Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Jornais mais ideológicos e partidarizados’

Venício Artur de Lima é um dos mais agudos críticos do processo de monopolização dos meios de comunicação. A partir da formação em Sociologia Política pela Universidade Federal de Minas Gerais, no início dos anos 1960, Venício especializou-se no exame da mídia e de suas decorrências para a vida política, social e cultural brasileira. Aposentado como professor titular no departamento de Ciência Política da Universidade de Brasília, esse mineiro nascido em Sabará há 65 anos não teme a polêmica. Sua vida foi impactada pelos acontecimentos que resultaram no golpe de 1964 e no fechamento da democracia a partir dali. ‘Eu comecei minha trajetória acadêmica com uma participação política estudantil forte, alterando minha percepção da sociedade em todos os sentidos’. Ex-militante da Ação Popular, organização da esquerda católica – que teve entre seus dirigentes José Serra, Duarte Pereira, Herbert de Souza (Betinho), Aldo Arantes e Renato Rabelo –, Venício manifestou cedo seu interesse pelos meios de comunicação. Antes de se iniciar na vida acadêmica, trabalhou vários anos como publicitário.

Em 1971, ingressou como professor na UnB. ‘Fui para lá e comecei a dar aula em comunicação, onde fiquei vinte anos. Lecionei teoria da comunicação, fui chefe do departamento que implantou o programa de mestrado, o terceiro do Brasil, depois da USP e da UFRJ’. No final dos anos 1980, tranferiu-se para o departamento de Ciência Política. Mestre, doutor e pós-doutor em Comunicação pela Universidade de Illinois (EUA), Venício moldou sua visão teórica especialmente pelo estudo da obra de três autores, Raymond Williams (1921–1988), Stuart Hall (1932 – ) e Antonio Gramsci (1891–1937).

Em 1989, coordenou uma pesquisa sobre o papel da mídia nas primeiras eleições presidenciais diretas após a ditadura. ‘Eu queria saber se a Globo tinha colocado o Fernando Collor para vencer as eleições’, diz ele. O resultado foi publicado no Brasil e no exterior. Articulista dos sites Observatório da Imprensa e Carta Maior, Venício é autor de onze livros, entre eles A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007) e Mídia: teoria e política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2001). Em junho último lançou Liberdade de expressão vs. liberdade de imprensa – Direito à comunicação e democracia (Publisher Brasil). A seguir, os principais trechos da entrevista com Venício Lima.

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Como o senhor começou a se interessar pela análise da mídia?

Venício Lima – Eu estudava sociologia em Belo Horizonte, no início dos anos 1960, depois de ter iniciado engenharia em Ouro Preto. A capital mineira era uma cidade na qual um único grupo de comunicação – o dos Diários Associados – controlava praticamente toda a mídia. Era Estado de Minas, o Diário da Tarde, a Rádio Mineira, a Rádio Guarani, a TV Itacolomi e a TV Alterosa. Um negócio avassalador. Aquilo me impressionou muito e comecei a tentar entender como ocorriam aquelas manifestações que resultaram no golpe de 1964, a exemplo da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que teve ampla repercussão na imprensa. Eu queria entender como as pessoas entravam naquela. Logo depois, consegui um emprego em uma agência de propaganda, porque achava que eu ia estudar psicologia social, propaganda. Foi assim que aconteceu. Essa coisa de uma concentração muito grande da propriedade cruzada dos meios de comunicação lá, na minha cara, teve uma influência danada. Na década de 1970, quando eu fui para Brasília, estávamos vivendo o momento mais duro do regime militar. Havia uma situação surpreendente nessa época. No governo Geisel (1974–1979), o Ministro das Comunicações era Euclides Quandt de Oliveira. Na segunda metade do governo, ele fez uma série de pronunciamentos falando sobre o perigo da televisão, que o governo era o corresponsável por isso. Há um discurso famoso na época, no qual ele classificava a televisão brasileira como uma Hidra criada pelo sistema. Só que, segundo ele, o sistema tinha perdido o controle daquele bicho com sete cabeças e tal. Há uma tendência de se achar que durante o regime militar foi tudo homogêneo. Não foi. Houve um momento, a partir da segunda metade do governo Geisel, no qual o regime claramente se dá conta de que as condições tinham sido criadas para a formação de um grande grupo privado de comunicação no Brasil. É a Rede Globo, que saíra do controle deles e que passou a ter tanta força que às vezes enfrentava o regime. No governo Figueiredo (1979–1985), o Ministro da Comunicação Social Said Farhat prestou um depoimento na Comissão de Comunicações da Câmara, falando que vivíamos uma situação de monopólio. Logo depois, o governo Figueiredo repartiu o espólio da TV Tupi [que havia falido em 1979] para o Grupo Sílvio Santos e para a Manchete.

