Em 1989, a mais usada (e mais impressionante) fotografia da índia Tuíra
esfregando o facão no rosto do então diretor da Eletronorte (atual presidente da
Eletrobrás) Antônio Muniz Lopes foi batida pelo paraense Paulo Jares. Neste ano,
a mais destacada foto do ataque dos índios kayapó ao engenheiro Paulo Rezende,
da Eletrobrás, em Altamira, foi de autoria do paraense André Penner. No primeiro
caso, Jares estava a serviço da revista Veja. Já Penner veio de Nova York
em missão da agência de notícias norte-americana Associated Press.
São dois dos paraenses que ‘venceram no sul’ (ou no norte), graças ao seu
talento. Continuariam a vencer se tivessem permanecido na terra natal?
Provavelmente, não. Nenhum jornal de Belém mandou fotógrafo para cobrir o novo
encontro dos povos indígenas do Xingu contra a hidrelétrica de Belo Monte. Nem
mesmo repórter. O Diário do Pará ainda compensou a falha publicando, no
dia seguinte ao incidente, as fotos de André Penner. O Liberal teve que
usar imagem de arquivo, completamente fria, e se basear nos relatos dos enviados
especiais da imprensa nacional, bem menos numerosos do que 19 anos antes.
Editorial enfatuado
Apesar do vexame explícito dado por uma imprensa que não consegue estar
presente aos acontecimentos de grande impacto dentro do seu próprio território,
o presidente executivo das Organizações Romulo Maiorana não hesitou em encerrar
a semana, marcada profundamente pelos acontecimentos do dia 20 em Altamira, com
um editorial na primeira página da edição dominical. Com seu inefável retrato ao
lado, Romulo Maiorana Júnior anunciou a modernização da marca das ORM,
‘construída com base na percepção de um mercado ágil e um mundo amplo, que nos
permite estar presente em todos os lugares’.
Mas em qual mundo, afinal, reside este cidadão, que não manda seus
jornalistas para Altamira, a 460 quilômetros de distância de Belém, para
testemunhar um fato de alta relevância para a opinião pública, mas não se vexa
em proclamar o ajuste da sua empresa ao tal do ‘mundo plano’, a requerer ‘a
velocidade inteligente de uma empresa que se encaixa no mercado como uma luva’?
Fantasia tem ora e oportunidade. No caso, é um ultraje à capacidade de percepção
e raciocínio do leitor do jornal.
E qual a inovação a justificar um enfatuado e pretensioso editorial de
primeira página? O ajuste da marca da casa ao padrão global de design. A
montanha pariu um rato. A montanha?
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Louvação desbragada
No dia 29/5 a Federação das Indústrias do Pará concedeu a medalha de mérito
industrial Simão Bitar ao presidente da Companhia Vale do Rio Doce, o paulista
Roger Agnelli. Nesse mesmo dia o Diário do Pará dedicou ao acontecimento
um caderno especial com oito páginas, três delas de anúncios. O Liberal
só reagiu no dia seguinte ao tratamento mais destacado dispensado pelo
concorrente a um dos maiores anunciantes da imprensa paraense (e nacional):
Roger apareceu na maior e mais destacada foto da primeira página do jornal, ao
lado de três diretores da corporação, dentre eles o seu segundo executivo,
Ronaldo Maiorana (o primeiro, Romulo Maiorana Júnior, andou desaparecido nesse
período).
A visita a Belém do presidente Lula ficou na parte de baixo da capa, em
espaço muito menor. O presidente da Vale recebeu mais três páginas no primeiro
caderno do jornal, uma delas só de fotografias, no melhor estilo das colunas
sociais de Belém. A cobertura continuou a ser tão generosa na edição dominical,
tanto de O Liberal quanto do Diário do Pará, que foi preciso
repetir fotografias à falta de opções visuais (já que a imagem prevaleceu sobre
o texto – e este foi redundante na hagiografia).
Quanta diferença do tratamento que O Liberal dispensou à Vale e a
Agnelli até cinco anos atrás. Por dias e dias a empresa foi alvo, em 2003, de
sucessivas matérias de crítica e de editoriais, um dos quais ocupou mais espaço
na capa do jornal do que a inflada e adjetivada cobertura da premiação. A folha
dos Maiorana explicou a razão de mudança tão radical? Não, claro: público foi
feito para comprar jornal, não para saber da verdade através da sua leitura.
Mas todos sabem: a ofensiva virulenta foi uma represália do grupo Liberal à
decisão da Vale de não aderir a uma das promoções caça-níqueis da corporação. E
o endeusamento atual resulta da farta verba publicitária que a Vale passou a
destinar à mídia. O beija-mão ficou tão desbragado que o efeito pode ser o
inverso do pretendido: ao invés de transmitir credibilidade, a untuosa cobertura
dispensada pela imprensa à Vale acabará por desacreditá-la. Todos sabem que os
fartos elogios custam 30 dinheiros.
