Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalismo bola cheia vs. bola murcha

Desde os tempos de Mário Filho, a cobertura esportiva, principalmente a do futebol, fica no meio do caminho entre o jornalismo e o entretenimento. É fácil compreender. Afinal de contas, resultados de partidas, atuação de jogadores, contusões, treinos, escalações e negociações só ganham uma dimensão extraordinária porque o futebol mexe com a paixão de milhões de brasileiros. Isso sem falar em outros milhões: os de dólares e euros que circulam num mercado pouco transparente.

Mas, nos últimos tempos, o que se percebe, principalmente na televisão, é um predomínio do entretenimento sobre o jornalismo. Em emissoras de canal aberto, a edição das matérias costuma priorizar o pitoresco, o engraçado, muitas vezes em detrimento da notícia. Em vez de informar primeiro e, se possível, recorrer ao humor, a obrigação de fazer graça parece transformar-se no objetivo principal.

Os programas Fantástico e Globo Esporte, ambos do Departamento de Jornalismo da TV Globo, são dois bons exemplos dessa tendência que os acadêmicos norte-americanos chamam de infotainment – neologismo que combina informação com entretenimento –, uma espécie de fait-divers esportivo, sob o pretexto de angariar audiência de públicos a princípio não aficionados do futebol. Por ser uma revista eletrônica, o Fantástico tem no inusitado e no sensacionalismo dois recursos fáceis para atrair a atenção do espectador, no melhor estilo da revista ilustrada O Cruzeiro, dos Diários Associados, nos anos 1940-50.

Edição de detalhes

O quadro ‘Bola Cheia/Bola Murcha’, amparado na interatividade que a miniaturização das câmeras de vídeo proporciona, foi uma ideia inteligente do Fantástico. O problema é quando a edição dos gols da rodada, exibidos geralmente antes do ‘Bola Murcha’, se preocupa mais com as brincadeiras do que com os lances em si.

Detalhes como a dancinha de jogadores após o gol, a furada homérica, o esbravejar do técnico à beira do campo ou a comemoração solitária do goleiro são opções de edição que remetem aos tempos do Canal 100, com produção de Carlos Niemeyer e texto de Paulo Mendes Campos. O cinejornal foi o primeiro a colocar uma câmera junto ao gramado e captar expressões de torcedores da geral do Maracanã. Só que o Canal 100 era exibido nos cinemas duas ou três semanas após o clássico, quando já se sabia quase tudo dele. O Fantástico vai ao ar somente duas ou três horas depois do jogo e, por isso, deveria priorizar o mais importante da partida.

Editar os detalhes e esquecer o jornalisticamente mais substancioso é o que se poderia chamar de ‘jornalismo bola murcha’.

Choro e alegria

O Globo Esporte, que originalmente era um telejornal esportivo, vem seguindo o mesmo caminho do Fantástico. Em 2010, matérias com a intenção de parecer engraçadas e quadros dramatizados de qualidade duvidosa – como aquele em que dois torcedores de times opostos simulam assistir ao jogo lado a lado – parecem ter ocupado mais tempo de produção do que matérias, notas cobertas e soltas sobre o cotidiano do futebol.

Numa quarta-feira em que o Santos enfrentaria à noite, em Curitiba, um jogo difícil contra o Atlético Paranaense, no primeiro turno do Campeonato Brasileiro, o Globo Esporte colocou no ar um VT de 2 minutos e 40 segundos sobre a experiência do meia Paulo Henrique Ganso como DJ amador num baile ‘tecnobrega’ em Belém, sua terra natal. Os preparativos para o jogo, sem Ganso no time, mereceram uma pequena referência.

O auge desse infotainment, que confirma a tese de Guy Debord no livro A sociedade do espetáculo, foi a Copa do Mundo na África do Sul. Polvo Paul e mula Judith à parte, o programa gastava boa parte da produção com brincadeiras, bordões de locutores, piadas com argentinos, esquetes com artistas anônimos. Mais parecia um programa dedicado a quem não gosta de futebol. É como se a TV Globo dissesse ao espectador: se você se interessa por futebol, acesse uma TV por assinatura.

A Bandeirantes e a Rede TV!, mais contidas, esboçaram passos na mesma direção, mas talvez por contarem com produções mais modestas limitaram-se às brincadeiras de estúdio, além do indefectível merchandising dos debates esportivos.

O que fica disso tudo é uma impressão de que o adepto do futebol, aquele pessoal que acompanha o clube, comparece ao estádio, grita na vitória e chora na derrota perdeu espaço na disputa por audiência. O alto-falante do Maracanã adverte: ‘Substituição na televisão, sai o Jornalismo Esportivo e entra o Circo Eletrônico’.

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Jornalista e professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense