Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Irresponsabilidades da imprensa

O ministro Luiz Gushiken não é um paladino da liberdade de expressão. E tem muito poder em face da mídia – é o homem que controla as verbas de publicidade do governo. Mas Veja (nº 1867, de 18/8) faz uma inacreditável comparação entre uma frase de Gushiken e a perseguição aos judeus na Alemanha hitlerista. Digna do contorcionismo panfletário de um Michael Moore, preconceituosa, reza assim:

‘A última do ‘China’ [sic]. Na Alemanha nazista, ser judeu não era uma questão absoluta. Goebbels decidia quem era judeu. Gushiken disse que a liberdade de imprensa também não é absoluta’.

Veja foi irresponsável na sua editorialização, assim como no episódio da acusação sem fundamento ao então deputado Ibsen Pinheiro (em 1993), relatado na edição de IstoÉ (nº 1.819, de 18/8). Será que Ibsen age corretamente ao desistir de buscar na Justiça reparação material? Talvez queira fugir da companhia dos picaretas da indústria da indenização. Mas o processo seria educativo, em mais de um sentido.

É uma pena que IstoÉ, ao editar sua reportagem de capa a respeito da matéria fraudada de Veja, tenha se esquecido de mencionar, a título exemplificativo, que ela mesma publicou recentemente acusações sem comprovação a uma pessoa, Givaldo Siqueira, usando para tanto, entre outras coisas, a inversão completamente fraudulenta de uma declaração do jornalista Armenio Guedes, como se denunciou neste OI (ver ‘A traição da reportagem’, http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=270IMQ007).

Nesse tiroteio, é bom não perder de vista que o problema – abusos e irresponsabilidades da imprensa, abusos de quem se queixa de abusos da imprensa – não deixou de existir porque a iniciativa do governo é inepta. O Congresso saberá, espera-se, encaminhar a questão democrática e sabiamente.

Limites da liberdade

A questão da ‘liberdade absoluta’ de imprensa virou mote – como era de se prever num contexto de editorialização desse metanoticiário –, maniqueísmo, Fla-Flu. Cabe insistir no seguinte ponto: a Constituição brasileira não estabelece que a liberdade de imprensa é absoluta. Não poderia fazê-lo. Por sinal, o adjetivo ‘absoluta’ só aparece no texto em duas situações: qualificando o substantivo ‘maioria’ (maioria absoluta), em diferentes passagens, e qualificando o substantivo ‘prioridade’, no artigo 227, relativo aos direitos da criança e do adolescente.

O jornalista Márcio Chaer, editor do site Consultor Jurídico (www.conjur.com.br), escreveu, em reportagem (1/9/2003) sobre reunião promovida pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP):

‘Gilmar [Mendes, ministro do Supremo] disse que o Estado de Direito é um universo onde não existem soberanos e que em canto algum do planeta existe liberdade ilimitada. Invocando o célebre juiz norte-americano do início do século passado Oliver Holmes, Gilmar repetiu que ‘a liberdade de expressão não protege, por exemplo, quem grita «fogo!» em um teatro lotado’.’

A discussão versava sobre um assunto que ainda não apareceu no debate atual, a possibilidade que a Justiça tem de impedir previamente (censura) a divulgação de determinadas notícias ou imagens. O ministro do STF esclareceu que não defendia a ‘banalização’ dessa possibilidade. Chaer, por exemplo, continua proibido por sentença judicial de primeira instância de dar determinada notícia.

No texto constitucional convivem (ou estão em conflito) o direito individual de não ser ofendido e o direito público da sociedade à informação. A inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas é tão importante quanto a livre expressão da atividade de comunicação. Ou uma coisa é mais importante do que a outra?

Uma referência teórica conhecida é a discussão de Isaiah Berlin sobre liberdade positiva, a que é regulamentada pelo Estado em benefício de todos (‘liberdade para’), e liberdade negativa (‘liberdade de’, no sentido de ‘estar livre de’), a que refreia a ação do Estado para que o indivíduo possa fazer livremente suas escolhas.

Um pouco mais de clareza no debate será indispensável.

Legalidade e ética

Chaer disse ao OI que deveria haver um órgão intermediário, uma instância administrativa, não judiciária, como as que regulam conflitos dos contribuintes com a Receita e dos motoristas com os Detrans. ‘É a única maneira de baixar o volume de ações na Justiça contra veículos de comunicação’.

‘Criar uma autarquia [o Conselho Federal proposto pela Fenaj] é anacrônico, ainda mais considerando-se que o PT historicamente foi contra a intervenção do Estado no movimento sindical’, argumenta Chaer. Ele não defende qualquer intervenção no sentido de censurar, mas de ‘regular, servir como pára-choque, colchão de proteção’.

Se a pessoa se sentir atendida por uma instância capaz de examinar agressões à ética profissional, não recorrerá à Justiça.

Há também práticas que escapam à ação da Justiça mas produziriam condenações caso julgadas à luz da ética. Por exemplo: vender capa de revista, matéria de jornal. ‘Não está capitulado em lugar nenhum do Código Penal. Mas nós sabemos que é delito contra a ética’, diz Chaer. ‘Pode trabalhar ao mesmo tempo na assessoria de imprensa da Assembléia e cobrir a Assembléia para o jornal? Isso já foi resolvido nas capitais do Sudeste. Não no Nordeste. Jornalistas que cobrem futebol e recebem salários de clubes, ou que escrevem sobre automóveis e têm desconto na compra de carro, ou usam um modelo novo durante um ano ‘para testar’. Nenhum juiz vai considerar a possibilidade de punir. Mas os jornalistas podem condenar.’

Em seu site, Chaer fez uma enquete: ‘O controle da imprensa por um Conselho Federal de Jornalismo pode…’. Às 21 horas de segunda-feira, dia 16, de 622 votantes 43,6% haviam respondido ‘… Piorar o jornalismo brasileiro’, enquanto 38,4% achavam que poderia ‘melhorar’, 12,5% que ‘não muda nada’ e 5,5% que iria ‘reduzir o volume de ações por dano moral’, pergunta que Chaer colocou, um tanto deslocadamente, reconhece, para ilustrar sua tese a favor de uma ‘instância intermediária’.