Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornal secular ou porta-voz da Santa Sé?

A ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, apresentou no dia 8 de dezembro de 2004 o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres [veja íntegra em (www.mec.gov.br/spmu/ftp/plano.pdf)]. Prevê 198 ações, distribuídas em 26 prioridades (do acesso ao crédito à titularidade da terra), fincadas em quatro áreas estratégicas de atuação: 1) autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; 2) educação inclusiva e não-sexista; 3) saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; 4) enfrentamento da violência contra a mulher.

Em seu discurso a ministra nem destacou a questão dos direitos reprodutivos – na língua de um Estado laico que se preze, aborto. Mas a imprensa, claro, correu a esse item, que rende ‘boa polêmica’, devem pensar os editores sensacionalistas. Entre metas, prioridades e ações, diz o documento sobre o assunto:

** Promover a atenção obstétrica, qualificadas e humanizadas, inclusive a assistência ao abortamento em condições inseguras, para mulheres e adolescentes, visando reduzir a mortalidade materna, especialmente entre as mulheres negras.

** Revisar a legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez (até 2006).

** Constituir comissão tripartite, com representantes do Poder Executivo, Poder Legislativo e sociedade civil para discutir, elaborar e encaminhar proposta de revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez.

Princípios de Pio XII?

Como foi a cobertura do Globo? No dia 9 deu ao plano manchete de capa e página nobre, a 3. A matéria do miolo, intitulada ‘Lei do aborto deve ser revista’ – um título apropriado, diga-se –, fez questão de incluir um entretítulo incentivando a tal ‘boa polêmica’: ‘Ministra não teme reações da Igreja’. Evidentemente, após pergunta ‘instigante’ de algum repórter amigo da ‘boa polêmica’. A ministra foi seca, como lhe cabia:

‘Numa sociedade democrática, todos têm o direito de discutir. O Estado é laico, a Igreja vai emitir sua opinião, como qualquer segmento da sociedade. Nós buscamos a resultante dessa correlação de forças’.

Era pouco. No dia 10, a manchete da página 10 mostrou a face real do Globo: ‘CNBB condena projeto do governo sobre aborto’. Manchete de página dada à reação da CNBB a uma política pública da República Federativa do Brasil! Que é laica, separada da igreja há mais de 100 anos – coisa que o Globo insiste em desconhecer. O secretário-geral da CNBB, um cidadão como outro qualquer numa república, diz com todas as letras: ‘Princípio é princípio até o fim’.

Como qual? O de que a Terra não se move? Ou o de que infiéis, especialmente judeus, merecem a fogueira? Que os índios não têm alma? Ou seria aquele posterior, de Pio XII, de que o nazismo é um bom regime? Ou qual? Ao que se saiba, todos acabaram motivo de atormentados mea-culpa de Roma, useira e vezeira em defender coisa errada.

Poças de sangue

Por que então a imprensa tem que se atrelar a esse atraso, que mais dia menos dia será revisto? A igreja condena o uso da camisinha. A imprensa também? A igreja condena o homossexualismo. A imprensa também? Absurdos sem tamanho, que a imprensa não ajuda a enterrar. Se o Globo é um veículo da igreja católica, precisa urgentemente, para fazer justiça ao leitor, informar sob o cabeçalho: ‘Um jornal que defende os valores da Santa Sé’. Se não se trata disso, o que têm as mulheres-leitoras a ver com a posição, sempre destacada no jornal, da CNBB? Lembra até o velho Jornal do Brasil da condessa, com seus temas-tabu: ‘O JB é um jornal católico’, admoestavam os mais velhos.

Em artigo na Agência Carta Maior, disse o advogado Avanilson Araújo, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares:

‘É perfeitamente aceitável que a Igreja adote o discurso reacionário que lhe convenha, o que é inadmissível é que a condução das políticas públicas, na perspectiva de um Estado democrático, se direcione a partir destas concepções’.

