A divulgação do Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) reavivou o jornalismo-catástrofe. Essa escola, famosa no cinema por filmes como Inferno na Torre, agora tem um ingrediente global para explorar e infinitamente mais sensacional, tais suas variáveis à imaginação e hipóteses científicas. Bastou sair o documento para surgirem cadernos especiais, edições extras, farto material nos portais online, documentários feitos às pressas e reportagens com cientistas de todas as áreas. Um vale-tudo alarmista, em nada educativo.
É consenso que o planeta vai se tornar mais quente até o ano de 2100. Isto significa aumento do nível oceânico e dessanilização de suas águas, mudança nos cursos das correntes marítimas e uma série de eventos realmente preocupantes diante da manutenção do modelo climático atual. É preciso lembrar que o clima é dinâmico, assim como a Terra, pois se trata de algo literalmente vivo.
O que para o homem é taxado como catástrofe natural, é na verdade uma readequação climática planetária à nova situação atmosférica. Muitas vezes essas alterações foram sentidas e registradas ao longo da história recente da evolução humana, como a miniglaciação da Idade Média. Ou mesmo a mega seca do complexo amazônico em 1911, muito pior que há assistida no começo deste novo milênio.
Neste cenário de momento é incontestável o fator de antropizante. Somos – como espécie e na construção de nossa estrutura social e econômica – os únicos culpados pelo agravamento a curto prazo do efeito-estufa e da diminuição da camada de ozônio, ambos fenômenos naturais. Sem esquecer que provocamos desertificações em vários locais, poluímos mananciais de água doce, destruímos florestas e ecossistemas complexos. Apesar de tudo, nos recusamos a mudar ou repensar nossa conduta sobre o planeta.
O homem individual
A devastação desmedida é resultado do surgimento do ‘homem individual’, sem qualquer senso de coletividade e movido por um modelo orientado pelo consumo compulsivo na busca de preencher sua solidão existencial. Esse padrão de comportamento nos trouxe o quadro climático atual. Os problemas projetados pelo IPCC são apenas reflexos do caminho trilhado por nossa espécie – aturdida por sua ruptura com o mundo natural e temerosa com o rigor da pena por ignorar os rumos desta auto-exclusão.
O jornalismo científico praticado é um mero reflexo deste homem, apesar de muitas vezes tocar uma nota acima da melodia criada pela pasmaceira geral. Quanto mais o profissional de imprensa se aproxima das incertezas da nova realidade emergente no horizonte planetário, maior o seu poder de ruptura com os padrões do ‘homem individual’ e a busca pelo entendimento do ser coletivo. A percepção de mundo se altera, surge um outro estágio de compreensão das infinitas relações que cerca e movem o ato de viver.
Mas para se alcançar isto é preciso dedicação, estudo e manifestações menos precipitadas e apelativas no terreno do catastrófico e do apocalíptico. É um quebrar constante dos próprios paradigmas, posturas e pensamentos pré-concebidos. Não há como escrever e reportar qualquer tema sobre ciência sem conseguir olhar a dinâmica do todo, das mais perceptíveis até às tênues ligações entre o eterno embate sobre ação e reação.
Esse é o momento do jornalismo apresentar ao mundo as tecnologias usadas e disponíveis para mitigar o quadro descrito pelos cientistas. Avançamos no século 19 e 20 não só como agentes poluidores, mas como seres capazes de desenvolver conceitos revolucionários e concretizá-los em instrumentos extremamente úteis à vida na Terra. A questão crucial é saber até quando e quanto os países, principalmente do hemisfério norte, estão dispostos a rever suas políticas diante dos outros povos. Pois neles existe o componente cultural milenar de subjugar outras nações, em destruir o que aflora como heterogêneo para impor seus padrões.
Sistemas de exploração
Chega ser repulsivo ver o presidente francês Jacques Chirac apelar dramaticamente para se buscar a criação de órgãos internacionais de controle ambiental. ‘Fazemos um apelo para transformar o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente em uma autêntica organização internacional, de composição universal, à imagem da Organização Mundial da Saúde’, salientou em seu discurso na conferência climática ocorrida em Paris. Um apelo hipócrita, pois Chirac nunca explicou ou mencionou a imensa devastação em sua colônia sul americana, a Guiana Francesa, situada no complexo amazônico.
Difícil também escutar o premier britânico Tony Blair, na tentativa de alinhar seu discurso com os movimentos ambientalistas em proteção ao meio ambiente natural, porém sem esclarecer os motivos de enviar para suas ex-colônias as principais empresas poluidoras e interferir em governos soberanos para a aceitação das mesmas.
Entretanto, o jornalismo não pode esquecer qual é a natureza do predador. Os apelos desses países remetem à imagem do lobo sob a mira do pastor, a pedir clemência ao cordeiro. O lobo pode suplicar, mas na primeira oportunidade prevalecerá seu instinto e trucidará o cordeiro. Essa é sua natureza.
Então, antes de alardear catástrofes e divulgar cenários com profundas alterações globais, deve ser exercido o crivo crítico do profissional de imprensa. Ingenuidades à parte, pois os cientistas estão longe de representar uma casta sublimada e imparcial dentro da espécie humana. Se hoje os países subdesenvolvidos poluentes maltratam o meio ambiente, há uma boa parcela de culpa dos senhores da economia mundial.
Embora o quadro seja de gravidade, ainda faltam ações conclusivas para alterar os sistemas econômicos baseados na exploração dos países pobres, no desmonte dos aparatos opressivos, na abdicação de valores e práticas exercidas pelas nações ricas. É o lobo pedindo clemência, mas sem perder os dentes afiados. Enfim, sejamos jornalistas.
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Jornalista, pós-graduado em jornalismo científico