Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo, o estado da arte


“Os jovens repórteres que expuseram o governo Fernando Collor não apuram mais notícias do Planalto. Cada qual teve razões particulares para isso. (…) Mas o denominador comum dos que abandonaram a imprensa foi terem ido trabalhar em empresas, suas ou de outros, que se dedicam a atender políticos profissionais, homens de negócio e instituições. Agora são assessores de comunicação, relações públicas e publicitários. (…) Gerem gabinetes de crise, contratados por gente de bens denunciada nos órgãos de imprensa nos quais antes trabalhavam. Quem ontem apontava as dissonâncias entre o marketing e a realidade é hoje marqueteiro.”

Assim começa um dos principais textos da edição de julho (nº 70) da piauí, assinado por Mario Sergio Conti. É a versão abreviada do posfácio da nova edição de Notícias do Planalto. A imprensa e Fernando Collor (Companhia das Letras, novembro de 1999), o mais espetacular lançamento editorial brasileiro na área do jornalismo político.

“Em boa medida, a cobertura política de um órgão de imprensa é produto de sua história”, escreveu Conti na apresentação da primeira edição (pág. 9). A grande façanha do seu livro foi entrelaçar a trepidante história da derrubada do primeiro presidente eleito democraticamente depois da ditadura com as pouco edificantes histórias de, pelo menos, 17 órgãos de nossa imprensa.

Treze anos depois, o saldo é melancólico. Os mais atilados buscadores de fatos transformaram-se ao longo de pouco mais de uma década em prodigiosos produtores de factoides. Nada contra: relações públicas é uma atividade legítima, lobby também será quando regulamentado. Jornalistas românticos inspirados em Hollywood têm o direito de mudar de ramo. E de sonhos.

Vontade própria

O problema não é de quem trabalhava numa redação de 100 pessoas intelectualmente empolgadas e hoje comanda empresas com muito mais gente exercendo acriticamente o inverso do jornalismo.

O problema está numa sociedade que aceitou por um tempo excessivo o jugo da censura, da autocensura – desabilitando-se para o exercício da liberdade interior –, e quando pressentiu que chegava a hora deixou-se inebriar por alguns instantes (para defenestrar Collor e sua malta) e, em seguida, rapidamente entregar-se aos prazeres do poder.

É disso que trata Mario Sergio quando revê o seu livro e lhe acrescenta uma importante camada de percepções. A metamorfose que capta não é a kafkiana, do indivíduo que depois de uma noite incômoda acorda transformado em barata; seus anais do jornalismo retratam a canibalização da imprensa pela própria imprensa.

Os cânones do jornalismo cívico exportado de Londres por Hipólito das Costa no início do século 19 foram revividos na Revolução de 1932, na entrada do Brasil na Segunda Guerra e, em 1945, responsáveis pela derrubada do Estado Novo. Nos estertores da ditadura poderiam ter sido plenamente recuperados.

Não quiseram: só conseguiram render em duas breves ocasiões – a campanha das “Diretas Já” e a derrubada de Collor. Por vontade própria a entidade jornalística decidiu castrar-se, expeliu e/ou isolou os remanescentes do “romantismo” e entregou-se às libações do marketing.

Lição inconclusa

O resultado é o quadro desolador identificado por Conti: o jornalismo pátrio está robotizado pelo release. Físico, soprado ou induzido, não importa, o que movimenta o noticiário é a informação exógena, vinda de fora para dentro da Redação, em tapetes mágicos, sem ser procurada ou investigada.

Do esporte à cultura (de entretenimento nem se fala), da macro à microeconomia, da cobertura das cidades à política, dos cadernos de moda aos de culinária, só existe movimento onde é ele passível de ser monetizado. O delírio digital na mídia impressa, além de um componente suicida, é alimentado pelo conluio de fabricantes, operadoras e prestadores de serviço. Não há espaço para o consumidor cético ou exigente.

“Escândalos da República 1.2” é um texto apaixonante e aterrador porque constata que não aprendemos com o passado.

 

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