‘Há 40 dias, quando a primeira pesquisa do referendo de hoje foi divulgada, a campanha pelo não parecia uma causa perdida. Nos números de 13 de setembro, os simpatizantes do sim eram mais que o triplo: 72,7% contra 24,1%. Além disso, defender o lado que apóia a comercialização de armas no País parecia um trabalho ingrato, moralmente dúbio e politicamente incorreto. O fato de artistas como Chico Buarque e Fernanda Montenegro emprestarem seus confiáveis semblantes à campanha do sim parecia deixar o fardo ainda mais pesado. Parecia.
Um mês depois, em 14 de outubro, o Ibope causou espanto com os novos números: 49% pelo não e 45% pelo sim, num empate técnico. Anteontem, nova pesquisa divulgada no Jornal Nacional mantinha o ritmo de virada: 51% a 41%. Já o Datafolha cravou 57% contra 43% dos votos válidos. Como é que pode?
Chico Santa Rita pode. O marqueteiro da campanha pelo não, vença ou perca o referendo da venda de armas, já é um vitorioso. Do ponto de vista do marketing político, Santa Rita catapultou uma causa que parecia perdida à provável vitória. Uma causa que nem mesmo os políticos da frente pelo não julgavam poder vencer. ‘Eu sentia que eles não acreditavam totalmente na vitória’, diz. Pior foi com os próprios colaboradores, o pessoal com quem o marqueteiro sempre trabalhou nas mais de cem campanhas que coordenou. Quando Santa Rita ligou para Fernando Waisberg, seu diretor de programas de TV, o diálogo foi o seguinte:
– Fernando, vou fazer a campanha do referendo. Vamos?
– Que lado, Chico?
– O lado do não.
– Ah, não, Chico. Eu sou pelo desarmamento.
Foi assim que Santa Rita percebeu como deveria ser sua campanha. Não iria mostrar armas, não iria pôr jingles, não iria inventar símbolos. Iria, em primeiro lugar, explicar a tal da pergunta. Usaria a Bandeira Nacional e o Hino da Independência como peças. E só. E falou para Waisberg:
– Do desarmamento eu também sou a favor, Fernando. Mas não é disso que se trata. A pergunta é sobre venda. Ninguém vai recolher arma de ninguém, quanto mais de bandido.
Assim o marqueteiro convenceu, um a um, seu grupo de 40, o qual chama de Exército de Brancaleone, e começou a briga. ‘A idéia-força básica da campanha foi que você não pode abrir mão de um direito seu’, diz Santa Rita. Então ele chegou ao bordão ‘Quem vai desarmar os bandidos?’, que pegou fundo. Sua primeira peça foi uma versão publicitária da conversa que teve com seus colaboradores. Dizia ‘Desarmamento. Seria bom se fosse verdade. Proibir a venda legal de armas não vai desarmar os bandidos’.
Santa Rita, na verdade, já estava se preparando intimamente para essa campanha desde o início do ano. Ele assistia, no Canadá, a algumas palestras de marketing político quando teve notícias da possibilidade do referendo. Na mesma hora mandou um e-mail para sua assistente comentando o assunto. ‘Eu achava que, se isso caísse em minha mão, eu saberia o que fazer. Até que recebi, em julho, um telefonema de convite. Peguei por um valor muito aquém do mercado. Toda a nossa campanha é mais barata que a do sim.’
(Segundo o deputado Alberto Fraga, presidente da Frente Parlamentar pelo Direito à Legítima Defesa, o custo da campanha está estimado entre R$ 1,2 milhão e R$ 1,5 milhão, contra os cerca de R$ 2 milhões divulgados pela Frente Parlamentar Brasil Sem Armas. ‘Ainda não fechamos os números’, afirmou Fraga ao Aliás na sexta-feira. E de onde vem esse dinheiro? O deputado afirma que vem de doações. E nenhum tostão, segundo ele, saiu das fábricas de armas e munições: ‘É dinheiro doado por pessoas físicas. Ainda não recebemos dinheiro de empresas’.)
‘O caso é que tenho um critério em minha vida’, revela Santa Rita. ‘Eu me envolvo pessoalmente. Só faço campanha para candidatos nos quais voto.’ No caso do referendo é a mesma coisa. O marqueteiro, que vai votar não, tem uma arma em Itatiba, a 100 quilômetros de São Paulo, onde mora com sua mulher. A casa fica junto ao hotel-fazenda Dona Carolina, de propriedade do casal. Santa Rita esconde por lá um revólver 38, devidamente registrado, que tem há cerca de 20 anos. ‘Mas não sei atirar. Acho que em toda a minha vida não gastei um tambor inteiro. Em duas ocasiões, quando os cachorros latiram de madrugada, saí para a varanda e dei um tiro para cima. É uma zona rural afastada’, justifica.
