De tempos em tempos, a história nos exige um pouco mais. Não apenas nos impele a construir certos consensos, validados pela ofensiva aos valores democráticos, mas também nos convoca a tomar posições diante das ameaças de retrocessos. E isso, com certeza, vale para o jornalismo.
Se nosso ponto de partida compreende o jornalismo como uma forma social de produção do conhecimento (GENRO FILHO, 2012), é preciso considerá-lo como um campo de disputa política em movimento permanente. Isso porque não há como pensar a construção do conhecimento isolada das perspectivas de mundo, como se não houvesse ideologias permeando as relações humanas de modo que o próprio fazer jornalístico não fosse afetado.
Quando seleciona fontes e informações, jornalistas fazem escolhas com dimensões políticas. Além disso, é preciso interpretá-las, contradizê-las, questioná-las. Não se pode negar, portanto, que no fazer jornalístico acionamos nossas próprias visões de mundo em um exercício delicado entre o relato, a contextualização e o questionamento de fatos e versões. Sem isso, nos restringiríamos a verbalizar um conjunto de declarações descontextualizadas.
Nilson Lage (2001b) corrobora afirmando que o trabalho desempenhado por jornalistas é (ou deveria ser) de seleção — das fontes acionadas, da extração de informações e da relação de equilíbrio construída entre as versões oferecidas pelo conjunto de vozes na sociedade. É um processo de percepção e interpretação que explicita o nível de equidade dispensada entre fontes e ideias que compõem o discurso jornalístico. Com isso em vista, como aceitar conceitos assépticos como o de neutralidade e imparcialidade jornalística? Como a subjetividade humana pode ser neutra e imparcial se ela própria está imersa em um conjunto de referências que, de algum modo, a condicionam? Como é possível produzir conhecimento separando o sujeito do objeto?
Dito de outro modo, a ideia de objetividade só pode ser compreendida na relação dialética com a subjetividade, reconhecendo o papel ativo do sujeito frente à realidade objetiva e, portanto, na construção do conhecimento. Diferente disso, é entender as relações humanas de forma compartimentada e estática, enquanto elas estão em constante movimento. Por isso, não é possível pensar o jornalismo como algo que se sobreponha as disputas sociais, políticas e econômicas, contidas em um ambiente hegemônico que, por sua vez, sempre estará acompanhado de alguma resistência.
O que isso pode nos dizer de prático quando os assuntos são as contingências de nosso tempo, como as avalanches de informações falsas — produzida pela indústria das fake news — e a crise de credibilidade do jornalismo tradicional, exacerbado no modelo de negócio capitalista da notícia como mercadoria?
A construção do mito
Um ponto de partida é refletirmos sobre o que esperamos do jornalismo como um dos instrumentos capazes de enfrentar a brutalidade política que contesta até mesmo os marcos da democracia liberal. Que papel o jornalismo pode cumprir senão o de posicionamento contumaz diante da escalada de ódio em que a práxis jornalística, por si só, é questionada?
Primeiro, parece oportuno discutir as referências teóricas que a ideia de neutralidade e imparcialidade nos impõem e de que forma elas nos prestaram um desserviço, contribuindo para a crise atual. Lima (2021), propõe repensarmos esses princípios no texto “Jornalismo e Ativismo: ainda cabe falar em ‘objetividade’, ‘neutralidade’ e ‘imparcialidade’?”
Os anos que precederam a eleição de 2018 foram marcados por intensa campanha dos meios tradicionais de jornalismo contra os princípios democráticos. Escondidos atrás do véu da neutralidade e de uma suposta verdade, insuflaram o impedimento de Dilma Rousseff, o que fustigou marcos mínimos da ordem democrática.
Favorecidos pelo suposto princípio da imparcialidade, esses veículos também permitiram que opiniões como as de Jair Bolsonaro se proliferassem na arena pública, sem questionar a criminalidade explícita em seus discursos misóginos, racistas, xenofóbicos e, por aí, vai. Um eterno retorno às falsas equivalências entre fontes e ao jornalismo declaratório. No fim das contas, essa é uma prática jornalística parcial e sem transparência.
Por isso, precisamos insistir na transparência jornalística e na honestidade discursiva. É preciso separar o joio do trigo, pensar em que condições desempenhamos o nosso papel e que fronteiras sociais ou interesses econômicos e políticos nos deslocam de cumprir nossa jornada.
