A coluna da ombudsman da Folha de S. Paulo, Suzana Singer, após a primeira semana de circulação do jornal O Estado de S. Paulo em novo formato, mais enxuto (“Queridos, encolhi o jornal”), somou-se a temores e críticas que jogavam para baixo o moral da redação do diário. A descoberta de que haveria demissões, ainda antes do anúncio da reforma, tinha criado intensa preocupação na sede e nas sucursais.
Enquanto lambia as feridas, um dos jornalistas teve a ideia de comparar o tamanho do “núcleo duro” das edições dos dois jornais naquele domingo. Constatou que, enquanto Primeiro Caderno, Mercado, Cotidiano, Esporte e Ilustrada somavam na Folha 62 páginas, no Estadão o novo Primeiro Caderno, Economia & Negócios, Caderno 2 e Edição de Esportes vinham com 76 páginas.
A rigor, portanto, em matéria de jornal diário, justo naquele dia o Estado tinha mais páginas do que a Folha, o que Suzana não poderia adivinhar quando escreveu a coluna. O autor da comparação entendeu que a crítica da ombudsman fora atropelada pelos fatos. Compartilhou a constatação com os colegas. O petardo virou injeção de ânimo.
Meses de sofrimento
O clima opressivo na redação do Estadão naquela segunda quinzena de abril vinha sendo alimentado por diferentes episódios de demissão coletiva nos quatro meses precedentes, entre eles o que desempregou metade dos 120 profissionais do Jornal da Tarde,publicado pela última vez em 31 de outubro de 2012.
Como nos dois anos anteriores, os jornalistas do Estado de S. Paulo tomaram conhecimento do iminente fechamento de postos de trabalho por meio de vazamentos sempre desmentidos pelos dirigentes da Redação e sempre confirmados pelos fatos.
Não dava mais para confiar. Como boataria e comedimento são antípodas, espalhou-se que estava a caminho um megacorte de pessoal. Uma noite, alguém pôs no sistema Hermes – plataforma de edição do jornal e de acesso a tudo que é produzido pelas empresas de comunicação do grupo – o projeto de adaptação da reforma de 2010, feita pela Cases I Associats, de Barcelona. O site Comunique-senoticiou.
Só mais um ou dois anos?
O Sindicato dos Jornalistas de São Paulo pediu uma reunião urgente com a diretoria do Estadão. Usou o instrumento do dissídio coletivo de natureza jurídica, que garante prioridade em relação a milhares de dissídios salariais que tramitam na Justiça do Trabalho. A empresa viu-se obrigada a negociar quando foi concedida pela Justiça do Trabalho liminar que suspendia as demissões.
Fizeram-se duas reuniões. Os números foram esclarecidos: entre 347 jornalistas empregados em São Paulo, haviam sido demitidos 31: menos do que os 10% a partir dos quais se caracteriza a demissão em massa. Número igual à metade dos profissionais do Jornal da Tarde que foram absorvidos pelo Estadão – impresso e portal. Saíram também pessoas jurídicas e gente com menos de um ano de casa. O Sindicato obteve o pagamento de dois salários adicionais e seis meses de vigência do plano de saúde. As mesmas condições dadas aos demitidos do Jornal da Tarde.
A primeira percepção coletiva na redação foi a de que tinha chegado ao fim a trajetória do jornal fundado em 1875. Instituiu-se um “bolão” sem apostas em dinheiro: vai durar mais um ano, dois. Houve choradeira na editoria de Cidades quando foi confirmada a demissão de um repórter querido.
Tempo real
O diretor de conteúdo do jornal, Ricardo Gandour, percebeu que era hora de conversar com a equipe. Tardiamente? Talvez. Não se deve ignorar que mudanças dessa natureza sempre são conduzidas com o conhecimento de um grupo reduzido de chefes.
Numa palestra, Gandour garantiu que a nova reforma (houvera mudanças em 2003, grandes reformas em 2004 e novamente em 2010) tinha como objetivo dispor de recursos para aumentar a qualidade do impresso – o jornal quer oferecer, além da notícia, análises, cenários, bastidores e outros elementos de contextualização –, e investir no portal e no serviço em tempo real Broadcast, da Agência Estado.
