Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalismo, ética e as vozes silenciadas

Um jornalismo só de opinião ou um jornalismo só de notícias? Podemos esperar e/ou exigir uma imprensa ética? Pode a imprensa dar um exemplo ético à sociedade? São questões que permanecem nas discussões dos profissionais e dos estudantes gaúchos após o 32º Congresso Estadual de Jornalismo, realizado em Porto Alegre (RS), nos dias 2 a 3 de junho.

No encontro, o painel ‘A ética no jornalismo’ contou com a participação de quatro experientes profissionais gaúchos: Antônio Hohlfedlt, jornalista e professor da PUC-RS; José Antônio Vieira da Cunha, jornalista e diretor do site Coletiva.Net; Pedro Luiz Osório, jornalista e professor da Unisinos; e este repórter, a cargo da coordenação dos trabalhos. Os quatro fazemos parte da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalista do Rio Grande do Sul.

Para abrir o painel e esquentar o debate, este repórter disse que os jornalistas devem estar, apenas e tão-somente, a serviço de seus leitores e dos veículos para os quais trabalham, na contramão de quaisquer outros interesses econômicos e/ou políticos, conforme escreveu o jornalista inglês David Randall, em sua obra O Jornalista Universal (Edições Siglo XXI, 1999). E ainda: os jornalistas não devem aceitar as chamadas ‘publimatérias’, ou seja, as reportagens disfarçadas como publicidade oculta; devem sempre se identificar como profissionais da mídia e nunca conseguir informações por meio de artifícios como câmeras e microfones ocultos; devem corrigir sistematicamente os seus erros com o mesmo destaque inicial da matéria. E também devem buscar sempre a veracidade e a profundidade nas reportagens que escrevem.

Duplo desafio

Vieira da Cunha, em sua intervenção, disse que ‘jornalistas nem sempre são modelos de postura ética’. E continuou sua crítica: ‘Em geral, extrapolam o poder que têm e adotam posturas arrogantes. Não medem atos – invadem a privacidade de terceiros, homens públicos ou não, com escutas telefônicas, espionagens, falsidade ideológica, lentes telescópicas, câmeras ocultas. São procedimentos e ferramentas invasivos, moral e eticamente inaceitáveis’.

Ele citou pesquisa realizada pelo Instituto de Jornalismo da Universidade de Maryland (EUA), segundo a qual o público acredita que a mídia passa mais tempo falando para a elite do que para o cidadão comum. E que os veículos estão mais voltados para seus próprios interesses comerciais do que para os interesses da sociedade.

Neste ponto, Vieira da Cunha parece concordar com as posições militantes da jornalista argentina Stella Calloni, recentemente premiada pela Felap (Federação de Jornalistas Latino-Americanos) pela sua trajetória profissional. No discurso de aceitação do Prêmio Luis Suárez, Stella advertiu para o duplo desafio do jornalismo de nossa região: procurar dar a voz aos milhões de silenciados, que não existem para a mídia corporativa; além de enfrentar o imenso aparato da desinformação por parte dos poderes e daqueles que, no exercício de nossa profissão, ‘cumprem a triste função de ajudar a destruir a Humanidade’.

Causas da inação

O professor Antônio Hohfeldt, também vice-governador do estado (PMDB), preferiu em sua fala provocar a platéia: ‘Como podemos exigir ética da imprensa brasileira se a sociedade brasileira não tem ética?’, indagou ele. Foi contestado a seguir pelo outro painelista, o também professor Pedro Osório, que pregou a necessidade de uma ética profissional. Ele também apontou para a ‘prisão’ do relativismo, onde se poderia distinguir entre uma ética autoritária e uma ética humanista.

‘Os brasileiros são moralmente frouxos. Os jornalistas são brasileiros’, escreveu o colunista Diogo Mainardi (Veja, 19/4/2006). O que dizer sobre este fecho daquela coluna mainardiana? No texto, o polêmico colunista procurou embasar suas denúncias sobre promiscuidade entre a imprensa e o poder público. Haveria alguma semelhança entre a sua postura e a frase-provocação de Hohlfeldt. Mas, de fato, há que separar aqui conceitos menores de outros mais abrangentes.