O senhor montou um grupo de pesquisa para analisar a influência dos meios de comunicação nas eleições de 1989. Como foi isso?

V.L. – No final da década de 1980, eu me interessei pela relação da mídia com as eleições. Eu tinha uma bolsa do CNPQ e um conjunto de auxiliares de pesquisa trabalhando comigo. Começamos a acompanhar o processo eleitoral de 1989. Os principais postulantes eram Lula, Leonel Brizola e Fernando Collor. Me dei conta de que a campanha eleitoral acontecia fora dos espaços de jornalismo político e alcançava sobretudo na programação de entretenimento, como as novelas… Eu me convenci de que, se não fosse a Globo, o Collor não seria eleito.

Como assim?

V.L. – Nesse período, comecei a desenvolver um conceito que ficou conhecido como cenário de representação. Eu percebi a construção de um cenário para um candidato, no caso, o Collor, acontecendo muito além da cobertura política dos telejornais. Falo especificamente no caso da televisão, construído nas novelas, nos programas de entretenimento, na presença do candidato em programas partidários que não eram programas de campanha eleitoral etc.

E a que conclusões vocês chegaram?

V.L. – Uma das conclusões está em um texto que escrevi, intitulado ‘Televisão e política: hipótese sobre o primeiro turno da eleição presidencial de 89’, publicado em 2001 em meu livro Mídia e Política. Em minha avaliação, o Collor venceu o primeiro turno das eleições por ter sido um candidato apoiado pelo principal grupo de mídia do país, as organizações Globo. Havia uma ação articulada entre a maior empresa de comunicação e o candidato, de tal forma que, tanto no entretenimento quanto na cobertura jornalística, criava-se um cenário determinado. Era aquele negócio de caçador de marajás, da valorização do jovem e da beleza masculina que ele representava. Tudo isso era construído nesses diversos cenários.

E havia um certo voluntarismo, aquele negócio de que, para se mudar o país, bastaria ter vontade…

V.L. – Sim, a história do herói… O Collor foi um candidato construído na mídia. A campanha dele se ajustava a uma série de providências, como deslocamento de repórteres da Globo para Alagoas, desde o tempo que ele era governador. Mais tarde, eu fiz uma coletânea de textos detalhando esse conceito de cenário de representação política, aplicando-o a eleições municipais, estaduais, nacionais etc. Acho importante registrar que esse grupo de trabalho foi criado quando eu passei da área de Comunicação para a de Ciência Política. Ele acabou se transformando no Nemp (Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política), da UnB, e reúne gente de áreas diferentes. Existe até hoje. Tenho muito orgulho disso.

A eleição de 1994 foi muito diferente, não? O candidato construído pela mídia tinha pelo menos um plano econômico… O senhor poderia comentar se houve interferência da mídia na disputa política e na disputa de hegemonia na sociedade?

V.L. – Quando você fala em hegemonia, é preciso ressaltar que esse conceito de cenário de representação é gramsciano. É uma tentativa de examinar o papel que aparelhos privados, como a mídia, exercem na construção da hegemonia. O conjunto dos veículos de comunicação de massa ocupa um papel central na vida contemporânea. Não se trata apenas da esfera política. A grande mídia tem o poder de pautar na sociedade o que é tema público e o que não é tema público. Ela constrói a percepção das pessoas, como é o caso do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem terra) no Brasil. O MST é totalmente satanizado. Só aparece na agenda da mídia de forma negativa. A médio e a longo prazo, o efeito é muito maior do que o efeito eleitoral. Boa parte da população pensa tratar-se de um movimento criminoso. Diante disso, eu não tenho nenhuma dúvida de que nas eleições pós-Collor – as duas de Fernando Henrique e as duas de Lula – a mídia manteve a centralidade no processo político. Ela foi um dos fatores determinantes da vitória ou da derrota dos candidatos. Mais do que isso. Para ser eleito, o candidato teve de fazer acordos com a mídia. Em 2006, Lula venceu apesar da oposição às vezes explícita dos meios de comunicação. Aí entrou o fator Internet. Embora não tenhamos um quadro totalmente claro, seu alcance está alterando a importância e o poder da mídia de massa.

O senhor não acha que em 2006 houve outra mudança? Essa mudança teria se dado pela abertura de um canal direto entre um presidente de origem popular e a população e por programas sociais eficazes? Não lhe parece que outro tipo de comunicação, por fora da mídia, teria acontecido? A Internet também parece ter tido um papel importante na consolidação desse novo cenário…

V.L. – Sim, é correto isso. Há quatro anos, eu organizei para a Editora Fundação Perseu Abramo um livro chamado Mídia nas eleições de 2006. Eu me apoiei em pesquisas de institutos completamente diferentes, o Observatório Brasileiro de Mídia, o Iuperj e a ESPM. Ficou muito claro pra mim, sobretudo na passagem do primeiro para o segundo turno, que houve um momento de inflexão. Foi a primeira vez em que circulou na Internet uma versão oposta à versão da mídia dominante sobre o caso da montanha de dinheiro, dos aloprados etc. Já naquela época, lideranças populares de movimentos, de organizações sociais tiveram acesso a essa contrainformação e elas passaram a fazer o papel de formadores de opinião. Isso até então era monopólio exclusivo dos articulistas e dos colunistas que tradicionalmente estavam na grande mídia. Em 2006, começamos a observar um certo deslocamento desse papel de formação de opinião que os grandes meios de comunicação se autoatribuem. A intermediação das lideranças foi capaz de se contrapor à informação hegemônica. Isso evitou que o candidato da grande mídia fosse vitorioso no segundo turno.

Um jornal importante de São Paulo, em seu projeto editorial, elaborado em 1986, alega textualmente possuir um mandato dos leitores para fiscalizar o poder. O senhor acha que esse suposto mandato estaria em questão?

V.L. – Olha, eu acho que esse mandato é uma invenção liberal. Há outras. No início dos anos 1940, nos Estados Unidos, os próprios grupos privados de mídia perceberam não existir algo como um livre mercado de ideias, propagado pelos meios de comunicação. A partir daí, foi criada a Comissão pela Liberdade de Imprensa – ou Comissão Hutchins, em alusão ao seu dirigente, Robert Hutchins, reitor da Universidade de Chicago. Após cinco anos de trabalho, em 1947, o grupo lançou, entre outras coisas, a ideia de responsabilidade social da imprensa. Foi de certa forma a constatação da não existência de um mercado livre de ideias, como propagado anteriormente. A noção de que a imprensa reproduziria a mesma lógica do mercado de bens, com a existência de tantos veículos quanto as diferentes ideias, opiniões etc. mostrou-se fictícia. Com a tendência de oligopolização, ficou impossível defender a existência do livre mercado de ideias. Aí inventaram esse negócio da responsabilidade social da imprensa. Logo surgiu a história da objetividade, dos dois lados, de você ouvir os diferentes e tal. É uma tentativa de se trazer o tal livre mercado de ideias para dentro do próprio jornal. E a comissão disseminou a ideia da autorregulamentação da mídia, que os empresários brasileiros estão ressuscitando agora. Trata-se de uma forma de evitar a regulação. Em vários países, a autorregulação em diversas áreas nunca impediu que o Estado exerça seu papel regulador. No caso brasileiro, a Constituição é absolutamente explícita sobre as necessidades de tais leis. Se os empresários querem implantar a autorregulação deles, eu não tenho nada contra, que façam. Agora, isso é diferente de regulação feita pelo Estado, com controle social, coisa absolutamente necessária, como ocorre em outros lugares do planeta.