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Homenagem
O Jornal Pessoal foi um dos homenageados durante a realização da
Semana da Comunicação 2008, realizada pelo curso de comunicação social da Unama
(Universidade da Amazônia), entre os dias 26 e 30/5. A semana deste ano foi
dedicada aos 200 anos da imprensa no país, com a circulação do primeiro jornal
brasileiro (embora editado em Londres), o Correio Braziliense, de
Hipólito da Costa, em 1808. A Rádio Clube do Pará, agora integrando o sistema
RBA, da família Barbalho, também foi homenageada por completar 80 anos de
funcionamento. O JP mereceu a distinção ‘pela luta para manter viva a voz
da Amazônia nestes 20 anos de Jornal Pessoal, exemplo que inspira a todos
nós’.
Agradeci, realmente comovido, a iniciativa dos alunos e professores do curso,
que, além das atividades acadêmicas, mantém uma emissora de televisão, outra de
rádio, um comunicado semanal (que está próximo de 1.500 edições) e um
jornal-laboratório. É uma façanha, à qual a semana, a mais antiga do meio
universitário, se agrega como prova da fecundidade do curso. E da generosidade
dos seus integrantes.
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O jornalismo e Gramsci
Decidi atirar às favas os escrúpulos de pudor e dividir com os leitores o
prazer e a alegria de partilhar um texto que Marco Aurélio Nogueira inseriu (sem
consulta nem aviso prévio) no seu blog Possibilidades de Política, no dia
27/5, sob o título ‘Lúcio Flávio Pinto, Gramsci e o Jornal Pessoal’. Marco é professor titular da
Unesp, a Universidade do Estado de São Paulo, no campus de Araraquara. Sociólogo
desde 1972, obteve o título de doutor pela USP e o de pós-doutor pela
Universidade de Roma. Tem vários livros publicados sobre sociologia, ciência
política e história.
Estudei com Lúcio Flávio Pinto na Escola de Sociologia e Política de São
Paulo nos primeiros anos da década de 1970. Foi lá que nos conhecemos e nos
tornamos amigos.
Para que se dimensione bem o fato, foi com ele que li pela primeira vez os
Cadernos de Gramsci. Viramos dias e noites discutindo as notas sobre
jornalismo e revistas culturais que integravam Os intelectuais e a
organização da cultura e agora estão no volume 2 da edição brasileira dos
Cadernos do Cárcere (Rio, Editora Civilização Brasileira), organizada e
traduzida por Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. As notas de
Gramsci funcionavam, para nós, como fermento teórico e político para editar a
revista Di…fusão, que fazíamos no centro acadêmico da escola junto com
Reginaldo Forti, Cláudio Kahns, Bruno Liberati, Raul Mateos Castells, Leon
Cakof, Vera Lúcia Caldas, um agregado de gente boa, plural e politicamente
diferenciada, que se unia na amizade e na vontade de estudar e combater a
ditadura militar.
Lúcio vinha de Belém, trabalhava no Estado de S. Paulo, o
Estadão. Era um motor em termos de idéias e criatividade. Mas não parava
de pensar na Amazônia, sua causa apaixonada, sua razão de ser como intelectual e
jornalista. Terminou o curso e voltou para Belém, como correspondente do
Estadão. Tornou-se rapidamente uma referência internacional na área, um
dos mais importantes e consistentes – se não o maior de todos – analistas das
aventuras e desventuras amazônicas. Permaneceu combativo como poucos, sem fazer
qualquer concessão aos poderosos. Seu jornalismo independente, de denúncia e
opinião, só fez crescer. Quando as portas dos grandes jornais da região (O
Liberal, Diário do Pará) começaram a se fechar para ele, deu um basta
e foi fazer o Jornal Pessoal, um quinzenário sobre a Amazônia, custeado,
redigido e distribuído a ferro e fogo por ele mesmo quase sem interrupção há 21
anos, com uma tiragem de 2 mil exemplares.
É algo de altíssimo nível, que deve ser conhecido e divulgado. No início de
abril deste ano, Lúcio Flávio publicou seu 10º livro, igualmente dedicado ao
Pará e à Amazônia, mas desta vez tendo como eixo a experiência do próprio
Jornal Pessoal. Através do livro, ele ‘tenta contar capítulos da história
recente do Pará que jamais teriam sido registrados se não existisse este
jornal’. É jornalismo a quente, feito no calor da hora, no momento mesmo em que
os fatos aconteceram. Um exemplo de jornalismo verdadeiramente independente, que
cumpre ‘sua missão mais nobre: ser uma auditagem do poder’.
Lendo as reportagens e os textos vibrantes que estão no livro, fica fácil
perceber porque Lúcio Flávio Pinto incomoda tanto a elite da região, a ponto de
ser vítima constante de perseguições e processos judiciários estapafúrdios.
Coisa que, de resto, jamais o abateu ou o intimidou. Ao contrário, o animou a
afiar e apurar sempre mais a pena, alçando vôo para além do Pará.
Não por acaso, o livro se chama Contra o Poder. 20 anos de Jornal Pessoal
(uma paixão amazônica). É excelente.
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Editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)