A edição nº 1956 de Veja (17/5/2006) transformou-se instantaneamente num clássico da impostura jornalística. A justificativa posterior, assinada pelo diretor de Redação Eurípedes Alcântara, não ficou atrás: é um clássico de cinismo. Juntas, convertem-se na bíblia do parajornalismo – combinação de chantagem, espionagem e paranóia.
A matéria ‘A guerra dos porões’ (págs. 40-45) segue uma linha que Veja persegue há tempos – derrubar o presidente da República, a maior autoridade do país. Mas foi pensada, escrita e editada no extremo oposto – nos porões de uma profissão que já foi considerada missionária, romântica, decente e respeitável.
Esta que se apresenta como a quarta maior revista do mundo ocidental (quem garante?) e agora traveste-se como ‘a mais respeitada revista brasileira’ (está provado, não é?) sintetizou de forma admirável e trágica a história da sua própria decadência.
Embora o presidente Lula tenha protestado em termos impróprios contra o repórter Márcio Aith (sem mencionar o nome), fica evidente que se referia ao parajornalista e pau-mandado Diogo Mainardi, que pegou carona na entrevista concedida pelo banqueiro Daniel Dantas.
Nas redações de revistas noticiosas as matérias passam por muitas mãos, a responsabilidade é da direção da Redação – e, neste caso específico, da alta direção da empresa. Uma acusação ao presidente da República, soprada por uma figura como Daniel Dantas, só pode ser publicada quando há indícios consistentes. Aqui, consistente foi o delírio.
Apuração precária
Tudo na matéria é assumidamente inconsistente, incoerente, duvidoso, incerto e inseguro. A alegação de Eurípedes Alcântara de que as informações publicadas ‘esgotam a investigação jornalística’, além da fanfarronice juvenil é um atestado público das limitações de Veja em matéria de investigação jornalística. Quem não tem competência que não se habilite.
Sem a ajuda de arapongas, espiões e malfeitores de alto ou baixo coturno Veja não consegue dar um passo. Melhor seria que continuasse na esfera da celulite, impotência, incesto, longevidade, botox, infidelidade e espiritualismo – onde, aparentemente, lidera inconteste.
Uma revista adulta, minimamente responsável, não pode inscrever esta explicação simplória debaixo de uma lista com os nomes de grandes figuras da República e as quantias que teriam no exterior:
Veja
usou de todos os seus meios para comprovar a veracidade dos dados. Não foi possível chegar a nenhuma conclusão – positiva ou negativa.Isto não é piada, é epitáfio. Atestado de óbito jornalístico. Conclusão negativa seria uma não-notícia cujo destino é a cesta de lixo. Essa sequer é uma não-notícia, mas simples suspeita veiculada por fonte suspeitíssima e que, apesar dos ‘seis meses de investigações’, continua tão precária quanto antes da investigação. O mesmo aconteceu com os dólares de Havana que a respeitada publicação até hoje não conseguiu comprovar.
Exemplo venezuelano
Que o carro-chefe da Editora Abril tenha optado pelo haraquiri é problema da Abril. Porém a matéria de Veja vai além, ao comprometer a imprensa brasileira como instituição no exato momento em que a palavra de ordem dos calhordas pilhados em flagrante é vilipendiá-la – justamente por que a imprensa aprendeu a investigar e agora consegue se livrar dos vídeos, fitas e dossiês secretos que apareciam misteriosamente nas redações ou eram comprados de arapongas profissionais.
Passados dois dias da publicação das calúnias em Veja, o que chama a atenção é a absoluta ausência de manifestações opinativas no resto da imprensa sobre o seu aviltante comportamento. Nas edições de domingo (14/5), a matéria e a resposta do presidente Lula mereceram chamadas nas primeiras páginas do Globo e da Folha de S.Paulo. Na segunda-feira o assunto mirrou.
Nenhum editorial, apenas uma opinião, evidentemente apressada, do articulista Clóvis Rossi (Folha, 14/5, pág. 2), que de Viena considerou os supostos depósitos no exterior ‘quase impossíveis de desmentir’. A imprensa brasileira oficializou a postura do avestruz: Veja provocou uma inédita manifestação de um chefe de Estado, mas isso não pode ser comentado, contestado ou condenado, apenas noticiado. O senso crítico do leitor não pode ser exacerbado.
Um magistrado, um parlamentar e um ministro podem ser linchados pela mídia quando cometem ilícitos. Mas revistas ou jornais são inimputáveis – mesmo em crimes de lesa-pátria e lesa-majestade – graças ao habeas corpus da solidariedade corporativa. Esta mesma camaradagem tipo country club foi intensamente utilizada na vizinha Venezuela e o resultado foi (1) a ascensão do caudilho Hugo Chávez, (2) o ressentimento das massas incultas contra los medios de comunicação e (3) o castigo imposto a todos – bons e maus jornalistas, bons e maus veículos: uma imprensa encurralada.
Enquanto o narcoterrorismo captura um estado e com ele o Estado, o padrão Veja de jornalismo captura o senso crítico da sociedade brasileira para torná-la presa fácil dos desvarios. [Texto fechado às 21h14 de 16/05]