Luiz Weis, articulista deste Observatório, em resposta a um comentário sobre seu artigo ‘Repórter-penetra capta o pensamento de Lula‘, postado no blog Verbo Solto, defende a infiltração da jornalista Fernanda Karakovics em um jantar festivo do presidente Lula com políticos: ‘O presidente Lula não foi gravado numa situação de sua vida particular, o que seria condenável, mas num ato político – de interesse público, portanto’, escreveu. Há, contudo, de se perguntar como a instituição ‘imprensa’ delimita, hoje, o tal ‘interesse público’ e quais são exatamente as situações da ‘vida particular’ que, se publicadas, seriam condenáveis.
Mas antes de adentrar em tal assunto, é necessário que se faça outra pergunta: jornalismo de fuxico é imprensa? Indago-me sobre isso porque, dentre aqueles que tomam o jornalismo como objeto de análise (e até mesmo de ensino), parece haver uma recorrente insistência em ignorar a existência de uma parte considerável e significativa da imprensa: aquela que vive a vasculhar a vida privada alheia, ou a simular cenas ideais da intimidade das celebridades. Isso quando tal imprensa não resolve inventar namoros ou brigas conjugais, ou mesmo fazer a cobertura fotográfica das partes íntimas das celebridades nas mais inusitadas situações. Muitas delas até mesmo estrategicamente pensadas pelas fotografadas, já que se sabe que tal clichê é notícia garantida na imprensa especializada na fabulação da vida privada e íntima dos midiáticos, das socialites e de todos aqueles interessados na autopromoção ou mitificação de si mesmo.
Pode a crítica da imprensa continuar ignorando que esse viés de jornalismo é imprensa? Ou que a imprensa é uma das personagens centrais no processo de transformação da intimidade e da ‘vida particular’ em assunto de ‘interesse público’? Pode-se continuar ignorando as conseqüências dessa prática da imprensa na conduta ética do jornalismo? A partir de quais parâmetros pode-se julgar os atuais limites éticos do jornalismo e dos jornalistas naquilo que diz respeito ao que pertence ao interesse público e ao que pertence à vida privada e íntima? Vai-se continuar ignorando que é imprensa aquele jornalismo que funciona como uma espécie de Big Brother, onde em vez de pay per view 24 horas o que temos são paparazzi e jornalistas intermediando a bisbilhotagem da privacidade?
Ética e limites (ou a falta de)
No domingo (15/4), Marília Gabriela, por exemplo, em seu programa das 22h, na GNT, deixou o último vencedor do Big Brother Brasil em saia justa ao indagar-lhe se a cópula com a namorada conquistada no programa era gostosa, ou não.
Para citar mais um exemplo, dentre tantos possíveis: há alguns dias, o ator Eduardo Moscóvis, por intermédio da coluna ‘Gente Boa’, de O Globo (11/4), reclamou que vizinhos e colegas de classe estão sendo interceptados por fotógrafos, que lhes oferecem dinheiro para fotografar o quarto das filhas e do bebê que vai nascer. Moscóvis até ensaia uma defesa: ‘Eu sou a ‘celebridade’ e não elas [minhas filhas, minha família]’.
Então, como é que é? Teríamos, hoje, duas classes de cidadãos? A das celebridades (a classe que pode ter a vida privada vasculhada pela imprensa) e a das não-celebridades (a que não pode ter a privacidade invadida)? Ah, ta… Mas como isso se transforma em direito civil? Eis aí um abacaxi para os juristas descascarem, uma missão quase impossível, eu diria, a não ser que se assuma a existência de um real processo de mitificação e de produção de semideuses midiáticos.
A propósito: existiriam também duas imprensas? A que cobre a classe dos semideuses e a que cobre o resto da humanidade? Seriam então dois códigos de ética: para os primeiros a invasão da privacidade está liberada, para o resto não?
Como Carolina
O abacaxi, enfim, embora a imprensa e suas instituições finjam que não o vêem, acaba, inevitavelmente, esgarçando o código de ética da categoria – que, em teoria, resguarda a privacidade de seus entrevistados e reportados. De forma que penetrar num jantar onde a imprensa não foi convidada e gravar a fala do presidente é apenas um detalhe de conduta ética que se perde em meio a um vale-tudo e a um emaranhado de artifícios da imprensa, em sua corrida pela produção de espetáculos que invoquem a atenção do público.
E como a imprensa resiste em se discutir como produtora de espetáculos, as transformações estruturais que promove na sociedade e na prática do jornalismo parecem continuar passando ao léu, tal como Carolina, para quem o tempo passa pela janela, mas só ela não vê.
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Jornalista e atriz, Rio de Janeiro, RJ