Eu apostaria no ativismo em defesa de valores jornalísticos como a capacidade de ouvir o máximo de ideias em jogo na sociedade, fazendo correlações discursivas, comparações equivalentes, desmitificações e perguntas, muitas perguntas. Contexto também nunca é demais e, no jornalismo, não pode haver espaço para a ignorância ou para a preguiça. Em última análise, é possível afirmar que o jornalismo de qualidade é um tipo de ativismo em defesa da democracia e do interesse público.
Jornalistas têm direito a uma identidade
Jornalistas têm um lugar no mundo de onde partem para exercer sua práxis: as próprias teorias do jornalismo, mas também as suas convicções que, embora precisem ser balizadas por uma ética profissional, são imanentes ao seu pensar e fazer. Posicionamento, engajamento político, diversidade, pluralidade e ativismo são as palavras do momento, mas interagem em ambientes em que a linha tênue são construções ideológicas em torno de entendimentos e contradições sociais.
Castilho (2018) problematiza as relações entre jornalismo e ativismo relembrando que, como todas as pessoas, jornalistas também defendem causas. Objetividade e isenção são conceitos seculares do jornalismo tradicional, utilizados para invisibilizar a marca militante da imprensa, que se manifesta, por exemplo, quando se discute a ideia de liberdade de informação. É uma opção política da mídia tradicional diferenciar a contestação à desigualdade social e econômica de discursos em defesa da liberdade comercial, como se ambas as situações não se tratassem de uma posição militante. Nessa lógica, não é uma questão de postura: trata-se de qual ativismo interessa discutir.
Defender posições como o respeito à diversidade étnica e religiosa ou as questões de gênero e racial possui o mesmo caráter ativista existente na “promoção da transparência nos negócios públicos, no combate ao agravamento da desigualdade social, na denúncia do autoritarismo e da beligerância”. A imprensa tradicional, por conta de seu caráter ideológico, classifica o ativismo entre aquele que considera aceitável — o seu próprio ativismo — e aquele que decide rechaçar em virtude de seus próprios interesses (CASTILHO, 2018).
Se cabe a jornalistas apurar e checar fatos comprometendo-se com a verdade, conforme prevê o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (FENAJ, 2019), é preciso também que se apresente o lugar de onde se observa essa “verdade”. Técnica e ética caminham juntas no jornalismo (CHRISTOFOLETTI, 2008) e, em consonância com a teoria, orientam a capacidade de apurar, checar e criticar, o que faz do jornalismo uma profissão. Portanto, é um compromisso profissional de jornalistas o desvelamento da ilusão, da mentira e das ideologias (as suas, inclusive) que permeiam o debate público. Nesse sentido, a transparência em todo o processo jornalístico é um valor indispensável.
Penso que o jornalismo tem como princípios enfrentar as desigualdades sociais, defender os direitos humanos em toda a sua complexidade e explorar ao máximo as contradições sociais com transparência de seu próprio lugar de origem. E isso não serve para uma ou outra pauta, contudo é a essência de uma práxis jornalística entendida como síntese crítica de uma relação dialética entre teoria e prática.
Defender uma democracia radical, como um projeto de sociedade inclusiva — não a liberal, que serve para poucos —, garantindo equidade e justiça social, deve ser um horizonte para jornalistas. Chantal Mouffe (2015) diz que uma radicalização da democracia implica na criação de uma “cadeia de equivalências” entre as lutas democráticas em torno de uma “vontade coletiva”. Para isso, é preciso definir as fronteiras do “nós” e do “eles”. Como uma atividade com dimensões políticas, o jornalismo não pode se eximir de enfrentar os desafios de radicalizar na democracia, diante de um momento em que a lógica é o engano e o silenciamento de nós todos diante dos poucos eles.
Texto publicado originalmente por objETHOS.
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Clarissa Peixoto é jornalista, mestra em Jornalismo pelo PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS.
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Referências
CASTILHO, Carlos. O jornalismo é uma forma de ativismo? Medium, 07 abr. 2018. Disponível em: http://twixar.me/6DnT. Acesso em: 22 nov. 2021.
CHRISTOFOLETTI, Rogério. Ética no Jornalismo. São Paulo: Contexto, 2008.
FEDERAÇÃO NACIONAL DOS JORNALISTAS (FENAJ). Código de Ética dos Jornalistas brasileiros. Vitória, 04 ago. 2007. Disponível em: http://twixar.me/2DnT. acesso em: 22 nov. 2021.
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2012.
LAGE, Nilson. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio de Janeiro: Record, 2001.
LIMA, Samuel. Jornalismo e Ativismo: ainda cabe falar em “objetividade”, “neutralidade” e “imparcialidade”? Disponível em: https://cutt.ly/STZrB4e. Acesso em: 24 nov. 2021.
MOUFFE, Chantal. Sobre o político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.