O Broadcast parecera ameaçado pela criação do Valor Pro. Temor infundado. O serviço de informações em tempo real do jornal Valor Econômico não conquistou a fatia de mercado que estava nos planos de seus idealizadores. E os investimentos feitos para estruturá-lo teriam sido a causa de cortes na redação do jornal de economia e negócios.
Jornalistas mais familiarizados com o lado empresarial da crise do Estadão também acharam que o matutino rumava para a extinção. Pesou em seu raciocínio a existência de uma dívida que, comenta-se, teria levado os herdeiros de Roberto Marinho a desistir de comprar o jornal. Os cortes estariam sendo feitos para garantir o pagamento, agora improrrogável, dessa dívida.
Houve jornalistas que se lembraram de ter ouvido Gandour prever que o jornal impresso não iria durar muito – mais cinco, até dez anos – e que era necessário se concentrar agora nos produtos digitais. A reforma de 2013 anunciaria, portanto, o início do fim.
Difícil para todos
Uma das consequências retardadas das demissões foi que jornalistas remanescentes, de diferentes editorias, decidiram aceitar convites para deixar o Estado. Os mais pessimistas ficaram surpresos, porém, quando souberam que o jornal tinha coberto uma oferta feita a um repórter prestigiado que havia passado incólume pelo enxugamento da equipe. E quando viram vagas que não se pretendia eliminar ser preenchidas por novas contratações, sem rebaixamento de salários.
A reforma de abril do Estadão foi recebida, fora do jornal, com críticas mais ou menos veementes. Enquanto Otavio Frias Filho, entrevistado por Alberto Dines no programa de televisão do Observatório da Imprensa, adotou um tom comedido (“…amim não agradou a reforma que o jornal O Estado de S.Paulo fez recentemente. Pelo menos não é a reforma que eu faria se estivesse em circunstâncias parecidas”), já sabendo que haveria cortes na sua Folha no curto prazo, para outros o que estava ocorrendo era um “suicídio”, ou, na melhor das hipóteses, uma comprovação de que está à vista o fim dos jornais impressos.
Isso pareceu, nas semanas seguintes, explicar a onda de demissões em diferentes meios: a já mencionada no Valor, a que a Folha de S.Paulo realizou no início de junho, uma, mais antiga, na Trip. Os mais alarmistas, ou mais alarmados, viram até no corte de 400 profissionais de dramaturgia da TV Record uma conexão com o fenômeno.
Há um problema com os jornais impressos? Há. Não um só. Muitos.
Como se vê na tabela abaixo, elaborada com dados do IVC (Instituto Verificador de Circulação), a tiragem dos três jornais mais influentes do país praticamente estacionou.
Circulação, 2010-2012 (mil exemplares)
Posição | Jornal | Média das edições | 2012 | ||||
2010 | 2011 | 2012 | 2ª-feira | 3ª a sábado | Domingo | ||
2 | Folha | 295,7 | 297,1 | 298,1 | 318,1 | 304,1 | 306,9 |
3 | Globo | 262,4 | 264,4 | 267,5 | 245,3 | 257,6 | 339 |
4 | Estadão | 236,4 | 254,2 | 241,5 | 232,2 | 236,3 | 277,1 |
Notas: 1) A maior circulação do país em 2012 (306,5 mil, média das edições) foi alcançada pelo Super Notícia, de Belo Horizonte. Na quinta posição aparece o Extra, do Rio, com 233,4 mil exemplares. Na sexta posição, a Zero Hora, de Porto Alegre, com 186,1 mil. 2) A estatística da ANJ (Associação Nacional de Jornais) dá a Folha em primeiro lugar em 2012.
Abaixo de 100 mil e acima de 50 mil exemplares de tiragem média por edição em 2012 estão (em ordem decrescente) outros jornais de importância regional ou setorial, como Estado de Minas (15a posição no IVC, ligeiro crescimento), Lance! (16a, queda considerável, de 14,7%), A Tribuna (Vitória; 18a, ligeira queda), Valor Econômico (19a, crescimento de 12,6%), O Dia (Rio; 21a, queda de 3,7%) e Correio Braziliense (22a, estacionado).
