O Correio Braziliense, o Jornal do Commercio de Recife e o Jornal do Comércio do Rio de Janeiro são mais antigos, mas essa anterioridade conta apenas para efeito cronológico. De fato, o jornal mais antigo do Brasil, em plena circulação, é O Estado de S.Paulo, que no dia 4/1 completou 133 anos. Num país que começou a ter publicações periódicas com um século de atraso em relação aos demais países do novo continente (e 400 anos de defasagem em matéria de universidades), é uma data importante.
Em períodos anteriores, a ampulheta mudaria de posição sem sobressaltos. Nesta época de crise aguda do jornalismo impresso e com ventos de incerteza soprando na direção específica do tradicional jornal paulista, um ano a mais tem um valor redobrado. Há uma sugestão nada sutil, para todos os jornais, de que talvez não haja aniversário a comemorar no ano seguinte. A crise é real e, provavelmente, inevitável. Nem por isso seus resultados são necessariamente ruinosos. Uma época está chegando ao fim de verdade, mas talvez seja possível moldar em boa medida a época que está a se anunciar ou a chegar pra valer.
Certa melancolia me invade quando passo por uma banca de revistas, com número crescente de publicações, exceto de jornais, que cabem num escaninho das prateleiras. Desde o dia 1/1 não é mais possível comprar em Belém um exemplar de O Globo. Por ironia, exatamente quando volta a ter um correspondente fixo na cidade, com a designação de Ronaldo Brasiliense para o posto, o jornal dos Marinho desaparece de circulação. A melhor cobertura local é para enriquecer o portal de O Globo, que passará a ser a única fonte de contato para os seus leitores paraenses (assim também para outros mercados espalhados pelo país, como Manaus, cortados da distribuição do jornal).
Não leio jornal na internet, mas podia me permitir esse hábito se decidisse abdicar à cognição que só uma folha impressa me abre. A leitura na tela de um computador é rápida, desatenta, insossa. Debruçado sobre uma página, reflito, saio em devaneios, imagino, crio. As telas de um computador são ótimas para executar o que concebi antes. Provavelmente perderei o contato com O Globo, da mesma maneira como o Jornal do Brasil, a Folha de S.Paulo e a Gazeta Mercantil desapareceram do meu horizonte. Esta é a razão do gosto melancólico que me sobe à memória quando passo pelos supermercados de publicações coloridas e elípticas, nos quais as bancas se transformaram.
Dose excessiva
Lembro vivamente quando as primeiras bancas de rua foram instaladas em Belém, novidade trazida através da primeira rodovia de integração (e sujeição) nacional, a Belém-Brasília, que nos trouxe também o agressivo país vizinho, o Brasil, no início da década de 1960. Antes, tinha que ir à Livraria Vitória, na padre Eutíquio, para pegar as publicações ‘do sul’ (já com o glamouroso carimbo ‘via rodoviária’ na capa, justificando o atraso, mas garantindo a modernidade), ou esperar pelo retorno do meu pai das numerosas viagens que fazia a esse paraíso da imaginação nesta remanescente terrinha portuguesa (e que assim se manteve, apesar da Cabanagem).
Um dia, descobri uma banca plantada na Praça da República, em frente ao Instituto de Educação do Pará, o IEP das adoráveis ‘piramutabas’, nossas normalistas lindas, bem perto de casa. Depois, passei a comprar o JB, o Correio da Manhã, a Última Hora e, às vezes, o Estadão em outra banca, na Avenida Portugal, esta vizinha do CEPC, onde então estudava. Era com volúpia que me apossava desses jornais e em estado de graça os levava para casa, para longas e ricas jornadas de leitura e anotação. Nunca quitarei meu débito com os profissionais que deram a esses jornais uma estatura que hoje está fora do padrão, na relação inversa com suas raquíticas possibilidades técnicas (agora infinitas).