Vejam a pesquisa divulgada pelo colunista Ancelmo Góis, no Globo (3/6/2006): dois em cada três cariocas acham que a corrupção no Brasil ‘não tem jeito’. Em ‘Mídia não dá conta da cleptomania nacional‘, o jornalista Luiz Weis (Observatório, 8/6/2006) afirma não ser possível cair em maniqueísmo. De um lado, políticos e funcionários ladrões. De outro, uma sociedade eticamente virtuosa. ‘O que é verdadeiramente surpreendente é que a sociedade brasileira tenha aceitado mansamente escândalo depois de escândalo’, diz o economista Gustavo Ioschpe, na Folha de S.Paulo (4/6/2006), citado no artigo de Weis.

‘Entre as possíveis causas dessa inação, Ioschpe inclui `a fadiga com o sistema político´, que teria chegado ao ponto da total indiferença, mas não separa os bandidos da sociedade política dos mocinhos da sociedade civil’, escreve Weis, para concluir:

‘A escala da corrupção brasileira é de tal ordem, e de tal forma ela perpassa a vida nacional – ou assim é percebida – que a receita clássica para a apuração jornalística da roubalheira parece irremediavelmente obsoleta. Hoje como hoje, a imprensa dá conta de apenas uma parte – e olhe lá – da endemia’.

Vulgaridade e desinformação

No real, na prática do dia-a-dia, nas fábricas, no campo, nas universidades e também nas redações, os brasileiros exercemos na prática as regras gerais da ética. Sabemos bem diferenciar o que é certo do que é errado e procuramos agir de acordo. Alguns jornalistas podem tentar enganar as fontes, na intenção de arrancar um furo de reportagem. Podem mentir e se disfarçar para captar declarações que certamente não seriam dadas, soubesse a fonte que à sua frente se encontrava um profissional da mídia. Mas, e agora, estaria este repórter sendo ingênuo ao acreditar que apenas uma minoria de jornalistas assim age? E também estaria enxergando o mundo com óculos panglossianos, ao acreditar no agir ético da grande maioria, aquela das vozes silenciadas pela grande mídia corporativa?

Ponto para Mainardi: de fato, há brasileiros ‘moralmente frouxos’. Mas esses são uma minoria, ou nos partidos e nos parlamentos, ou na academia e nas redações. Como emprestar um peso igual à minoria, enquanto a grande maioria dos que trabalham sol a sol, com jornadas de até 15 horas – que não são surpresa para nós, jornalistas – buscam simplesmente a sobrevivência própria e de suas famílias?

Naquele painel do congresso pairou a figura ‘jornalistas’ acima de quaisquer distinções de classe social. Por mais que se queira esquecer, o jornalista é profissional assalariado, e em geral muito mal pago. Se há arrogância dos jornalistas; se há microfones e câmeras ocultos para captar grandes furos; se existe, e existe mesmo, a manipulação da mídia – então é bom lembrar também do papel desempenhado pelos patrões, os grandes barões da mídia, brasileira e internacional.

Como disse Mino Carta (CartaCapital, 4/7/ 2001), esses barões da mídia estão ‘metidos até o pescoço nos negócios, não raro em negócios que envolvem o Estado e seus funcionários’. E mais: ‘Esses grupos de comunicação deixaram de ser, há muito tempo, um dos instrumentos legítimos de circulação de informações, do exercício da crítica, e de estímulo à controvérsia’.

São quatro corporações a concentrar 90% da produção mundial de jornais, rádios, televisão e cinema: Time-Warner, Viacom, Disney e a News Corp., de Rupert Murcoch. No Brasil, seis grupos controlam 667 estações de rádio e TV, manipulando num e noutro caso a informação e o entretenimento de acordo com seus interesses.

Há democracia na mídia, diante deste quadro? E haveria ética na mídia com este monopólio da vulgaridade e da desinformação? São perguntas que ficaram dos debates do 32º Congresso dos jornalistas gaúchos.

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Jornalista, integrante da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul e filiado à SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência)