Por átomos e bytes, isto é, em publicações impressas e eletrônicas, a malhação da mídia americana se tornou um esporte de multidões. O seu aspecto perverso, como ficou claro nas críticas demolidoras ao New York Times no caso da repórter Judith Miller, consiste em passar a idéia de que a grande imprensa é sempre culpada salvo prova em contrário.
A direção do NYT foi crucificada por ter mergulhado de corpo inteiro na defesa da sua controvertida jornalista – que ficou presa 84 dias por se recusar a identificar a fonte oficial que vazou o nome de uma agente da CIA, embora, desde que foi ameaçada de ir para a cadeia, soubesse, mas o jornal não, que a fonte a tinha liberado do compromisso de confidencialidade.
É verdade que o NYT errou ao deixar que a própria Judith conduzisse a estratégia de sua defesa, que custou ao jornal algo como 1 milhão de dólares. E ao não apurar, enquanto fosse tempo, as verdadeiras motivações e ligações da repórter a quem permitira trabalhar como se a sua única chefe fosse ela mesma.
Mas o que diriam os detratores se o NYT não fizesse um escândalo e fosse para a briga diante do que lhe parecia ser um caso clássico de violação do direito jornalístico do sigilo da fonte?
O aspecto positivo da obsessão em garimpar escândalos da imprensa nos Estados Unidos, esticando a corda da crítica tradicional aos seus processos e produtos, é que ela está pondo fim à ‘Era da Mídia Arrogante’, escreveu no National Journal (28/10) o colunista William Powers:
‘A cultura jornalística está debaixo do polegar do público. Tornou-se mais transparente, mais obrigada a responder por seus erros e mais pronta do que nunca antes a limpar os seus malfeitos.’
Cinco dias depois, em 2/11, no Washington Post e no New York Times, ela mostrou também que não perdeu os dentes – e que o papelão de Judith Miller, a confidente de Scooter Libby, o então sub do sub de Bush, Dick Chenney, não tirou dos seus colegas sem rabo preso com o poder o saudável apetite pelo que os poderosos têm a esconder.
No Post, a repórter Dana Priest revelou o Gulag americano, com a matéria de primeira página ‘CIA mantém suspeitos de terror em prisões secretas’. No Times, os repórteres Tim Golden e Eric Schmitt emplacaram, também na página 1, que ‘Política para presos divide radicalmente funcionários de Bush’.
As duas reportagens exclusivas se complementam – e compõem um quadro aterrador das barbaridades cometidas por Washington em nome de sua (vã) guerra global ao terrorismo e do seu empenho em deixá-las impunes.
‘Lugares negros’
A história de Dana Priest – toda ela baseada, por sinal, em informações ‘em off’ não desmentidas – é que, autorizada pelo presidente Bush, a CIA escondeu e interroga clandestinamente mais de 100 suspeitos de ligações com a Al-Qaeda, em ‘lugares negros’ de vários países, da Ásia à Europa Oriental. Um desses lugares, geralmente subterrâneos, é nada menos do que uma instalação dos tempos do domínio soviético na região.
A reportagem informa, a propósito, que deixa de publicar os nomes dos países do Leste Europeu envolvidos no programa secreto a pedido de altos funcionários dos Estados Unidos: ‘Eles argumentaram que a revelação poderia prejudicar os esforços antiterroristas nesses e em outros países e transformá-los em alvos de possíveis retaliações terroristas’.
Segundo o texto, nesses países pouquíssimas pessoas estão a par dos ‘lugares negros’. Até porque, como nos Estados Unidos, em alguns deles a existência de prisões secretas é ilegal, sem falar que as respectivas leis dão aos detentos direito de defesa em um tribunal constituído.
Os direitos dos presos, naturalmente, são nenhum. ‘Sabe-se praticamente nada sobre quem está naqueles lugares, quais métodos de interrogatório são usados com eles, ou como se tomam as decisões sobre por quanto tempo devem ficar detidos’, escreve Dana. ‘Talvez pela duração de suas vidas.’
A matéria faz referência também à transferência de presos aos serviços de inteligência do Egito, Jordânia, Marrocos e Afeganistão, entre outros, para interrogatórios sob tortura.
É a chamada rendition (entrega), denunciada pela primeira vez, salvo engano, pelo repórter Rajiv Chandrasekaran, do mesmo Washington Post, em 11 de março de 2002 – e debulhada, no revoltante caso particular de um completo inocente, em quatro artigos-reportagens do colunista Bob Herbert, do New York Times, em fevereiro deste ano.
A nova contribuição do NYT para a exposição dos horrores da era Bush, citada acima, está na revelação de Golden e Schmitt que a Casa Branca está impedindo o Pentágono de usar a linguagem das Convenções de Genebra, de proteção aos prisioneiros de guerra, nas regras sobre o tratamento a suspeitos de terrorismo.
‘Qual é a parte que não entenderam?’
A Casa Branca quer que eles possam ser torturados. Setores do Pentágono resistem. Alegam que isso desmoraliza os Estados Unidos perante o mundo e deixa soldados americanos capturados sujeitos a sofrer o mesmo.
A alegação é de pasmar: os termos das Convenções de Genebra seriam muito vagos! O que levou o New York Times a perguntar, sarcasticamente, em editorial: ‘Qual é a parte que eles não entenderam das proibições de matar, torturar, mutilar, humilhar e praticar atos de crueldade?’
Quem lidera o partido da legalização da tortura na cúpula do governo é o vice-presidente Cheney. Ele quer que Bush vete uma decisão do Senado, tomada por 90 votos a 9, que imporia os padrões internacionais e as leis americanas ao tratamento de prisioneiros, impedindo que recebam tratamento cruel e degradante.
Quando Lewis Libby renunciou, na esteira do caso Valerie Plame/Judith Miller, Cheney o substituiu pelo advogado David Addington. Em 2002, ele ajudou a redigir o famoso memorando justificando a licença para torturar.
A matéria do NYT conta que recentemente ele censurou severamente um assessor que preparou uma minuta decerto civilizada de um novo manual sobre o assunto para uso dos militares. ‘Essa é a fronteira ao longo da qual a democracia se confunde com a tirania’, diz o jornal.
Para os jornalistas democratas, a moral da história parece óbvia: a crítica de mídia, nos Estados Unidos, deveria saudar o empenho dos jornais mais importantes do país em mergulhar nas trevas do bushismo com a mesma ênfase com que denuncia os seus pecados.
É fácil dizer que eles não fazem mais do que a obrigação. Difícil, na infame fronteira de que fala o Times, é cumpri-la. [Texto fechado às 15h21 de 7/11/2005]