Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo e a violência fashion

Pense comigo, ao analisar estas duas notícias:

1. Chacina em São Paulo deixa seis mortos e um ferido

‘A nona chacina deste ano na capital – e a segunda maior – aconteceu na madrugada deste sábado, na Avenida Paulista, região central da cidade. Sete rapazes, que conversavam junto a algumas motocicletas, foram obrigados por um grupo a colocar as mãos ao alto e encostar-se em uma parede no Masp. Em seguida, os criminosos dispararam contra todos, atingindo a maioria na cabeça. Eles foram socorridos no Hospital das Clínicas, onde seis não resistiram e acabaram morrendo. Uma das vítimas foi baleada apenas nas costas e sobreviveu. ‘

2. Chacina em São Paulo deixa seis mortos e um ferido

‘A nona chacina deste ano na capital – e a segunda maior – aconteceu na madrugada deste sábado, na Rua Bittencourt da Silva, na Vila Albertina, zona norte. Sete rapazes, que conversavam junto a algumas motocicletas, foram obrigados por um grupo a colocar as mãos ao alto e encostar-se em uma parede. Em seguida, os criminosos dispararam contra todos, atingindo a maioria na cabeça. Eles foram socorridos no Hospital do Mandaqui, onde seis não resistiram e acabaram morrendo. Uma das vítimas foi baleada apenas nas costas e sobreviveu.’

Qual a diferença entre os dados objetivos de uma e os da outra informação? O local. Nada mais do que isso.

A primeira foi inspirada na segunda e é uma evidente peça de ficção. Não fosse, o país inteiro estaria estarrecido e irremediavelmente consternado em meio à profusão de notícias e análises sobre esse episódio.

A segunda é real e foi publicada com a Agência EFE pelo portal do Estadão. Neste exato instante em que escrevo, é apenas a terceira em ordem de importância no site, abaixo da manchete, ‘Neblina e pane em radar causam atrasos em aeroportos de SP’, e de outra chamada sobre segurança, ‘Força Nacional continuará no Rio após o Pan, diz secretário’.

Na Folha Online, também vem em terceiro lugar, sob o título ‘Chacina deixa 6 mortos e um ferido na zona norte de São Paulo’, abaixo de ‘Aeronáutica muda regra para vôos; Guarulhos tem atrasos’ e ‘Carro em chamas se choca contra terminal de aeroporto de Glasgow, no sul da Escócia’.

No Último Segundo, do iG, ocupa apenas o quinto posto no ranking do que deve ser interessante para o leitor, sob o título ‘Chacina deixa seis mortos na zona norte de São Paulo’. A manchete do portal reflete, é claro, a preocupação maior de grande parcela da população da terra do futebol e da aviação civil: ‘Mau tempo provoca atrasos em 36,1% dos vôos no País’.

Enquanto o Terra, cuja redação fica em São Paulo, simplesmente ignora o assunto na home (mas dá a imprescindível notícia de que a ‘namorada de filha de Gretchen estrela filme pornô’), o Globo Online, sediado a 400 quilômetroes de distância, destaca-o, mais para baixo na página: ‘Chacina em SP: 6 mortos na zona norte da capital’. O portal carioca preferiu enfatizar, em sua manchete, o nacionalíssimo ‘Quase metade dos vôos está atrasada’.

Jornalismo de interesses

Voltemos ao início deste artigo. Após breve exame das duas notícias, poderemos chegar à conclusão de que a distinção objetiva entre um e outro crime contra a vida será tão-somente o local em que a chacina foi praticada.

Jornalismo não se faz, contudo, apenas com objetividade, como se tem apregoado aqui e ali, felizmente com menos entusiasmo do que há alguns anos. Jornalismo se faz é com a subjetividade de quem valora a informação em nome de interesses, próprios e alheios. Tais interesses (aqueles que se aplicam pelos jornalistas) se subordinam a um conjunto de valores e de outros interesses, que se determinam pelos objetivos da empresa. Esse arco de valores e interesses também é conhecido como linha editorial.

Na esteira desse pensamento, nada mais certo dizer que a escolha da notícia deve se coadunar com o interesse do próprio público. No caso em questão, basta dizer que os leitores da internet viajam de avião e não dedicam grande atenção ao que possa acontecer com os jovens de uma favela da Vila Albertina. Mas seriam mais sensíveis se o mesmo fato se desse na glamourosa e, não menos importante, simbólica Avenida Paulista. Assim como uma chacina no Rio é ‘mais importante’ do que uma que seja cometida em São José dos Campos.

Por tudo isso, é correto dizer que o jornalista faz as vezes de mediador de interesses: os seus, os da empresa e os do leitor. Note-se como é difícil, por princípio, contemplar os valores de toda a sociedade.

Difícil, sim, mas não impossível. O jornalista deve perseguir e exercitar uma visão sócio-antropológica em face do cotidiano. Tem obrigação de voar como a águia, não como a galinha, ciente de que o que acontece na Vila Albertina é apenas uma fração de um problema maior, que, mais dia menos dia, poderá se apresentar, se não na Avenida Paulista, no quintal da sua própria casa (por ironia, aqui retornamos ao interesse individual, que forçosamente se identifica com o coletivo).

Precisamos acordar deste sonho de grandeza a que nos habituamos, posto que inconscientemente, entorpecidos pela sensação de que estamos à margem ou, mais grave, acima dos interesses implícitos no empenho pela preservação dos direitos fundamentais da humanidade, entre os quais se impõe, soberano, o direito à vida.

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Jornalista