Na verdade, se poderia dizer que os jornais resistiram muito razoavelmente, com as exceções conhecidas (Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil e outros, menos importantes) ao encolhimento da fatia dos impressos no bolo publicitário brasileiro, que há anos cresce bem mais do que a economia. Resistiram até, que nos perdoe o divino Cartola, aos abismos que alguns cavaram com os próprios pés.
Assinantes não se abalaram
Se a opinião do leitor é importante, registre-se que o número de desistências – cancelamentos ou não renovações –, até a primeira semana de junho, estava em torno de 60, um pouco maior do que o número de novos assinantes que o jornal conquista em média por dia.
No orçamento dos jornais não foi apenas a redução do faturamento com anúncios – devido à dispersão da publicidade – que criou dificuldades. As equipes da redação cresceram com o advento dos portais.
A modernização das relações de trabalho no país aumentou muito o custo de tarefas de produção que eram exercidas por uma espécie de subproletariado sem direitos trabalhistas – no Estadão, chamados de “egípcios”, em alusão à construção das pirâmides. Agora, têm carteira assinada, adicional noturno. Os custos de impressão e logística subiram mais do que os das Redações. Todos os jornais reduzem há tempos o número de páginas.
Do ponto de vista do formato, o que havia e, apesar das tesouradas, ainda há de mal-parado nos grandes jornais é seu tamanho excessivo e sua exagerada cadernização, ditados por interesses comerciais, não editoriais. Como se sabe, o espelho (número de páginas e espaço disponível para conteúdo de cada edição) é fornecido à Redação pela publicidade, após negociações em torno de pontos sensíveis: se o jornal se deixar guiar só pela cabeça de quem vende anúncio, o leitor será submetido a uma lógica que não bate continência para os preceitos do bom jornalismo.
Isso vai dito sem nenhuma intenção de desconsiderar a publicidade, sem a qual só sobrevive a mídia subvencionada por governos ou por interesses subjacentes. Comprometida com interesses que dificilmente coincidem com os de parcelas democraticamente expressivas da sociedade.
Queridos, a grana encurtou
No Estadão, havia espaço de mais e gente de menos para ocupá-lo com matérias que merecessem publicação. A receita publicitária é a variável determinante do tamanho do jornal. Em princípio, o preço do anúncio acompanha seu tamanho, mas há variações segundo o “pacote” de anúncios, a página do jornal, o dia da semana, os descontos praticados para diferentes categorias de anunciantes etc.
Jornais vivem de assinaturas e publicidade, mas quanto ganham os jornalões com os mastodônticos anúncios de lançamentos imobiliários que ocupam, com fartura de tinta, uma, duas, três páginas inteiras? Quase nada. Fruto de uma política de descontos exagerados praticada há muitos anos.
Em tese, o mercado publicitário deveria aos poucos se adaptar às políticas dos jornais. O problema é que eles, a rigor, não as têm. Foi a publicidade que exigiu lugar na capa, espaços fenomenais, cor. Os jornais foram se deixando levar até cair em armadilhas que hoje é necessário desarmar.
O faturamento da publicidade não bancava mais segurar na empresa os muito bons, os bons e os regulares. Escolhas se impuseram: preservar os muito bons e os bons. Quem está na empresa poderá avaliar se foram justas e corretas.
Dieta faz bem
Em relação à qualidade do conteúdo, não é a dieta com menos celulose que atrapalha. Ao contrário. O novo formato do Estadão dá a sensação de que o jornal melhorou. Se não por acréscimo, ao menos por subtração: tinha muita matéria chocha no jornal. O tema é controverso, mas fontes credíveis garantem que em muitos momentos chegou-se a publicar tudo que chegava à Redação, sem deixar “gaveta”.
Outra vantagem é que foram suprimidos grafismos e fotos exageradamente abertas que não acrescentavam nenhuma informação e não hierarquizavam a informação. Eram quase imperativos em face das vastidões a diagramar.
Havia no Estadão, na esteira de um período de aparentes vacas gordas, um molde a ser quebrado. Esse formato admitia matérias não exatamente medíocres, mas, numa nomenclatura menos agressiva, “medianas”. Agora, pretende-se que o que não merece virar reportagem seja transformado em curto registro.