Jornalista de origem, com passagens pela Editora Abril e pela Rede Globo, Santa Rita fez campanhas como a que colocou Orestes Quércia na cadeira de governador do Estado de São Paulo em 1986 e, quatro anos depois, a que elegeu para o mesmo cargo um desconhecido Luiz Antonio Fleury, que lutava contra medalhões como Mário Covas e Paulo Maluf. Estava no lado vitorioso do presidencialismo no plebiscito em 1993 e comandou a reta final da campanha de Collor contra Lula, em 1989. Esse último é um dos casos mais controversos do marketing político brasileiro. Na última semana de horário gratuito na TV, Santa Rita deu ordens para gravar o depoimento da enfermeira Miriam Cordeiro, ex-namorada de Lula cuja história havia sido revelada meses antes pelo Jornal do Brasil. Na propaganda política de Collor, ela afirmou que Lula pedira o aborto da filha deles, Lurian. O depoimento foi desastroso para o petista e pode ter sido responsável pela vitória de Collor.
‘Você pode querer discutir se é ético ou não. Mas, passados 16 anos, nunca se questionou a veracidade daquele depoimento. No meu conceito, a vida de um homem público é pública. Ele não pode dever imposto e depois cobrar. Não pode ser desrespeitoso com alguém e depois exigir respeito.’ Apesar de suas vitórias, Santa Rita não é um marqueteiro festejado como Duda Mendonça, por exemplo. ‘Duda é especialista em automarketing. Conhecem-se bem as poucas campanhas que ele ganhou e nada das muitas que perdeu. Faz tempo que não perco uma dele, aliás. Eu sou diferente. Não sou marqueteiro-alpinista. Sou low profile, cobro mais barato e sou feliz assim.’
Aos 65 anos, Santa Rita tem oito filhos, entre os seus próprios e os de sua segunda mulher, com quem está casado há 20 anos. É apaixonado por cavalos e, há cinco anos, foi campeão brasileiro de enduro, uma espécie de rali em que o cavaleiro passa até oito horas montado e se enveredando por trilhas no meio do mato. Começou agora a produzir sua outra grande paixão, a cachaça, ainda em ritmo caseiro. O primeiro lote, de 500 garrafas, está sendo distribuído a amigos. E entre eles não está Luiz Gonzales, o marqueteiro que, numa troca de comando, assumiu a campanha pelo sim na semana passada.
‘Levei o Gonzales para a Globo em 1978 ou 1979. Depois o coloquei no marketing político, na campanha de primeiro turno do Ulysses Guimarães para a Presidência, em 1989.’ Logo, entretanto, os dois brigaram, e Santa Rita demitiu Gonzales. Nunca mais se bicaram. ‘Nem quero falar disso. Não é uma pessoa que eu respeite.’ O Aliás, aliás, tentou fazer esta reportagem também com Gonzales, mas o homem do sim disse não.
Santa Rita não tem mesmo papas na língua quando o assunto são seus adversários. ‘Minha primeira boa surpresa foi quando soube dos dois publicitários, cariocas ainda por cima, que começaram a campanha adversária (Paulo Alves e Elysio Pires). Porque, no marketing político, você tem duas vertentes: o feito por jornalistas e o feito por publicitários. Esse segundo é mais bonito, mais alegre e com menos conteúdo. Só ganham campanha que não dá para perder, como as do FHC, a do Lula…’ E o fato de os publicitários serem cariocas, o que tem a ver com isso? ‘Ah, os cariocas são ainda mais festivos.’
Ele elenca o que considera os erros do sim. ‘Primeiro chamaram um turbilhão de artistas que foram inocentes úteis. Não entendiam o que diziam e não falavam a verdade. Por exemplo: um dia a Regina Casé disse que no Brasil havia 15 milhões de armas. No programa seguinte, a Maria Paula falou em 17 milhões. No rádio, o deputado Raul Jungmann, da Frente do Sim, falou em 19 milhões. E, finalmente, o presidente da frente, o senador Renan Calheiros, falou 20 milhões no programa da Luciana Gimenez. Ora, foi só juntar tudo e mostrar num dos nossos programas. Como minha mãe dizia, mentiroso fica com a boca torta.’
‘Outro erro? Começaram forte demais. Parecia que a eleição seria dali a dois dias. Já chegaram falando ‘vote 2, vote sim’. Isso só se faz no final. Nós fomos mais racionais. Primeiro quebramos a idéia, que era mentirosa, de desarmamento. Aí fomos para o resto, para os detalhes. E agora, quando trocaram o comando, erraram de novo. Saíram do festivo direto para o agressivo. Erraram, erraram, erraram.’ E será que Chico Santa Rita acertou? Sim ou não?’
