Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Joaquim Furtado

‘Os 30 anos do 24 de abril’, copyright Público, 16/5/04

‘Os trinta anos do 25 de abril, foram tratados em toda a imprensa, nas rádios e nas televisões, com a atenção dispensada às datas ‘redondas’, própria de qualquer comunidade, logo própria dos meios de informação. O tema mobilizou todos os géneros jornalísticos, motivou sondagens, inquéritos, debates, polémicas e, pelo meio, ainda foi possível revelar factos novos, três décadas depois.

Das comemorações, com ou sem ‘r’, pareceu, afinal, resultar um mais perfeito consenso sobre a revolução de Abril que depôs a revolução de Maio, assim chamada pelo Estado Novo.

O Público começou a assinalar a data no dia 1 de Abril, anunciando que ‘ao longo de todo o mês’ publicaria trabalhos ‘relacionados com os últimos anos da ditadura, a revolução de 1974 e o período que se lhe seguiu, até ao 25 de Novembro de 1975’, o que nesse mesmo dia iniciou com a edição de uma peça sobre a escola da PIDE.

Seguiram-se outras reportagens, bem como testemunhos, entrevistas e depoimentos, apresentados soltos ou no âmbito de rubricas como ‘histórias de militares de Abril’ e ‘gritos de alma dos capitães’: ex-presos políticos, militares do MFA, historiadores, políticos actuais e antigos, ocuparam muitas páginas do jornal. E ocupam ainda, através de ‘histórias de um país de sucesso’, uma série de reportagens sobre pessoas, empresas e universidades, rubrica com que o jornal afirma pretender ‘mostrar que também existe, contra o pessimismo e o fatalismo, um país moderno, aberto ao mundo, capaz de competir na Europa com os melhores’.

Corolário deste conjunto de trabalhos, um inquérito – ‘325 militares dizem o que os levou à revolta em 1974’ – conforme a manchete de dia 24, e uma sondagem revelada no dia do aniversário: ‘portugueses satisfeitos com o 25 de Abril e insatisfeitos com a qualidade da democracia’.

Um trabalho à altura do significado que a data tem para o país ? sem dúvida. Informativo, variado, inovador ? também. Apenas digno de encómios ?

Um leitor, Pedro Miguel Melo de Almeida, escreveu ao provedor criticando a ‘forma como foi feito’ pelo jornal, o acompanhamento dos 30 anos do 25 de Abril : ‘Têm surgido sobre isso, páginas autenticamente ideológicas no Público. Por vezes parece que se está a ler o Avante (…) Por exemplo, não existe qualquer texto sobre depoimentos da parte oposta e de como esta viveu o 25 de Abril. (…) E para além desses testemunhos esquecidos (veladamente censurados ?) existem com certeza questões interessantes que são pura e simplesmente arredadas’. Em e-mails posteriores, o leitor retoma a questão, insistindo em que o Público não está a ‘dar voz a todos’ e que para o fazer ‘pode-se até recorrer a testemunhos e/ou documentos escritos’.

Confrontado com estas observações, o director do jornal explica ‘a opção editorial tomada este ano para a cobertura’ da data, enumerando as várias iniciativas adoptadas, designadamente ‘um conjunto de trabalhos sobre como era a vida, sobretudo a vida política e a repressão, no tempo da ditadura’. José Manuel Fernandes cita também a já referida série sobre ‘o melhor que Portugal tem hoje’, e a edição de CD?s e DVD?s, ‘uma iniciativa de colaboração entre o marketing e a parte editorial’. O director do Público responde ainda: ‘ não contemplámos, este ano, nenhum trabalho sobre os derrotados ou os desiludidos do 25 de Abril. Foi uma opção como outra qualquer, mas que considero legítima quando se celebram 30 anos de democracia e liberdade – pois o Público não é indiferente a vivermos em democracia e liberdade’.