Os condutores da reforma estão convencidos de que se abriu espaço para publicar o que pode fazer diferença, surpreender o leitor, pautar a televisão e, por intermédio dela, toda a mídia. É um discurso convencional, que os jornalistas fazem com facilidade e seguem com dificuldade, e já tinha sido enunciado na reforma de 2010 (ver aqui). Mas é uma orientação editorialmente correta.
Salvar os dedos
O jornal, ficou-se sabendo após baixar um pouco a poeira, usou critérios em geral inteligentes para fazer os cortes. Não foram mandados embora os maiores salários, não se enfraqueceram segmentos fortes do jornal, como a Economia e a sucursal de Brasília. Foi suprimido apenas um posto de correspondente no exterior, a segunda vaga em Nova York. Os projetos especiais não foram interrompidos, viagens no país e ao exterior não foram suspensas.
Houve racionalizações. O “Link”, que era publicado às segundas-feiras, é um exemplo. Tinha uma equipe de seis pessoas para alimentar diariamente a parte de tecnologia do portal e produzir semanalmente as seis páginas do suplemento. Passou a ter quatro pessoas para alimentar o portal e produzir duas páginas por semana adicionadas ao caderno de Economia.
O design da reforma não é brilhante. Tratou-se de adaptar um modelo concebido em outras circunstâncias. Simplificar não só o impresso, mas toda a cadeia de produção de material jornalístico. Simplificar não é nada simples.
Mudar a Opinião
Outras mudanças poderão vir. A morte de Ruy Mesquita, que comandava a parte de Opinião do jornal – separada da produção e edição do noticiário, a ponto de ter orçamento próprio –, talvez desate um processo de modernização. Há anos se constata a necessidade de dinamizar a página 2 do Estadão.
A seção de Cartas talvez venha a ter liberdade para publicar posições diferentes, não só as que são escolhidas para secundar as escolhas políticas e as idiossincrasias da casa. A Folha, por exemplo, ajudada pelo advento das mensagens eletrônicas, oferece um painel diversificado e vivo dos leitores. E não omite cartas com críticas ao jornal.
Uma edição só
Não há mais duas edições, uma para São Paulo e Brasília e outra para as demais cidades do estado e do país. Voltou-se à prática tradicionalíssima de acrescentar informações em segundos clichês, aproveitando paradas de máquinas ou, caso necessário, interrompendo a rodagem para dar nos exemplares rodados em seguida uma notícia ou uma atualização de grande importância. Com isso, a redação ganhou uma hora a mais para fechar a edição, o que lhe permite reler o que já está pronto, consertar erros, caprichar, sem brigar com a oficina.
A junção das editorias de Opinião, Política, Internacional, Cidades e Esportes num só caderno tende a induzir, por contiguidade, leitores jovens, que antes só liam o caderno de esportes, a esbarrar em outros temas e descobrir que também podem ter interesse neles. Justiça seja feita ao Globo, que foi comedido em sua cadernização.
Nada indica que os jornalões estejam decididos a caminhar para o matadouro: Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo puseram nos últimos dias anúncios no horário mais caro de todas as mídias brasileiras: intervalos do Jornal Nacional,que acolhem, na praça do Rio de Janeiro, promoção do O Globo mediante remuneração contábil.
Quem ficou rala mais
Entre as vítimas do corte estão não só os profissionais demitidos, mas também os que ficaram, cujo trabalho está mais complexo, porque menos coisas são publicadas por inércia e aumentaram as exigências de reforço do conteúdo, para ir além da notícia que virou commodity – essa que circula sem lenço e sem documento pela rede. Em particular, os estagiários, informa-se, estão sendo submetidos a uma jornada de trabalho que inclui jornal e portal: começa às 8 da manhã termina às 9 da noite.
É algo que, se houver uma preocupação lúcida da direção, poderá ser resolvido com melhor planejamento. Para isso será indispensável superar de uma vez por todas uma cultura que, até recentemente, confundia improviso com criatividade e jogava as equipes num fechamento vertiginoso que o ritmo dos acontecimentos não justificava.
