O ano, possivelmente 1969. Caminhávamos Antonio Callado e eu pela Rua da Carioca. Tínhamos saído da sede do Jornal do Brasil na Avenida Rio Branco, onde ele era editorialista e eu, jovem repórter, para ir ao Detran, na Praça Tiradentes. Callado precisava renovar sua carteira de motorista. Na qualidade de setorista do Detran e da Secretaria de Segurança Pública do então estado da Guanabara, eu poderia facilitar os trâmites. A velha ‘carteirada’ de jornalista, em benefício de um colega eminente. A incumbência me fora atribuída ou por meu chefe imediato, José Gonçalves Fontes, ou por um dos chefes de reportagem que se revezavam ao longo do dia, Aloízio Flôres e Juvenal Portela.
Eu ia emocionado pela companhia de figura tão ilustre, o jornalista que escrevera Vietnã do Norte, livro de reportagens sobre a luta heróica do povo vietnamita contra a intervenção americana. A certa altura, perguntei-lhe por que trocara pelo Jornal do Brasil o Correio da Manhã, que passara de apoiador do golpe militar a baluarte da resistência à ditadura, e um jornal que, devido à presença em suas páginas, entre outros, de Carlos Drummond de Andrade, me inspirava grande reverência.
‒ Troquei o capitalismo do século 19 pelo capitalismo do século 20 ‒ limitou-se a responder.
E nem era preciso explicar. Eu mesmo, ao ser contratado pelo JB em abril de 1968, recebera, de queixo caído, uma tabelinha, que cabia na minha carteira de dinheiro, com as datas em que seria depositado o meu salário, mês a mês. Depois de um ano (1966) na Tribuna da Imprensa, onde nunca recebi um tostão ‒ era foca, deveria agradecer o aprendizado ‒, o sentimento de ter entrado numa empresa moderna era contagiante.
Modernidade jornalística
Mas a modernidade do JB era principalmente jornalística. Ao consolidar a reforma editorial que antecedeu sua chegada ao jornal, em 1961, Alberto Dines soube reunir, sob sua batuta de editor-chefe, um time afiadíssimo de profissionais, capazes de explorar os atributos que o jornal incorporara: o lead americano, que o jornalista Pompeu de Souza trouxera para o Diário Carioca; a diagramação sem fios de Amílcar de Castro, absolutamente revolucionária não só no país como mundialmente; o uso da fotografia e da ilustração; o Departamento de Pesquisa; a discussão sobre comunicação fomentada por publicações teóricas.
Se não me trai a memória, a cúpula do jornal, abaixo de Dines, era formada por Carlos Lemos, chefe de Redação, José Silveira, secretário, Sérgio Noronha, chefe dos copidesques ‒ entre os quais posso citar, certamente esquecendo vários nomes, Marcos de Castro, Anderson Campos, Lobinho, Roberto Quintais, Zola Florenzano, Joaquim Campelo Marques ‒, os já citados Aloizio Flôres, Juvenal Portela e José Fontes, que pilotava a cobertura de Cidade. E o Figueiró, Wilson Figueiredo, não sei se já chefe dos editorialistas. Na crônica política reinava, inexcedível, Carlos Castello Branco.
Na reportagem havia uma garotada disposta. Paulo César (PC) Araújo, Fritz Utzeri, Ramaiana Vaz Vargens, Macedo Miranda (Macedinho, já falecido), Bella Stal, João Batista de Freitas, Tarcísio Baltar, Israel Tabak. Um pouquinho mais velhos eram os repórteres especiais Mário Samuel de Aratanha, Artur Aimoré, Beatriz Bonfim, Mário Lúcio Franklin, Gildávio Ribeiro, na economia o Luiz Gonzaga Larqué, que também morreu cedo, acho que já era subeditor. Novamente, esqueço muitos nomes.
Oscilações políticas
Politicamente, o JB oscilou ao longo do tempo. Apoiou o golpe de 1964 e o governo de Castelo Branco, mas publicou a histórica edição de 14 de dezembro de 1968, de repúdio ao AI-5, decretado na véspera. Em 1972, o jornal trouxe uma reportagem com denúncias do ‘Agente Carlos’ sobre os laços do PCB com Moscou. Carlos era na verdade Adauto, um militante do Partidão que tinha a confiança de Luís Carlos Prestes e colaborou com a polícia. Dizia-se na época que a reportagem fazia parte de uma manobra para impedir a compra de turbinas soviéticas para a usina de Itaipu. Pode ser.
Em 12 de setembro de 1973, Alberto Dines compôs a mais inesquecível primeira página que me foi dado ler, com as notícias sobre o golpe no Chile e a morte de Salvador Allende. Em 1974, o JB repercutiu em sucessivas manchetes, à medida que transcorria a apuração dos votos, dia após dia, a vitória do MDB nas eleições para o Senado, episódio que foi o divisor de águas da luta contra a ditadura.
Entretanto, o capitalismo do século 20 retrocedeu ao século 19 quando o jornal ‘malufou’, no final dos anos 1970, em troca de recursos providenciados pelo então governador de São Paulo. Segundo o jornalista Flávio Pinheiro, 30 mil assinantes cancelaram suas assinaturas, e, desses, 9 mil fizeram questão de declinar a razão por que o faziam – o apoio do jornal a Paulo Maluf.
Data desse período, me parece, o início do fim do JB, embora o jornal tenha publicado em 15 março de 1985 um caderno especial chamado ‘Tancredo, a restauração’, e tenha depois, sob a direção de Marcos Sá Corrêa, voltado à trilha das posições democráticas.
É assunto para pesquisadores.
Passeata dos Cem Mil
Como uma anotação de pé de página, relato episódio que vivi em 25 de junho de 1968. Eu cobria a Secretaria de Segurança. Era véspera do dia marcado para a passeata que se tornaria conhecida como a dos Cem Mil, no Centro do Rio. O secretário, general Luís de França Oliveira, convocou entrevista coletiva e ‘denunciou’ que haviam chegado à cidade mil agentes cubanos equipados com garrafas de ácido que seriam usadas contra as forças policiais.
Era uma mentira e uma provocação para justificar um possível massacre dos estudantes. Saí da Praça Tiradentes transtornado. Ao chegar ao jornal, procurei uma colega da Economia com quem eu poderia dialogar, Lygia Sigaud, que depois seguiu o caminho da antropologia no Museu Nacional (Lygia morreu em 2009). Combinamos que eu iria produzir um desmentido das lideranças estudantis sem mesmo ouvi-las, porque não haveria tempo para isso. Lygia conversou com Carlos Lemos, e o jornal fez o seguinte: deu na primeira página o ‘desmentido’ das lideranças estudantis e jogou para uma distante página interna, creio que a 14 ou a 16, a declaração do general França, sempre antecedida do ‘desmentido’.
Por sinal, nesse dia da passeata, 26 de junho, o jornal saiu com uma manchete tranquilizadora. Algo como ‘Cidade amanhece em calma para passeata’. E no dia seguinte publicou uma cobertura espetacular, da qual fez parte a fotografia da multidão tirada por Evandro Teixeira que virou ícone daquela manifestação.
O movimento estudantil, nos dias seguintes, tomou o caminho do estreitamento. Numa das passeatas subsequentes, o JB foi hostilizado pelos manifestantes. Sintoma de um desgaste e de um isolamento não do jornal, mas do movimento. Desgaste e isolamento que terminariam com a prisão, em outubro, dos delegados reunidos em Ibiúna, São Paulo, para o 30º Congresso da UNE. E o Brasil seguiria em marcha batida para o golpe dentro do golpe, o AI-5.