Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Isabella e a espetacularização da dor

No dia em que o assassinato da menina Isabella Nardoni completou um mês, o Observatório da Imprensa (29/4) exibido pela TV Brasil e pela TV Cultura discutiu a transformação da dor em espetáculo. A intensa cobertura dos meios de comunicação teve enfoques diferentes e o cidadão pôde escolher a que melhor se adaptava ao seu perfil: sensacionalista ou objetiva.


Participaram do programa ao vivo o jornalista Mario Vitor Santos, ombudsman do portal iG, em São Paulo; Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP), em Brasília; e Renato Lessa, doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), no Rio de Janeiro.




Mario Vitor Santos, jornalista, é ombudsman do portal iG. Foi ouvidor da Folha de S.Paulo, onde trabalhou por quinze anos em diversas funções, por três mandatos. É diretor Casa do Saber. Foi professor de História da Comunicação da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, em São Paulo.


Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na USP, na qual se doutorou após defender mestrado na Sorbonne. É diretor de avaliação da Fundação Capes, em Brasília.


Renato Lessa é doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Professor titular de Teoria Política do IUPERJ e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje.


Um dos destaques do programa foi a pesquisa CNT/Sensus divulgada na segunda-feira (28). No estudo, 98,2% dos entrevistados afirmaram que têm acompanhado ou ouviram falar da tragédia de Isabella, um índice recorde desde que a pesquisa começou a ser realizada, há dez anos. Em relação ao trabalho da mídia, 71,8% avaliaram que a cobertura foi adequada, competente e eficiente. Um dado correlato é que 8,5% dos entrevistados disseram que assistem com freqüência às TVs públicas e 21,9% informaram que o fazem ‘às vezes’.


‘Erros e abusos’


Alberto Dines comentou os fatos relacionados à imprensa que estiveram em destaque nos últimos dias. A capa da revista Veja que está nas bancas, sobre dietas balanceadas, foi o primeiro. Em seguida, criticou a ausência da sociedade civil e de jornalistas na conferência sobre liberdade de imprensa promovida hoje pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em Brasília. O jornalista também abordou a cobertura do escândalo que envolve o jogador de futebol Ronaldo Fenômeno, acusado de envolver-se com drogas e travestis. O último tema da seção foi caso da austríaca que foi mantida em cativeiro pelo pai, por mais de duas décadas [ver abaixo a íntegra dos tópicos].


‘É curiosidade mórbida, revolta, horror à violência? Ou é a `espetacularização´ da dor, acionada por uma mídia sensacionalista?’. A questão foi levantada por Dines no editorial que antecede o debate ao vivo. ‘A pesquisa [CNT/Sensus] não está errada, o grande público vê a mídia de uma forma acrítica, acredita na mídia e não percebe seus exageros. A não ser que alguém aponte os abusos e erros’. O jornalista ressaltou que a TV Brasil dedicou apenas 13 minutos da programação, ao longo do mês, ao assassinato de Isabella Nardoni e a TV Cultura empregou somente 36 minutos na cobertura do caso [ver a íntegra abaixo].


Os resultados da pesquisa


No debate ao vivo, Dines pediu para Mario Vitor Santos comentar o dado da pesquisa que mais chamou sua atenção: o alto grau de aprovação da cobertura da imprensa sobre o assassinato de Isabella. Dines acredita que o senso crítico da sociedade foi neutralizado pelo espetáculo. Para o ombudsman do iG, a pesquisa revela uma realidade, pois a população realmente se sente bem informada. Por outro lado, na opinião de Mario Vitor, essa impressão não corresponderia à verdade. A cobertura estaria contaminada, manipulada, tendenciosa e não respeitaria limites. Ele destacou que a população raramente acompanha o trabalho da mídia e que a partir da tragédia os cidadãos estariam mais envolvidos com o noticiário.