José Paulo Lanyi
‘Opinião no Planeta dos Macacos’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 21/10/05
‘Tem gente que precisa de ajuda para pensar. Por mais preparada que seja, hesita. Leu centenas de livros, leu os clássicos da política e da literatura, leu todas as edições dominicais, conversou com luminares, não adianta: precisa de ajuda para pensar.
– Todos precisamos – dirá alguém.
Bom, é uma exigência da vida em sociedade. Ninguém pensa sozinho. Toda descoberta é fundada no conhecimento. Ao menos, na necessidade gregária de compartilhar, num universo social preexistente.
Há, no entanto, quem necessite de bússolas supostamente confiáveis: a bússola dos outros. Nunca terá coragem de construir uma.
A insegurança aflora em tempos de decisão. O que esses pensariam se soubessem de uma máxima da Cavalaria segundo a qual é preciso decidir, ainda que se decida errado? Para o cavalariano – aquele que vai na frente e sente o hálito do inimigo -, não decidir é morrer. ‘Decida errado, mas decida…’. Não deixa de ser uma hipérbole da ação…
Os inseguros são dependentes dos formadores de opinião. Há os passivos que se atraem pelo norte de uma idéia prevalente, um conceito que nunca deverá sair do lugar, uma mera confirmação do que sempre se quis ‘saber’. É como andar com o bando do conhecimento. Reacionário anda com reacionário; revolucionário, com revolucionário- ainda que, à essa altura, seja difícil saber quem é o quê. Idéias nutrem sentimentos. Nessa equação, sente-se primeiro, intui-se, para, depois, forrar-se com as ‘explicações’ alheias.
Nessa translação opinativa, há, ainda, os que estão desgarrados mas precisam se enquadrar, seja porque, acanhados, buscam a verdade da próxima esquina, seja porque não poderão ficar sozinhos. Perseguirão qualquer idéia, mesmo que seja capciosa. A solidão é para poucos. Eles não querem atingir o cume, preferem a farra do sopé, aquecida pelo fogo e pelo álcool do calor humano.
Vivemos um momento histórico peculiar, já se disse aqui, quando se explicitou o SIM pela cultura do desarmamento, por uma cultura que arregala os olhos quando apenas depara com a silhueta de uma arma, por uma cultura que estranha, a cultura do estranhamento, aquela que um dia poderá dizer:
– Os meus antepassados foram sábios e tiveram a coragem de rechaçar, pelo exemplo, a cultura da barbárie, essa que se travestia de ‘jurista’ e clamava pelo direito de ser o gatilho mais rápido à Oeste da civilização, aquela cultura que desistiu da Democracia, de lutar pelo voto e pela palavra, trocando-os por uma bala na testa da razoabilidade.
Dias atrás, testemunhei uma situação que me deu o que pensar. Uma amiga minha, politizada ao extremo, andava de um lado a outro sem saber o que fazer. SIM ou NÃO? – claro, essa era a dúvida que a atormentava. Então, ela pegou o Estado de S. Paulo, leu um artigo NÃO e logo pôde justificar a própria inclinação. Uma frase e tudo se clareou… Minutos depois, contudo, deu de cara com uma matéria SIM… Em seguida, com outro artigo NÃO.
Fiquei com pena. Ela estava perdida, encurralada, a alma entregue aos formadores de opinião. Um barquinho à deriva entre três, depois quatro, cinco, seis icebergs.
Vários nortes e nenhum farol, muitos verbos dos outros e nenhuma alma de si mesma.
Assim foi, até ela atracar, entre vitoriosa e frustrada, no NÃO. Ela tem medo do MST, de milícias, da China, de um Amazonas de bobagens que não caem bem neste país tropical. Este é um povo armado que não gosta de pegar em armas. É uma Nação peculiar, precisa de mamadeira, ainda que esteja vazia.
Têm razão os que dizem que a educação ajudará a criar uma cultura de paz – algo que nunca se pretendeu negar. Acrescento eu: também defenderá os leitores de todos nós, os formadores de opinião. Artigos não devem ser deglutidos, mas questionados. Chegará o dia em que teremos menos armas e mais consciências no Planeta dos Macacos.’
Comunique-se
‘Jornalistas votam ‘não’ no dia 23/10’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 21/10/05
‘A maioria dos jornalistas vai votar contra a proibição do comércio de armas de fogo e munição no País. Esse era o resultado de uma pesquisa realizada pelo Comunique-se junto a profissionais que trabalham em redações e assessorias de imprensa até às 20h10min desta sexta-feira. A idéia é saber o que pensam os formadores de opinião a respeito do referendo do dia 23/10. Exatamente 2183 pessoas responderam, até o fechamento desta matéria, sendo que 1121 delas afirmam que vão votar ‘Não’ à proibição do comércio em questão. Ainda há pessoas respondendo a enquete.