Não seríamos as pessoas em que nos tornamos sem a leitura desses jornais, e de mais algumas publicações episódicas, a nos incutir capacidade crítica e uma dose de audácia. Freqüentar as redações do JB, do Correio da Manhã e do Estadão equivaleu a fazer os cursos fundamentais da minha vida profissional, sempre fora da escola: confirmei e multipliquei as lições que já tomara sozinho, ao ler com admiração e proveito as páginas desses jornais. Nenhuma influência foi mais marcante do que a do Estadão, simplesmente por ter tido nele uma posição ativa ao longo de 18 anos, como seu repórter.
Por esse passado que se desvanece, o registro sobre os 133 anos do jornal em suas próprias páginas foi burocrático. Parece que a notoriedade do Estadão inibe uma abordagem mais profunda da sua história, como se ela já tivesse sido contada e fosse pública e notória. No entanto, ainda abriga um conjunto de incógnitas, mistérios, mitologias e omissões. De uma delas fui testemunha: a subestimação do papel de Júlio Mesquita Neto.
De forma discreta, mas clara, a versão oficial da crônica da casa diz que Júlio Neto foi uma figura apagada, ainda mais quando colocado ao lado do pai e do avô. Era Ruy Mesquita quem estava habilitado a suceder Júlio Mesquita Filho quando ele morreu, em 1969, sete meses depois de romper estrondosamente com os militares, com os quais contribuíra para a derrubada do governo João Goulart, em 1964. Fiel aos seus princípios, o ‘doutor Julinho’ achou que o AI-5, de 13 de dezembro de 1968, era dose demasiada para uma democracia, mesmo a fardada (ao gosto udenista). Por isso, escreveu o editorial ‘Instituições em frangalhos’, que provocou a invasão do jornal e o início da censura oficial na sua redação.
Tom de desinteresse
De fato, Ruy era o mais intelectual dos filhos do ‘doutor Julinho’. A única vantagem de Júlio Neto sobre ele era a idade, peso decisivo no critério sucessório. O novo diretor sabia disso. Sabia também que era uma sombra do pai, que durante 42 anos imprimira a marca d´água do jornal, baseada na sua inquietação, insubmissão e coerência pessoal, mesmo quando comprometida por inconsistências externas (resultantes, dentre outros fatores, do paradoxo do surgimento do liberalismo brasileiro sob a ordem escravocrata, numa democracia de privilégios e autocracia).
Poucos homens públicos tiveram uma personalidade tão forte quanto a de Júlio Mesquita Filho. Só um pequeno exemplo: ao visitar Salvador, na metade da década de 1960, dispensou as honras oficiais e as comitivas que foram buscá-lo no aeroporto e desceu no fusquinha da correspondente, Zilá Moreira, que ia estupefata ao volante. E ajudou a empurrar o velho carro quando ele pifou, em plena avenida.
A fraqueza, porém, foi a força de Júlio Neto. O Estadão se tornou a melhor usina de informações sobre o Brasil da ditadura graças ao apoio que ele deu aos jornalistas dispostos a enfrentar a censura, fugir à sedução do poder e romper com os profissionais chapas-brancas. Patrocinou pessoalmente a cobertura enfática da abertura da frente amazônica pelo governo e a iniciativa privada, a melhor fonte de referência sobre tudo que aconteceu na maior fronteira de recursos naturais do planeta nos anos do regime militar.
Foi tão crítico e preciso esse acompanhamento que criou embaraços para a casa: muitos dos criticados eram seus amigos, bandeirantes quatrocentões. A tensão interna foi constante até que, enfim, o Estadão deixou de ser único – e não só nas questões amazônicas. Hoje, é mais um no panorama geral dos que encaram a crise real da mídia impressa mais como uma questão de marketing do que como postura editorial. Talvez por isso o registro do aniversário deixe um tom de desinteresse e de falta de curiosidade, que tanto mal faz ao jornalismo, agora e sempre.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal, Belém (PA)