Com uma primeira página especial, a Folha de S.Paulo comemora nesta segunda-feira (23/5) 30 mil edições, ou seja, 30 mil dias cobrindo os acontecimentos do mundo. A manchete escolhida para reforçar a iniciativa, “Queda do muro põe fim à Guerra Fria e encerra conflito do século”, revela que o jornal considera esse evento o mais importante entre as 30 mil edições compostas em noventa anos de vida.
De fato, a União Soviética se desfez naquele momento. Acabava a Guerra Fria, o mundo respirou melhor sem as ameaças nucleares que poderiam, como dizia Paulo Francis, destruir a Terra várias vezes – como se uma vez só não bastasse. Mas, e a Segunda Guerra, a bomba atômica em Hiroshima, o primeiro cosmonauta, a ida do homem à Lua? Não é mesmo fácil escolher a manchete entre esses e outros momentos. No entanto, a Folha optou por eleger a queda do Muro a manchete da sua edição histórica.
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Há uma tentativa de se redimir aí. No dia da derrubada do muro, 10 de novembro de 1989, uma sexta-feira, a Folha não deu esta notícia em manchete. A notícia que a Folha considera hoje a mais importante nos últimos 90 anos, a Folha a deu sem o destaque merecido. Não manchetou. Publicou-a sob o título “Alemanha Ocidental decide o fim do Muro de Berlim” na dobra da página (no centro do jornal), enquanto a manchete do dia se referia à política nacional. O país estava mergulhado na eleição que acabaria por escolher Fernando Collor de Mello e o apresentador Silvio Santos tentava ser candidato. O Tribunal Superior Eleitoral havia decidido cassar o registro da candidatura naquele momento: “Tribunal cassa candidatura de Santos”, afirmou o jornal em manchete de seis colunas, em toda a extensão da primeira página.
Pior, na Primeira Página daquela sexta-feira, que deu a notícia da abertura das fronteiras, a queda do Muro foi mais bem tratada do que na Primeira Página de sábado, 11 de novembro de 1989, quando havia à disposição dos jornalistas do mundo inteiro as fotos da juventude derrubando literalmente o Muro.
Na Folha, o fato também não mereceu a manchete e nem a foto do alto da página. Texto e foto foram empurrados para os fundilhos da Primeira Página – abaixo da dobra, como se diz. A legenda, contudo, dava conta do momento histórico: “Um jovem alemão-oriental usa seu martelo para começar a derrubada simbólica do Muro de Berlim”. O título, também em três colunas, como a foto, registrava: “Alemães-orientais atravessam muro e passeiam no Ocidente”.
A manchete, o assunto principal do jornal naquele sábado (11/10/1989), era voltada à comezinha política local: “TSE afasta polícia do caso Lubeca e assume apuração” – alguém se lembra do caso Lubeca?
“Uma nova era”
O então secretário de redação da Folha, Leão Serva, foi quem fechou o jornal naqueles dias. Lembra-se perfeitamente do contexto e explica que o país “estava muito envolvido com as eleições”. O primeiro turno ocorreria em dia 15 de novembro, menos de uma semana à frente. Concorreram Mario Covas, Leonel Brizola, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello. “Perdemos o foco na história e ficamos olhando a historinha local”, diz, hoje, Leão Serva.
Eu era o ombudsman da Folha na época, estava inaugurando a função. Não me lembro mais se critiquei a má hierarquização da notícia na minha crítica interna. O jornalista José Arbex Jr. era o enviado especial do jornal a Berlim e os dois textos da Primeira Página trazem a sua assinatura.
Mas na coluna do ombudsman publicada no domingo, 12 de novembro, eu registrei que o Muro de Berlim havia caído e que a imprensa brasileira enviara jornalistas especialmente para cobrir os acontecimentos. Entretanto, escrevi que o episódio abria “uma nova era no futuro das relações internacionais e na geopolítica européia. As duas Alemanhas caminham para sua unificação numa velocidade jamais imaginada por qualquer cientista político nesta segunda metade do século”. Só isso, disse, era suficiente para reforçar a necessidade dos veículos de imprensa brasileiros terem correspondentes fixos na Alemanha.
Enfim, a queda do Muro de Berlim foi manchete, na ocasião, na maioria dos jornais sérios em todo o mundo. Não foi na Folha. Na segunda-feira (23/5) ela se redimiu.
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Jornalista