformas é um desafio e tanto. A tendência contemporânea das redações é de uma captação integrada, com apuração e redação conjunta; e de uma edição “desintegrada”, com núcleos separados para que cada plataforma tenha seu empacotamento.
Tal desafio se agrava profundamente quando o discurso de integração é adotado por empresas mais interessadas em reduzir custos, incluindo despesas com pessoal. A proposta de “promover” um funcionário ao posto de jornalista multimídia como o desafio de fazer de tudo um pouco é uma visão cada vez mais fragilizada, ainda mais quando tal promoção não vem acompanhada de uma prévia capacitação técnica nem de uma contrapartida financeira no salário. A produção multimídia em uma redação convergente passa por treinamento, organização, planejamento e mudanças de mentalidade dos gestores e dos próprios produtores, o que é inviável sem a disposição da empresa em investir pensando em longo prazo. Ou seja, com a meta de gerar um produto de qualidade capaz de atender às demandas do público e de gerar renda ao conseguir convencer tal público a pagar pelo conteúdo oferecido.
O trabalho em equipe e um perfil mais multidisciplinar ganha força dentro da redação. Para fazer companhia aos jornalistas, fotógrafos e diagramadores/designers, chegam cinegrafistas, editores de vídeo, programadores, analistas de redes sociais e profissionais de tecnologia para ajudar a pensar a inovação necessária, entre outras categorias a serem incorporadas no futuro. Gestores com uma visão mais ampla das necessidades do fluxo digital tendem a tomar a frente no comando das redações. Surgem novas parcerias com universidades, centros de pesquisa e empresas terceirizadas, principalmente para produções envolvendo a incorporação ao jornalismo de tecnologias mais recentes, como a realidade virtual.
Tantas transformações exigem que o próprio modelo de negócio das empresas jornalísticas seja repensando. Rentabilizar com sucesso o jornalismo profissional na era digital é uma questão ainda em aberto. Mas entre dúvidas que permeiam o setor, alguns pontos já são fato concreto, como o dado de que desde meados de 2014, na média do mercado mundial, os jornais estão conseguindo mais dinheiro do público que paga para acessar conteúdo do que dos anunciantes, grupo que foi a principal fonte de renda dos impressos nos últimos anos.
Do ponto de vista comercial, a preocupação das empresas é com a lucratividade, diante da queda de circulação e de publicidade ocorrida nos últimos anos. Mas uma ressalva é necessária: a constatação de que o lucro não é e nem será o mesmo que foi no passado, não significa que as empresas jornalísticas não possam continuar lucrativas. Qualquer comparação com a época na qual os jornais impressos estavam recheados de anúncios, com cadernos periódicos de classificados e circulação crescente, pode frustrar os atuais gestores. Mas traçar metas pautadas pela realidade atual pode, sim, gerar resultados a serem comemorados. Os desafios são grandes, isto é uma realidade. O público pagante pelo conteúdo digital precisa crescer em quantidade e em valor, e em uma velocidade mais acentuada do que a registrada até agora. Com investimento e inovação, porém, bons resultados já estão aparecendo.
Esta necessária disposição em investir e inovar com foco na plataforma digital é o que chamamos aqui de uma inversão de papel. O jornalismo continua, mas muda a plataforma. A versão impressa permanece sendo publicada, e deve seguir assim por mais muitos anos, embora possa mudar a periodicidade. Mas a prioridade das redações convergentes já deve ser o digital. O que exige uma nova forma de pensar, de produzir, de agir e de lucrar. Não se trata necessariamente de zerar e recomeçar o processo, mas, sim, de uma atualização no sentido de um aperfeiçoamento e de ter atenção com novas demandas específicas do contexto digital. Significa estar aberto para pensar procedimentos que não sejam diretamente influenciados pelo impresso, até então um produto com horários e demandas que perdem a força ou até mesmo deixam de ser necessárias quando a plataforma final é o on-line.
Saudosismos à parte, há um relativo consenso no discurso de gestores de que o produto impresso está diretamente ligado à geração que o consome atualmente. Os novos leitores estão na plataforma digital, consumindo conteúdo em computadores, tablets, smartphones e o que mais vir no futuro. É preciso, então, levar informação jornalística de qualidade para onde eles estão, e não esperar que estes venham até os jornais. Não se trata aqui de um discurso caça cliques, no sentido de oferecer conteúdo única e exclusivamente com o objetivo de gerar acessos. Mas de ofertar no digital o mesmo jornalismo profissional, relevante para a sociedade democrática, reconhecendo que o jornalismo on-line não é algo mais simples, que se faz com menos gente, menos tempo e menos dinheiro.
As ideias apresentadas no livro refletem a busca de uma maior aproximação do discurso teórico com a prática do mercado, por meio do estudo de exemplos de como redações convergentes estão lidando com tantas mudanças no cenário contemporâneo e como estão planejando os próximos passos. Questões aprofundadas por meio de 24 entrevistas com lideranças estratégicas de oito jornais: os espanhóis El País e El Mundo, o argentino Clarín, e os brasileiros Folha de S.Paulo, Gazeta do Povo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Zero Hora. De forma complementar, as mudanças no norte-americano The New York Times também são abordadas por meio de pesquisas divulgadas pela própria empresa jornalística
As reflexões ao longo de todo o trabalho culminaram em um guia com exemplos de boas práticas para as redações convergentes. São 10 ideias com demandas para o exercício da reportagem multimídia no cenário contemporâneo, onde entende-se que o digital é a prioridade. De forma resumida: 1) assegurar a equiparação salarial entre funções equivalentes no ciclo impresso e no ciclo digital; 2) trabalhar em equipe, envolvendo inclusive profissionais que não fazem parte diretamente da redação; 3) promover a visão multimídia ao longo das diferentes etapas de produção, do planejamento até a distribuição; 4) investir em treinamento interno e incentivar o treinamento externo dos atuais e dos novos funcionários; 5) comprar ou desenvolver sistemas eficientes para publicação de conteúdo on-line; 6) criar um fluxo de atualização do on-line em diferentes momentos do dia, independentemente do noticiário factual; 7) ampliar a equipe para antecipar o ritmo de produção, trazendo parte dos jornalistas mais cedo para a redação; 8) cobrar pelo conteúdo, mas não por qualquer conteúdo; 9) explorar a prática da grande reportagem jornalística como espaço para inovação e experimentação de formatos; e, enfim, 10) incorporar o fluxo digital como prioridade.
O fato de tantas mudanças ocorrerem sem que as empresas jornalísticas deixem de produzir diariamente torna tudo ainda mais difícil. Mas se por um lado, a correção de rumo pode exigir desacelerar em alguns momentos e gerar alguns atropelos na rotina, após uma efetiva virada de chave, é de se esperar que a velocidade aumente e na direção mais promissora.
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Alexandre Lenzi é jornalista e professor, doutor e mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina, e autor do livro “Inversão de papel: prioridade ao digital, um novo ciclo de inovação para jornais impressos”, Editora Insular.