Renato Lessa afirmou que sua postura é cética em relação ao que chamou de ‘fundamentalismo numerológico’. Apesar de não se guiar apenas pelos números, o professor disse que os cerca de 25% que reprovaram a cobertura da mídia mostram que ‘há algum juízo crítico’ na população. A cobertura teria um caráter de novela, com telespectadores ávidos, vilanizações, construções de personagens.


Há uma diferenciação entre dois momentos da cobertura, na opinião de Renato Janine Ribeiro. Para o filósofo, na primeira fase, quando foram levantadas suspeitas de envolvimento do pai de da madrasta da menina, mas ainda sem ‘grandes argumentos’, o nível da cobertura foi fraco. Já no período posterior, em que começaram a ser divulgados os primeiros resultados das perícias da polícia de São Paulo, o trabalho da imprensa teria tido mais qualidade. O filósofo acredita que não houve uma ‘espetacularização’ do crime, mas esclareceu que acompanhou as investigações pelos jornais impressos e que praticamente não assiste às TVs comerciais.


Renato Janine condenou os ‘juízos’ sobre os envolvidos no caso, como os veículos que chamaram o pai e a madrasta de ‘frios e calculistas’. O filósofo disse não concordar com a crítica de Dines à participação de Ana Carolina Oliveira, mãe de Isabella, na missa do padre Marcelo Rossi realizada no feriado de 21 de abril. ‘Não sabemos o que está na mente dessas pessoas’, ponderou. Dines explicou que é o fenômeno da exibição festiva da dor que chamou sua atenção, e não a pessoa em si.


A guerra pela audiência


Para Mario Vitor Santos, a disputa pela audiência entre a Rede Globo e a Rede Record influencia a cobertura do restante dos veículos, inclusive a mídia impressa, tradicionalmente mais imparcial e ética. O ombudsman avaliou que há sensacionalismo e manipulação na cobertura do assassinato da menina e, nisso, os jornais impressos e os portais de notícia na internet teriam ‘embarcado’. A promiscuidade entre os jornalistas e as fontes policiais envolvidas no caso traz à tona a necessidade de uma reflexão sobre a ética das coberturas de crimes violentos que mobilizam a sociedade.


Outro tema do debate foi a qualidade do espaço da vida pública no Brasil. Renato Lessa afirmou que a construção do local de discussão de temas que dizem respeito a todos tem apresentado, ao longo dos anos, características de despolitização. ‘A questão do cartão corporativo, por exemplo, já não é uma grande questão de natureza política. As pessoas são mobilizadas muito freqüentemente para discutir o tema através da precipitação de juízos morais’, analisou.


O professor disse que o espaço público dedicado ao assassinato de Isabella é marcado por emoções, mas não tem impacto político na formação do arranjo mais geral do país. Lessa classificou como ‘oligofrenia cívica’ a multidão que se concentra nos arredores do edifício onde moravam o pai e a madrasta da menina, e de onde ela foi atirada. Para ele, é necessário avaliar ‘o que prende a atenção pública no Brasil’ como um dado do estado em que se encontra o país.


A mídia como palco de protesto


Renato Janine acredita que não é errado manifestar indignação sobre histórias de horror que ocorrem em ambientes onde se imagina que exista uma convivência harmônica, como nos relacionamentos familiares. O filósofo frisou que o número de pessoas que se dirigem ao local do crime é pequeno e que a quantidade das que se manifestam é menor ainda. A mídia poderia aproveitar a oportunidade para tratar de forma mais séria os casos de violência doméstica.


‘O jornalismo não necessariamente informa de forma perfeita em todas as situações. Muitas vezes ele deforma, distorce’, avaliou Mario Vitor Santos. O jornalista disse que é preciso cobrar qualidade, distanciamento e ética da imprensa. Todos os lados envolvidos em uma investigação deveriam ter espaço na cobertura; não poderia haver favorecimento nem promiscuidade com as fontes oficiais. ‘É preciso buscar a verdade, mas respeitar a dúvida’, alertou. Na opinião de Renato Lessa, o tema da verdade exige tranqüilidade e serenidade, sem a habitual precipitação da imprensa.