Embora o livro de estilo do jornal estabeleça que o ‘o Público e os seus jornalistas não se sentem obrigados a ser ‘imparciais’ nos conflitos entre liberdade e escravidão (…) democracia e ditadura, livre informação e censura, a paz e a guerra’, este princípio só se invoca como enquadramento geral de análise. Porque, o que está aqui em causa, é saber como é que o pluralismo do jornal abrange aqueles que, de alguma maneira, representam a ditadura e não, saber se os abrange: ‘não contemplámos, este ano, nenhum trabalho com os derrotados ou desiludidos do 25 e Abril’. Este ano – explicita o director.

Jornalistas como Adelino Gomes e Cristina Ferreira, responsáveis pela coordenação e execução de alguns dos trabalhos de cobertura de outros aniversários do 25 de Abril, referem que nos seus três primeiros meses o jornal reproduziu, diariamente, ‘diferentes pontos de vista’ através de fotos e da transcrição de citações de livros e jornais, ‘do República, mas também da Época, de Torga e de Vergílio Ferreira, mas também de Thomaz e de Caetano’. Destacam, das iniciativas tomadas aquando do 20º aniversário, as deslocações, às antigas colónias, de figuras como Carlos Matos Gomes (militar que participara na operação ‘Nó Górdio’, em Moçambique), João de Melo (que fora enfermeiro militar em Angola) ou o general Lopes dos Santos ( que fora governador de Cabo Verde antes do 25 de Abril ). Entre outros nomes e outras iniciativas, os jornalistas recordam ainda um suplemento especial dedicado aos antigos grupos económicos e citam um trabalho sobre as nacionalizações, em que foram ouvidas, entre outras, figuras como Jorge e José Manuel de Mello, Manuel Ricardo Espírito Santo, Jorge de Brito.

Referindo que o levantamento não é exaustivo, mas que dá ‘uma imagem das preocupações de abrangência histórica e por isso também política, logo jornalística do Público’, Adelino Gomes e Cristina Ferreira referem ainda que, nos 25 anos da revolução – que coincidiram com o fim do século – e no âmbito das séries ‘Onde é que você estava no 25 de Abril’ e ‘Testemunhas do Século’, foram entrevistados, nomes relevantes do regime deposto, assim como vítimas do próprio 25 de Abril. Adriano Moreira, Hermano Saraiva, António Leite de Faria, A. Pinto Barbosa, Kaulza de Arriaga, Pedro Feytor Pinto e Manuel de Mello, são alguns dos ouvidos, enquanto são citados outros que ‘recusaram as entrevistas pedidas’. São nomeadas personalidades como ‘A. Champallimaud, Cecília Supico Pinto ou o brigadeiro Reis, o único oficial general que defendeu o regime, em 1974’.

Sobre a efeméride deste ano, é dito que o jornal ‘esteve manifestamente mais preocupado em ajudar a fazer a história do próprio 25 de Abril’, embora, tenha publicado, ‘simbolicamente’, no próprio dia 25 ‘uma memória ?do outro lado?, representada pelo testemunho comovente de Ana Maria Caetano [filha de Marcello Caetano]’.

Não estará, afinal, o leitor de acordo com o público?

Está, certamente. Desde que não pretenda que ouvir o ‘o outro lado’ seja aplicar o que não é aplicável: o princípio do contraditório – uma regra de ouro do jornalismo, consagrada, aliás, no Livro de Estilo – segundo o qual ‘qualquer informação desfavorável a uma pessoa ou entidade obriga a que se oiça sempre ‘o outro lado’ em pé de igualdade’. Desde que não pretenda que entrevistar um ex-preso político signifique publicar as suas declarações só depois de ouvir o agente que o prendeu ou interrogou.

Fazer trabalhos jornalísticos sobre o regime anterior (e, de resto, sobre qualquer outro tema) não pode, pois, depender de testemunhos de quem não se disponibiliza para fornecê-los, pelo menos tanto quanto seria necessário, por muito relevantes e esclarecedores que pudessem ser – e, em muitos casos, sê-lo-iam, certamente.

Obter tais contributos é, aliás, frequentemente, objectivo frustrado de esforçados jornalistas. Também deste jornal, pelo que lemos. Não consta, de resto, que a liberdade de publicar, em jornais ou em livro, esteja vedada ou sequer limitada, para esses eventuais testemunhos. E também não se vê usado nem recusado, pelo menos de forma notória, o direito de resposta para casos, hipoteticamente, abrangidos pelo referido princípio do contraditório.