Muitas notícias importantes são conhecidas na pior das hipóteses desde a noite anterior, quando vai ao ar o Jornal Nacional. Isso acontece há mais de quarenta anos, mas ao longo do tempo os editores assistiram aos noticiários de televisão com a preocupação de saber se estavam deixando de dar algo da seleção feita pelo jornalismo da Globo, ao invés de, caso também considerassem relevantes tais notícias, se empenhar em qualificá-las elaborando novas pautas para apuração no dia seguinte.
Salvo da morte certa
Ninguém está em condições, hoje, de dizer se a nova reforma do Estadão vai ou não dar certo. O que se pode dizer, sem medo de errar, é que, se não a fizesse, o jornal não ia durar muito. Mas os problemas básicos do jornalismo da casa não poderão ser enfrentados sem uma discussão não apenas de gestão, mas de rumos jornalísticos. Absorvida a reforma determinada pelo passado e por contingências do presente, será preciso saber para onde pretende caminhar o jornal, nos suportes impresso e digital.
“Dar certo” não depende só dos jornalistas. A história do próprio Estadão é uma lamentável confirmação dessa sentença óbvia. Já no lançamento do Jornal da Tarde, em 1966, ficaram patentes alguns paradoxos. Foi um jornal que marcou época graças a sua modernidade gráfica e editorial. Entretanto, passou a maior parte de sua existência dando prejuízo. E concorria com o carro-chefe da casa.
Ninguém deveria ficar muito preocupado com isso na época. O Estadão estava no auge de seu prestígio. Em 1967, sua circulação chegou a passar de 340 mil exemplares. Estimava-se que a cidade de São Paulo tivesse 5,2 milhões de habitantes. A TV Globo tinha apenas dois anos de existência, não existia rede nacional interligada (que permitiria, dois anos depois, o surgimento do Jornal Nacional) e a Folha estava longe de fazer a reforma que lhe daria a proeminência atual.
Em 2012, 55 anos depois, quando a população paulistana andava na casa dos 11,1 milhões, os índices de alfabetização haviam melhorado muito e o estado concentrava boa parte das pessoas com ensino superior, mestrado e doutorado do país, o Estadão tinha circulação pouco acima de 240 mil exemplares.
Meu reino por um prédio
Nos anos 1970, o governo militar, que exercia censura prévia no Estado, no JT, na Veja e nos jornais ditos alternativos – e obtinha dos outros, via intimidação ou por afinidade ideológica, a autocensura – decidiu financiar a modernização dos meios de comunicação “dentro de um projeto de integração nacional que decorria, por sua vez, da doutrina de segurança nacional” (Alzira Alves de Abreu, no livro Eles mudaram a imprensa: depoimentos ao CPDOC, de 2003, organizado por ela, por Fernando Lattman-Weltman e por Dora Rocha).
A família Mesquita resolveu mudar redação e máquinas do Centro de São Paulo para imponente sede na Marginal do Tietê. O Estadão e o Jornal da Tarde começam a funcionar no prédio do bairro do Limão em 1976. A empresa não conseguira empréstimo da Caixa Econômica Federal, porque havia passado do apoio entusiasmado ao golpe militar à decepção e, em seguida, quando foi publicado o AI-5, à oposição ao regime, embora não ao ideário que o lastreava. Recorrera a um empréstimo em dólar do BankBoston.
Nas três décadas e meia seguintes, o jornal não se livraria mais das dívidas e dos problemas administrativos, em parte causados pela dificuldade do grupo para acomodar na diretoria e no conselho de administração os interesses e as concepções, não raro conflitantes, da descendência dos Mesquitas fundadores.
Leve-se em conta, porém, que não foi nada fácil administrar qualquer empresa brasileira em meio à escalada inflacionária que o segundo choque do petróleo (1979) desencadeou no país, tragédia que só seria superada com o advento do Plano Real, em 1994. Mas o caso do Estadão rompe os limites do compreensível.
Jornal virou bico
Em seu depoimento para o já citado Eles mudaram a imprensa, Augusto Nunes, diretor de redação do O Estado de S. Paulo entre 1988 e 1991, descreve mazelas do jornal:
“Eu sabia que os salários tinham sido aviltados, mas o que encontrei me horrorizou. Havia sido instituído pela empresa o duplo emprego. Pela empresa! Desde os anos 70, quando alguém pedia aumento, a direção recomendava ao cara que arrumasse um outro emprego e acumulasse os salários”.