Foram feitas três perguntas aos entrevistados:
1. Você acha que a realização deste referendo é:
( ) Importante
( ) Perda de tempo
2. Independente da resposta anterior, sobre a proibição da venda de armas você:
digo SIM, a venda de armas deve ser proibida
digo NÃO, quem quiser comprar uma arma deve ter esse direito
3. De acordo com sua resposta anterior, escreva algumas linhas sobre o que te faz pensar assim.
Para 1238, o referendo é uma perda de tempo, enquanto 945 acham importante a pesquisa.
O Comunique-se trará mais detalhes a respeito do termômetro na próxima semana.
Veja aqui alguns dos argumentos daqueles que participaram da pesquisa:
‘Embora não seja capaz de resolver o problema da criminalidade no país, acho que a proibição da venda de armas de fogo e munição pode ajudar a reduzir a ocorrência de crimes passionais e por motivo fútil.’
‘A opção de comprar ou não uma arma é de cada um. As pessoas precisam aprender mais sobre responsabilidade. Adquirir uma arma tem de estar nesse contexto. Não se compra uma arma no Brasil como quem compra um refrigerante na padaria da esquina. Na verdade, é bem complicado. Acho que, ao invés proibir, as condições de se comprar e manter um arma devem ser mais rígidas ainda, por exemplo, tendo de renovar a cada ano o porte, obrigar a ter certificado de tiro antes de comprar etc.’
‘Não que a proibição da venda de armas, por si só, vai resolver todos os problemas de violência no País. Porém, isso vai contribuir para evitar mortes domésticas, brigas domésticas ou confusões em escolas. Só acho que, caso o ‘sim’ ganhe o referendo, o governo deve modificar a legislação, impondo mais rigor a quem for flagrado utilizando armas de fogo.’
‘Ninguém pode tirar os direitos de nenhum cidadão se defender. Quem quer ter arma, tem que poder ter e quem não quer não tenha. Isso é a livre escolha.’
‘Sei que o referendo não atingirá diretamente os bandidos, a violência ainda continuará, mas acredito já ser o primeiro passo. Pessoas honestas não precisam andar armadas, pois isso não é sinônimo de segurança. A sensação de poder que uma arma oferece é muito perigosa, principalmente nas mãos de pessoas despreparadas. Armas, só servem para tirar vidas, ameaçar, causar dor. Eu sou absolutamente a favor do desarmamento. Eu digo SIM.’
‘Pois acho que somos um país livre onde devemos ter consciência de nossos atos. Proibir não será a solução, temos que conscientizar a população a respeito do uso.’’
Folha de S. Paulo
‘A vitória do ‘não’’, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 24/10/05
‘A vitória do ‘não’ no referendo de ontem foi um triunfo publicitário. A frente parlamentar contrária à proibição do comércio de armas e munições mostrou-se mais competente do que os partidários do ‘sim’. Conseguiu pespegar a idéia de que restrições mais severas à comercialização desses itens violaria o direito à autodefesa dos cidadãos.
Uma vitória do ‘sim’ não teria suprimido direitos, tampouco teria implicado a proibição total do comércio de armas, o qual permaneceria lícito para os que possuem porte. Nesse contexto, como esta Folha já se havia manifestado, a própria realização do referendo foi inoportuna. Gastou-se muito dinheiro -algo em torno de R$ 270 milhões- para decidir algo que, qualquer que fosse o resultado, traria pouco impacto concreto.
Quanto à criminalidade, que é a grande preocupação da população, ela não estava em questão no referendo. O objetivo do Estatuto do Desarmamento e da campanha pública de coleta de revólveres mediante indenização -que poderia ter culminado com restrições maiores ao comércio- é o de reduzir os homicídios provocados por motivos banais, no contexto de conflitos interpessoais e rixas. É aquele tipo específico de assassínio que conjuga discussões acirradas ou um desejo súbito e irrefreável de vingar-se de um desafeto com o acesso a uma arma de fogo.
As duas campanhas, que se valeram da desinformação como tática para conquistar o eleitor, acrescentaram ainda uma dose de cinismo ao que já se afigurava como pouco útil.
De toda maneira, a derrota do ‘sim’ não significa que a idéia de desarmamento tenha sido vencida. O Estatuto, exceto por seu artigo 35, continua plenamente em vigor. Cabe às autoridades públicas implementá-lo. Campanhas de coleta de armas, como a encerrada ontem, podem e devem ser de tempos em tempos retomadas. É preciso insistir na tese de que, em uma sociedade madura, as diferenças entre as pessoas não são resolvidas a bala, mas por meio da razão e das instâncias regulares de intermediação de conflitos.’