Garantir o pluralismo é, na visão do provedor, não apenas permitir o acesso de todos ao jornal, mas também procurar obter de alguns, considerados fontes relevantes, a informação que ajude a relatar e compreender o presente, assim como a História. Isso não pode implicar, sob pena de nada se fazer, um ‘pluralismo ao metro’ que obrigue a ouvir o ‘outro lado’, exista ele ou não, a propósito de qualquer linha que se escreva, qualquer entrevista que se faça, qualquer reportagem que se realize sobre o passado.

Mas se esta resposta vale já para uma observação, ainda de Pedro Almeida, considerando que também deveria ter sido ouvido o ‘outro lado’, a propósito de uma entrevista da historiadora Dalila Mateus, não vale para o comentário de um outro leitor, exactamente sobre aquela entrevista: José Manuel de Sá Carneiro interpela esta coluna a propósito da manchete e do título daquele trabalho: ‘Houve um genocídio na África portuguesa’. O leitor contesta a utilização da expressão ‘genocídio’, argumentando que nos ‘factos ou acontecimentos mencionados pela entrevistada não se encontra um único que permita sustentar aquela tese’. O leitor conclui que ‘a prática de assassinatos políticos ou mesmo o massacre de populações indefesas, por mais chocantes que possam ser’, não se confunde com o crime de genocídio, que, segundo a definição do ‘The Blackwell Dictionary of Sociology’ – que cita – corresponde à ‘tentativa sistemática de matar todos os membros de uma certa categoria social, usualmente definida por características tais como a raça, etnia, religião ou nacionalidade’.O leitor pergunta-se como é que um tal facto teria escapado aos portugueses que viviam em África (entre os quais se inclui) e também aos próprios povos das colónias, que ainda o não denunciaram, concluindo pela ‘falta de rigor da senhora historiadora’.

Porém, José Manuel Sá Carneiro não isenta o jornal, ao perguntar ‘se o estatuto editorial do Público, e a cultura de exigência que os leitores mais fieis nele reconhecem, não exigiriam do jornalista responsável pela entrevista, e de quem trouxe o respectivo destaque para a primeira página, a obrigação de precisar o significado do crime de genocídio’.

A entrevistadora responde, em síntese, que ‘os muitos exemplos de acções de extermínio de populações inteiras (…) numa determinada área’, denunciadas por muitos, desde padres a militares, ‘podem não corresponder à definição de genocídio, segundo o dicionário citado pelo leitor, mas correspondem à ideia de extermínio sistemático de populações, que é o entendimento comum que se tem dessa palavra’.

Procurando legitimar a expressão, Isabel Braga cita, tal como a historiadora, o relatório da ONU que denuncia uma prática de acções ‘traduzindo uma política de genocídio por parte do Governo português’.

O ‘director de fecho’, responsável pela primeira página, admite ‘que a palavra ?genocídio? talvez seja demasiado pesada para qualificar o que se passou na África portuguesa’, mas destaca o mérito da historiadora em se debruçar sobre factos da nossa História ‘que ainda não são conhecidos na sua verdadeira dimensão e representam uma espécie de último tabu sobre o nosso passado colonial’. Referindo-se a relatos de ‘violência inusitada’ que permanecem por revelar, Eduardo Dâmaso reitera que eles ‘podem não ser tecnicamente um genocídio acabado e consumado mas são, pelo menos, episódios que configuram actos de violência porventura enquadráveis no conceito de tentativa de genocídio’.

Sem negar a pertinência da questão suscitada pelo leitor, Eduardo Dâmaso, justifica o destaque que foi dado à entrevista e espera que ela tenha o ‘condão de abrir uma discussão séria sobre a questão na sociedade portuguesa’.

Se vier a ser assim, já a entrevista conseguiu ir bastante longe, além de justificar a polémica de uma palavra que o rigor mandava questionar.

E que nos fez voltar à primeira parte da crónica: onde estão os testemunhos que ajudem a encontrar a expressão exacta a usar por historiadores e jornalistas?’