A primeira reação de Renato Janine quando se iniciou a cobertura do assassinato foi condenar os setores da mídia que publicavam o nome e o sobrenome dos acusados. Pessoas que podiam ser inocentes estariam sendo expostas à opinião pública. Com a evolução das investigações, o filósofo passou a considerar que o mais adequado seria ‘expor tudo’.


Mario Vitor criticou o repasse de fragmentos de informações que induzem conclusões precipitadas. Autoridades fariam chegar à população determinadas informações por intermédio de veículos e repórteres de sua preferência. Para o jornalista, a lei é clara: uma pessoa só pode ser culpada se ficar provado, além de qualquer dúvida, que ela é autora de determinado delito. Nesse caso, o benefício da dúvida deveria ser preservado até o final das investigações. ‘Eu pergunto: será que um juiz terá condições políticas, sociais e até psicológicas de julgar com isenção o caso depois de tamanha comoção?’, questionou.


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O que faz a diferença


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 459, no ar em 29/4/2008


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Há exatos 30 dias, a menina Isabella Nardoni, de cinco anos, era morta e jogada do sexto andar de um prédio da classe média na zona norte de São Paulo. O caso tomou conta do país porque entre os principais suspeitos estão o pai e a madrasta da menina.


Quase 99% dos entrevistados pela sondagem CNT/Sensus revelaram que têm acompanhado e ouviram falar no caso. Este impressionante índice de participação jamais foi alcançado neste tipo de enquete.


É curiosidade mórbida, revolta, horror à violência? Ou é a espetacularização da dor, acionada por uma mídia sensacionalista? Acontece que, na mesma pesquisa, quase 72% dos entrevistados consideraram a cobertura da mídia adequada e competente. Apenas 24% desaprovam. Significa que a sondagem está errada nesta questão?


A pesquisa não está errada, o grande público vê a mídia de uma forma acrítica, acredita na mídia e não percebe seus exageros. A não ser que alguém aponte os abusos e erros.


Aqui, a sondagem oferece outra novidade: 8,5% assistem freqüentemente à TV pública e quase 22% o fazem às vezes. Reparem que o número dos que desaprovam a cobertura do caso Isabella (cerca de 24%) não está muito distante dos quase 30% que sintonizam as redes públicas.


Outro dado de importância capital: neste mês de vale-tudo jornalístico, a TV Brasil dedicou apenas 13 minutos ao caso Isabella e a TV Cultura, cuja base é São Paulo, em 30 dias só dedicou ao caso 36 minutos. As emissoras comerciais chegam a dedicar horas por dia.


Conclusão: quem acha o sensacionalismo adequado não é você, nem você, que assistem às TVs públicas. Você e você é que fazem a diferença neste país.


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A mídia na semana


A.D.


** Nas manchetes de todo o mundo o assunto da semana passada foi o espectro da fome. Desta vez a escassez vai pegar países ricos e pobres, emergentes e poderosos. Os únicos que vão escapar da fome são os leitores brindados neste fim de semana com mais uma capa sobre dietas balanceadas.


** A Unesco comandou no passado uma cruzada mundial pelo livre fluxo das informações. Mas, no Brasil, a Unesco está na contramão – caso da Conferência Legislativa Sobre a Liberdade da Imprensa realizada hoje em Brasília, onde só falam donos de jornais. Jornalistas e sociedade civil ficaram de fora.


** Ronaldo, o Fenômeno, está conseguindo acabar com as diferenças entre jornais populares e jornais de qualidade. Graças às suas aventuras noturnas, o camisa nove estava hoje nas primeiras páginas da imprensa de escândalo e da imprensa de prestígio. É um golaço em favor do sensacionalismo globalizado.


** Quando se imaginava que a Áustria já tinha completado a sua quota de monstros, aparece um engenheiro que seqüestrou e violou a própria filha ao longo de 24 anos e com quem teve sete filhos. Junto com o assassinato de Isabella Nardoni, completa uma escalada de horrores que não honra muito a condição humana.

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Jornalista