O senhor acha que existe uma tentativa de cerceamento da mídia na América Latina?

V.L. – Vários candidatos ligados ao campo popular no continente venceram eleições presidenciais em diversos países. Pela primeira vez, a grande mídia, articulada no hemisfério pela SIP (Sociedade Interamericana de Prensa), se viu derrotada em seus próprios países. Em alguns casos ela foi coautora de golpes, como no caso da Venezuela em 2002. Nesses países, dentre os vários compromissos eleitorais dos candidatos, estava uma revisão da regulação da mídia. Os grandes grupos do setor sempre estiveram associados às elites dominantes, apoiaram golpes de Estado dos anos 1970 e 1980. No Equador, por exemplo, o presidente Rafael Correa criou uma comissão para rever a legislação das concessões de rádio e TV. A gente tem de entender a reação dos grupos de mídia dentro do contexto histórico da América Latina. Daí a tentativa de se convencer o conjunto da população de que a liberdade de expressão está sendo ameaçada no continente. Isso chega a ser um acinte à inteligência das pessoas. Tenta-se confundir liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Essa é uma batalha de ideias na qual os grandes grupos de mídia estão apostando. Esses setores afirmam que a regulação externa, a regulação pública, estatal ou o controle público dos meios de comunicação seria uma forma de censura. O exemplo maior vem do jornal O Estado de S. Paulo, ao alegar que estaria sob censura. Na verdade, o que houve foi uma decisão judicial sobre partes de um processo que não podiam ser divulgadas, por questões de segredo de justiça. Isso faz parte de um jogo maior.

Para terminar: teremos ou não em um futuro próximo uma comunicação mais democrática no Brasil?

V.L. – Vamos por partes. Há mais de 15 anos, tenho tentado dizer que a mídia impressa não tem a importância que se atribui a ela. A circulação dos maiores jornais é baixa. O principal diário tem uma tiragem de 250 mil exemplares, em um país da dimensão do nosso. Esses jornais, que se dizem nacionais, são na verdade locais ou regionais. As tiragens são ridículas, mesmo se comparadas ao tamanho da elite brasileira. Por isso, eu tenho esperança de que a mídia alternativa se fortaleça. Penso no fortalecimento da imprensa contra-hegemônica, no movimento da Altercom, a associação dos pequenos e médios empresários de comunicação, no fortalecimento dos sites alternativos da Internet, no esforço que a EBC (Empresa Brasileira de Comunicação) está fazendo para ser uma empresa pública. Enfim, tenho esperança que esse quadro mude, por força da realidade. Eu acho que a geração mais nova já não tem o hábito da leitura impressa como a minha tinha. Há alguns anos, era um hábito quase religioso uma pessoa de classe média acordar e, no café da manhã, ler o jornal. Isso mudou. Com isso, o poder da grande mídia, sobretudo da mídia impressa, vai se reduzir. Hoje, a informação está muito fragmentada de muitas formas diferentes. O ouvinte e o leitor cada vez têm mais acesso à pluralidade da Internet. Não é mais possível ver a mídia falando da política externa brasileira como faz atualmente. Ela quase fala sozinha. Como diz o Bernardo Kucinski, na mídia impressa, a elite é a protagonista, a fonte e a leitora principal. Se lermos a imprensa estrangeira – mesmo a imprensa americana –, que tem um pouco mais de diversidade do que a nossa, vemos o absurdo da cobertura sobre as ações de política externa brasileira. Os jornais estão cada vez mais ideológicos e partidarizados. Eles vão falar cada vez mais para seus próprios nichos e, espero, deixarão de ter essa importância atual. Parece até que o que sai no Globo, no Estadão e na Folha é o sentimento nacional a cada dia. Não é e isso está ficando cada vez mais evidente.

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Colaboraram na transcrição da entrevista os monitores Celeste Garcia e Cauê Fabiano