Com o tempo, o segundo emprego ficou mais importante do que o primeiro. Enquanto isso, 40 indivíduos que diziam ter sido amigos de Júlio de Mesquita Filho (1892-1969) recebiam sem trabalhar.
O jornal não estava informatizado, não usava cores, não saía às segundas-feiras (“Os jogos de futebol de domingo, inclusive os da seleção brasileira, eram noticiados na terça”, relata Nunes, que comandou a reforma gráfica mais importante do Estadão).
Decisões negociais equivocadas fizeram com que, tendo se recuperado durante a Nova República com a publicação de listas telefônicas (concessão recebida, no governo Sarney, do ministro das Comunicações, Antonio Carlos Magalhães; segundo Nunes, dava lucro anual de quase US$ 100 milhões), o Estadão se visse novamente encalacrado com dívidas.
‘Diversificação’ deu chabu
Em 2004, a repórter Elvira Lobato publicou na Folha reportagem (“Mídia nacional acumula dívida de R$ 10 bilhões”, 15/2) segundo a qual o Grupo Estado tomara empréstimos de US$ 120 milhões no exterior para investimento no parque gráfico e para se tornar acionista da empresa de telefonia celular BCP, que acabou vendida ao grupo mexicano Telmex, em 2003. “Segundo informações do mercado”, escreveu a jornalista, “os acionistas teriam perdido 95% do capital investido.”
Após concluir uma renegociação com os credores, o grupo anunciara o afastamento da família Mesquita dos cargos executivos. “Francisco Mesquita Neto, ex-diretor-superintendente do grupo, assumiu a presidência do Conselho de Administração. A família participa da orientação estratégica e editorial, mas saiu do dia a dia”, informou Elvira Lobato.
A dívida financeira pesa até hoje nos destinos do jornal.
Facciosismo contaminou noticiário
A mais perturbadora herança negativa do Estadão é a credibilidade de seu noticiário ter sido sempre afetada por sua entusiástica adesão a uma das extremidades do duopólio de poder que se estabeleceu no país reconstitucionalizado. Sempre a mesma, a do antilulismo nos planos federal e paulista (mas não necessariamente a do antipetismo no plano municipal paulistano).
É não ter sido capaz de entender, como os jornais estudados por Matias Molina em Os melhores jornais do mundo: uma visão da imprensa internacional (2ª ed., 2008), que “um bom jornal é uma nação falando para si mesma” (Arthur Miller), que sua importância há de ser “muito superior às suas dimensões econômicas”, que ele se destaca “pela relevância, que vem do fato de ser lido por uma elite e pelos ocupantes de altos cargos públicos, cuja opinião ajuda a formar”.
É não ter conseguido, nem procurado, se colocar acima das correntes em choque, para tentar transmitir uma percepção do país que funcionasse como referência factual e analítica dos debates mais sérios sobre passado, presente e futuro da sociedade brasileira e do mundo. Que pusesse o acento não na emoção, mas na razão, fazendo de seu conteúdo instrumento útil para pessoas que tomam decisões, das mais abrangentes às puramente individuais.
Buscar ser justo
O Estado de S.Paulo prestou e presta grandes serviços ao país. São incontáveis as informações e denúncias que põe no mundo diariamente. Mas isso não o dispensa de buscar ser justo, na linha do que disse Zygmunt Bauman (Bauman sobre Bauman, 2011): “A justiça é o horizonte que uma sociedade justa tenta alcançar, um horizonte que se afasta a cada passo que essa sociedade dá. Insistir em dar esse passos e não afrouxar nessa insistência, aconteça o que acontecer, é o que torna justa uma sociedade”.
Entre reformas sempre apresentadas como passos seguros na direção de uma qualidade maior, unilateralismo e faltas maldosas, os poucos grandes jornais brasileiros que sobreviveram não perderam sua importância, para o bem e para o mal. Se sucumbissem, o país correria o risco de abrigar uma sociedade formada pela televisão e pelas redes sociais.