O que dizer então da mídia? É inadmissível uma imprensa que se diz secular atrelada a posições medievais.

Como serviço público, vínculo intrínseco à natureza da imprensa, a grande mídia que se diz laica não pode pautar sua linha editorial pelas vozes que preferem as mulheres esvaídas em poças de sangue por práticas inseguras do aborto. Essas mulheres são principalmente pobres e principalmente negras, e morrem como moscas. Nem bem entram nas estatísticas da mortalidade feminina, tamanho o abandono a que estão condenadas. É dever do Estado velar por elas. E nossa mídia, por mais elitista que tencione ser, não pode ignorá-las, sob pena de extinção por inutilidade e desserviço.

Estado, só no pré-natal

A ironia maior é que as leitoras ricas, brancas e católicas de nossos grandes jornais usufruem de seus abortos a 2 mil reais em clínicas chiques, assépticas, das quais saem pimponas para o cabeleireiro. Até a classe média consegue algum aborto de qualidade por 700 reais. Mas o SUS segue impedido por lei de dar este ‘privilégio’ à mulher pobre, negra e sem futuro. É sintomático, não? Mantenhamos ‘essa gente’ em seu lugar, pobre, iletrada, insalubre. Por sinal, lembra a questão da pesquisa de células-tronco. Vamos proibir, é ‘pecado’. Mas os jornais não resistem, e já vêm mostrando os efeitos sensacionais desse campo, para exercer pressão sobre o Congresso. Por quê? Porque tratamento com célula-tronco vai dar muito dinheiro, coisa que jornal brasileiro fareja longe.

Para mostrar magnanimidade, o Globo do dia 11 permitiu-se publicar artigo na página de Opinião defendendo, tão bonzinho, o aborto em caso de anencefalia fetal. Claro, esse avanço é bem-vindo, mas é pouco.

É dever da imprensa a defesa dos aflitos, cabe à imprensa liderar as campanhas em prol da saúde da mulher, é tarefa da imprensa o esclarecimento da sociedade sobre questões básicas, primárias, como o direito ao aborto incondicional seguro. Questões que em nosso país caminham para desfechos trágicos, à semelhança dos dramas que vemos nos Estados Unidos. É obrigação da imprensa defender a liberação do aborto. A mulher grávida só pode ser monitorada pelo Estado quando faz seu pré-natal. A interrupção da gravidez só é questão de Estado no que se refere à oferta de condições decentes para um aborto.

Sintonia distante

É uma questão religiosa? Pode até ser, para quem quiser, para as que professam religião ou o que quer que seja. Que estas não interrompam sua gravidez, que estas possam interrompê-la quando bem entenderem, como fazem hoje ricas e remediadas em clínicas limpas. Aí está a beleza do direito de escolha: poder optar entre as alternativas. À mídia cabe defender com unhas e dentes o direito da mulher que não está nem aí para religião a uma intervenção cirúrgica segura quando quiser interromper sua gravidez. Isso é serviço público, o resto é armazém de secos e molhados, como diria o Millôr.

Do contrário, em breve, por pressão da igreja, qualquer igreja, o Estado vai reger cada ato do cidadão. Por exemplo, o sexual. ‘Só fará sexo quem tem dinheiro.’ Daí, que tal as roupas, a maquiagem, os cabelos? Perceberam o perigo? Nossa imprensa tem cara dupla. Na editoria de Internacional critica o fundamentalismo extremista muçulmano, que retira liberdades básicas da mulher. Na editoria de Brasil dobra vergonhosamente o joelho diante das igrejas, abandonando as mulheres à sanha dos retrógrados.

A igreja está separada do Estado há tempo suficiente para que seja simplesmente ignorada pela legislação. Espera-se a mesma visão da mídia. Mas a verdade é que está cada vez mais difícil encontrar nos jornais uma cobertura que seja minimamente sintonizada com o interesse público.