Nem havia percebido direito. Há dois meses não folheio jornal algum. Não que eles me sejam inacessíveis. Pelo contrário. Tenho sempre à mão, no trabalho, em minha mesa, embaixo de meu calendário-redoma ao menos os quatro de maior circulação no Brasil. E não folheio por uma coisa muito simples: eles já chegam com cheiro de notícia requentada e o dia nem chegou ainda à sua metade. Estão lá mofando, vez ou outra até me animo a ver as fotos da primeira página e não passo disso.
Vejo que minha relação com o jornalismo impresso vai de mal a pior. E já foi boa, muito boa mesmo. Aquelas manhãs de sábado caminhando por Copacabana para comprar o Jornal do Brasil, aquele da Condessa Pereira Carneiro e a alegria de não me decidir por onde começar a leitura: começo pelo ‘Caderno B’? Não, vou direto para a ‘Coluna do Castello’; ei, espere aí!, vou começar pelo suplemento ‘Idéias’. Terminava que, como acometia a todo curioso incurável, começava a leitura pela coluna do Zózimo Barroso do Amaral.
Os jornais de hoje me trazem sempre a sensação daquele personagem dos anos 1970 criados pelo Chico Anysio. O tal Pedro Bó. O sujeito só falava obviedades e repetia o senso comum à exaustão. Mas era riso certo vê-lo transitando da telinha mágica da TV para a rotina da Rua do Rosário, da Candelária, da Ataulfo de Paiva. A relação com Pedro Bó vem da percepção cada vez mais aguçada que os jornais impressos estão condenados à prisão do tempo passado: já chegam às bancas envelhecidos por toneladas de gigabytes de informações e notícias acessíveis em extenso número de portais, sítios e blogues nessa roda virtual e viva chamada internet.
Naftalina tecnológica
É uma competição desigual que, se levada muito a sério, pode marcar os que praticam a atividade jornalística com a chancela irrecorrível da insanidade. É que estes estarão sempre sendo ultrapassados, furados, escanteados por tecnologias que eternizam o momento presente. Os jornais, como os conhecemos hoje, tendem a se transformar em obituários caudalosos dando conta das últimas 10, 15, 24 horas. E não passam disso. Observemos: antes de dormir, pouquinho antes de retirar as lentes de contato (sim, uso lentes de contato) faço uma varredura pelos portais da internet: vejo as novidades nos sítios Blue Bus, Gizmodo, Observatório da Imprensa, Carta Maior, Kotscho, Azenha. Depois vejo as últimas atualizações nos portais de notícias aos quais minha vista se acostumou: Terra, UOL, Globo/G1, Nassif. E não importa se vou pregar os olhos às 23h30 ou às 3h da matina. Essa rotina tem que ser obedecida para que possa me sentir no direito de dormir em paz… com minhas notícias e com o que está acontecendo no mundo. Apenas sextas e sábados aumento alegremente o tempo dessa rotina incluindo sítios saborosos como El País (Espanha), Olé (Argentina), The New York Times (EUA) e mesmo a Al Jazira (Qatar). É que posso dormir até mais tarde nas manhãs de sábado e domingo. Simples assim.
Não é assim que me sinto em relação ao livro digital. Cada coisa em seu lugar. Encomendei o Kindle apenas pela praticidade de saber estar em posse, locomovendo com minha pessoa, nada menos que 1.500 livros, devidamente digitalizados, guardados no ‘leitor digital’. Não me passa pela cabeça viver sem contato diário com meus livros. A textura, a mão no papel, na lombada do livro, o cheiro do papel, a espessura da página, tudo isso me traz um possante sentimento de posse, de pertencimento. Geringonça alguma irá ocupar esse espaço em minha memória afetiva, táctil, visual e olfativa. Mas com os jornais impressos não sou preso a qualquer lealdade. Estes já tinham sua existência caracterizada pelo efêmero, pela impermanência, já que a cada 24 horas a edição de hoje lança uma pá de cal na edição de ontem. Agora, neste momento, o que era efêmero transmutou-se para fugidio, uma vez que as notícias e as informações se sucedem a cada milionésimo de segundo. Nada de 24 horas para existência útil. Em segundos o novo passa a ter o odor de uma espécie de naftalina… tecnológica.
O tempo nunca foi tão real
É inegável que a galáxia de Gutenberg teve vida longa e frutificou bastante. De 1492 a 2009 alguns séculos ficaram aprisionados sobre a folha impressa, com todas as suas glórias e misérias. É igualmente inegável a percepção que nos últimos 40 anos uma nova galáxia surgiu. A galáxia surgida no ambiente de Steve Jobs e Bill Gates. E pensar que eram apenas quatro computadores ligados em dezembro de 1969, quando a internet começou a existir, ainda com o nome de Arpanet e o objetivo de garantir que a troca de informações militares prosseguisse, mesmo que um dos pontos da rede fosse destruído por bombardeio inimigo. Mesmo 16 anos depois, em fevereiro de 1986, já em uso por várias universidades norte-americanas, a internet ligava apenas 2.308 computadores em todo o mundo. O crescimento exponencial só começaria em janeiro de 1991, com o desenvolvimento da ‘teia de alcance mundial’, a World Wide Web (ou www, ou Web): de 376 mil servidores então, passaria para 1.776.000 em julho de 1993 (quando surgiu o navegador gráfico Mosaic), começando então uma fase em que a cada ano esse total dobrava. Para não nos afogarmos em números cito apenas o impressionante aumento no número de internautas brasileiros entre 2005 e 2008: em 2008, 56,4 milhões de brasileiros com 10 anos ou mais acessavam a internet (34,8% do total) contra 31,9 milhões em 2005.
Durante anos, folhear um jornal era adentrar um ambiente inteiramente desconhecido. Cada edição impressa, uma vez lida, diminuía o tamanho de minha ignorância, alargava minha visão, levando-me da província ao mundo inteiro. E isso só acontecia uma vez ao dia. Nos últimos anos cada dia é uma busca constante por atualizações, é um noticiário que nunca acaba e me sinto como integrante de uma imensa redação planetária a produzir matérias, reportagens e a ver seu enriquecimento com imagens, áudios, vídeos, linhas do tempo, ilustrações, infográficos. Atualização de notícia significa, quase sempre, melhor checagem, repercussão de fatos e idéias. Aprimoramento em tempo real. Sim, o tempo nunca foi tão real como o é agora. E cada notícia tem como certidão de nascimento a informação do exato momento em que recebeu atualização. Para não ficarmos perdidos demais costumamos citar a notícia informando a hora em que foi atualizada no endereço virtual tal e tal.
Audiência global na internet
E a luta pela primazia da notícia, a extrema felicidade do ‘furo’? Isso parece estar se encaminhando para fato típico das calendas gregas. É que no momento mesmo em que a notícia está sendo disponibilizada na internet um rápido passeio pelos sítios da concorrência nos mostra como está sendo feito nosso trabalho jornalístico. Claro, temos os preguiçosos de sempre, os que gostam de parasitar: começam mudando o início do texto (lead), recriam intertítulos, destacam esta ou aquela informação e saem confiantes de que ficarão bem na fita. Desse jeito o furo (no jargão jornalístico, é claro) para ser furo que se preze requer esforço colossal, boa rede de informantes, gente bem posicionada nos altos escalões governamentais, empresariais, esportivos etc.
Ter como fonte primária e final de informação a internet pode nos fazer pensar na imensa solidão de espírito em que nos encontramos. Checamos a informação que desejamos em endereços virtuais que reputamos detentores de credibilidade. E salvamos a informação – sim, o verbo salvar está bem utilizado, aqui no sentido de reter, conservar, manter – para ser contraprova no caso de futuros problemas advindos com o uso da informação. Mas, não estamos sós. Esta última frase lembra filmes de ficção científica do último quarto de século (1975-2000) a chamar nossa atenção para a existência de seres vivos em outras galáxias. Mas, aqui nesta reflexão, sou apenas um indivíduo dentro de formidável contingente de 1.007.730.000 pessoas. Aqui a informação completa:
A comScore, companhia de pesquisa de mídia digital, divulgou estudo que utilizou o recurso World Metrix, dando conta que em dezembro de 2008, a audiência global na internet chegou a 1.007.730.000 pessoas – contabilizando pessoas acima de 15 anos com acesso em casa e/ou trabalho. (http://info.abril.com.br/aberto/infonews/012009/23012009-25.shl)
Nem havia percebido direito. Há dois meses meus olhos assimilam quase que exclusivamente as notícias acessíveis na internet.
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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter