De início, cabe reconhecer que a imprensa brasileira, após alongado período de complacência quase beirando a subserviência com a esfera governamental, descontadas as habituais raras exceções, voltou a dar sinais de autonomia, seja no empenho em tematizar fatos suspeitos, seja no destaque concedido aos desdobramentos de ocorrências recentes. Nesse particular, portanto, o leitor não tem do que reclamar.
A questão propriamente aqui a ser abordada diz respeito não à eficiência do que a imprensa registra, mas à insuficiência de sua capacidade interventora. Por intervenção, entenda-se a ação comunicativa, de perfil propositivo e questionador, em lugar de uma prática comunicacional, de caráter constatativo. No primeiro modelo, o jornalista relata e pergunta; no segundo, o jornalista informa. O que aqui se cobra não é a substituição de um pelo outro e sim a junção complementar de ambos, posto que excludentes não o são. Neste sentido, o que é informado deve servir de suporte para exploração indagativa. Tal prática, entretanto, não é reconhecível no modelo jornalístico dominante no Brasil.
Por vezes, a ausência nem é determinada por linha editorial, o que é mais grave. É provável que muitos não se valham do ato indagativo por absoluta falta de astúcia argumentativa. Também não é improvável que o fato se deva a autocensura. Seja como for, em ambas as situações, é a função jornalística que perde densidade crítica. Enquanto o primeiro caso aponta para deficiência intelectual, o segundo indicia repressão cultural. As duas situações são preocupantes.
Não seria desaconselhável que aos jornalistas, sobretudo aos mais jovens, fossem familiares os conceitos que teóricos como Jürgen Habermas e Gilles Deleuze, respectivamente, formularam sob o nome de ‘eficácia comunicativa’ e ‘intercessor’. Seus significados e práticas deles decorrentes se tornam decisivos para a vivência da democracia. Sem eles, no entanto, o corpo societário tende, ante o embaralhamento entorpecedor derivado do próprio volume de informações, a atitudes geradoras de indiferença ou de aturdimento cognitivo, perdendo o centramento acerca do que ocorre ao seu redor.
Indagar não ofende
Tentemos ilustrar o que na parte anterior do artigo foi pontuado abstratamente. Por exemplo, na edição de O Globo (9/6/05), consta a seguinte manchete: ‘Com aval do PT, Delúbio diz que governo é chantageado’. Que problema traz a referida matéria? Lendo-a, bem como os artigos que a ela aludiam, em nenhum momento, alguém se ateve ao fato do que a frase em si contém. Ora, se uma parte se diz ‘chantageada’, deduz-se que o chantagista está de posse de algo que, seja em que nível for, compromete a parte, objeto da chantagem. Conclui-se, pois, que, se após reunião a portas fechadas, o alvo de acusação vem a público com tal pronunciamento, o acusado implicitamente fez uma confissão de culpa. Todavia, esse aspecto de natureza discursiva não foi merecedor de nenhuma análise.
O mesmo jornal, em igual edição, na pág. 13, estampava a afirmação do diretor da Polícia Federal, Paulo Lacerda: ‘PF espera autorização para iniciar investigação’. A exemplo da matéria anterior, em nenhuma passagem dela, há lugar para a indagação simples e direta: ‘Por que, até o presente momento [9/6/05], ainda não havia autorização por parte da procuradoria-geral da República nem do Supremo Tribunal Federal? A matéria limitava-se a informar que ‘O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, deverá decidir na próxima semana se pede ou não ao STF a abertura do inquérito sobre o mensalão’. Mas como? Há mais de semana existe a materialidade de práticas delituosas e ainda assim vão decidir se o pedido cabe ou não? Será que, no modelo jornalístico, indagações dessa ordem não são consideradas atitudes ‘jornalísticas’? Por outra, são sim, mas não as podemos exercer, ou não as sabemos praticar? Voltamos, portanto, ao ponto de partida do artigo.
Em meio ao mar revolto, fruto da tempestade do Caso dos Correios, surge, como manobra que não esconde casuísmo nem oportunismo, a proposta do que deveria ter sido um dos primeiros atos governamentais: a proposta de reforma política. Do alto de sua expansividade egolátrica, o presidente da República deu ultimato: proposta de reforma política em menos de 45 dias. Ninguém também vai perguntar que critérios foram usados para fixação de tal prazo, em se tratando de matéria de tamanha importância. O fato, porém, é que critério existe.
Se o propósito é o de montar ‘esquema’ para melhores garantias de sucesso nas próximas eleições, a tal da ‘reforma’ tem de estar pronta até fins de setembro. Como se vê, para cada tema, indagações são tão viáveis quanto necessárias. Será que, no Brasil, ainda teremos um tipo de jornalismo um pouco mais incisivo? Aguardemos…
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA – Rio de Janeiro).