O mexicano José ‘Pepe’ Martínez, 50 anos, 30 de jornalismo, não se faz de vítima, aceita resignado o fardo como parte do seu trabalho, mas ainda se diz incomodado – algo inquieto – com sua condição de um dos 50 jornalistas mais ameaçados do mundo, segundo relatório compilado pelo Departamento de Estado americano: até mesmo nas mais comezinhas atividades cotidianas – comprar pão e leite, pegar o jornal na banca da esquina, levar as filhas para a escola, ‘desayunar con los cuates’ (lauto e longo café da manhã com amigos, típico do México) – ele é sempre vigiado por quatro guaruras (guarda-costas) da Procuradoria Geral da República, que, a uma distância discreta, dentro de peruas blindadas, garantem, bem armados, sua segurança e a de sua família, dia e noite.
Foi ele próprio, Martínez, autor de sete livros de denúncias sobre a corrupção e as arbitrariedades do poder político mexicano (200 mil exemplares vendidos), quem pediu essa proteção às autoridades, cansado e atemorizado pelas constantes ameaças à sua vida por haver se transformado, ao longo dos últimos vinte anos, no mais sério e respeitado jornalista investigativo do país.
Nesta entrevista ao Observatório da Imprensa, ele diz que a pressão hoje diminuiu, os telefones não estão mais grampeados, já pode sair à rua com certa tranqüilidade, mas as angústias devem se intensificar de novo, em maio próximo, com a publicação do seu oitavo livro, agora sobre as misérias do jornalismo mundial, com destaque para o mexicano.
Martínez visitou há pouco São Paulo e Rio para sondar o interesse de editoras brasileiras na publicação do livro que consolidou de vez sua reputação – a biografia não-autorizada do magnata mexicano Carlos Slim (Carlos Slim. Un retrato inédito, Oceano, México, 2002). Seu personagem é o homem mais rico da América Latina, dono da América Móvil e das companhias brasileiras de telecomunicações Embratel e Claro, mas que não lhe rendeu dissabores maiores – pelo menos quanto a riscos de vida.
Este não se trata de um livro de apologia ou adulação ao homem de negócios mais poderoso do país, ao contrário: não poupa críticas aos métodos de trabalho de Slim, envolvido num dos grandes escândalos dos últimos anos no México: a forma como ele, graças à sua amizade com o ex-presidente Carlos Salinas de Gortari, teria sido favorecido na compra da empresa estatal Telmex.
Slim, que leu o livro já escrito e editado, pronto para ser impresso, só chiou sobre o prefácio, duríssimo, de autoria de outro jornalista de prestígio, Carlos Ramírez, e conseguiu, pressionando aqui e ali, removê-lo do livro de mais de 100 mil exemplares vendidos e seguidas reedições, incluindo traduções a outros idiomas (filho de imigrantes libaneses, ele facilitou a circulação da obra em países árabes).
Quando traduzido ao português, terá um capítulo de atualização sobre os investimentos do empresário mexicano no Brasil: 1 bilhão de dólares em setores pesados, como ferrovias, rodovias, aeronáutica, além de mais recursos na rede de telecomunicações que vem montando no país.
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Carlos Slim não se manifestou além do prefácio que não gostou?
José Martínez – Não, el ingeniero é um homem muito sóbrio, low profile, não gosta de aparecer. Os jornais costumam publicar fotos suas de arquivo, pois ele não se presta a poses e muito menos a entrevistas. Em público, jamais falou sobre o livro; em privado, disse a amigos e assessores ter gostado, discordando, aqui e ali, de algumas afirmações e revelações, mas ao mesmo tempo se pronuncia a favor da livre expressão. Quando me encontra em algum lugar público, é educado, até caloroso, me trata com respeito. E se eu preciso, como agora, de novas informações para atualizar sua atuação empresarial no Brasil, ele coloca a equipe à minha disposição.
Como foi sua passagem das redações para a condição de escritor e biógrafo freelance, sobretudo considerando a escolha de um gênero explosivo, o do jornalismo investigativo, num ambiente violento como o mexicano, onde o narcotráfico tem um poder de fogo assustador? Onde a polícia mal funciona, neutralizada pela corrupção em verdinhas, e com uma classe política, como o brasileira, voltada quase que de forma exclusiva aos seus próprios interesses?
J.M. – Como repórter, redator e até chefe de seção, trabalhei na grande imprensa e aos poucos fui me cansando de tanta intriga, tanta discórdia, a clássica fogueira das vaidades que é uma redação. Enquanto isso, ia montando meu arquivo de temas – segurança nacional, política interna, externa, economia – e quando saí, há quinze anos, tinha em mãos 250 assuntos. Eu queria fazer isso, denunciar para valer tudo o que via de errado, injusto, sujo, autoritário, enfim, destapar la cloaca (abrir o esgoto).
O primeiro livro foi sobre o período presidencial de Carlos Salinas, de 1988 a 1994. Nele eu denunciava o grande risco que o país iria correr com os tecnocratas neoliberais, que afundaram o país numa tremenda crise econômica e privatizaram 400 das 600 empresas estatais. Depois, escrevi dois livros sobre os desmandos, tropelias e a gorda corrupção da ex-primeira dama, Marta Sahagún, mulher do ex-presidente Vicente Fox. A reação, nos dois casos, foi brava: houve muita pressão para tirar o livro de Salinas de circulação, muitas ameaças de ordem pessoal, tive que sair da Cidade do México e ir morar no interior até que a poeira baixasse e os riscos diminuíssem. No caso de Marta, foi ainda pior. Ela mobilizou todo o seu poder de então para me assustar, limitar meus passos, desestimular minha linha de trabalho, mas felizmente não funcionou. E aqui estamos.
Em que consistem esses riscos?
J.M. – É o cardápio de sempre: fala-se em morte, seqüestro, minha família como alvo principal, ameaças de processos civis e penais, a necessidade, penosa, de mudar de hábitos com freqüência. Recebi até ofertas de cheques em branco, em dólares, para parar as investigações ou cancelar o projeto de livro. Mas o nosso ofício é assim mesmo, perigoso, sobretudo quando nos dispomos a desmascarar os poderosos, os pilantras de plantão. Nessa tarefa, o jornalista arrisca a vida todos os dias, não pode pensar em fama e fortuna; deve ser um ativista social, uma espécie de sentinela da nação, dar voz a quem não a tem. Não é, portanto, um ofício para cínicos. Começo escolhendo um tema de interesse público, tema que também me causa nojo, indignação, e a partir daí saio a investigar, entrevistar, consultar documentos dentro e fora do México, com uma finalidade: desvelar segredos, os de Estado principalmente, detrás dos quais muita coisa nefanda se oculta, e trazer à luz as sujeiras e patifarias da classe política, dos sindicalistas, dos banqueiros, dos chamados donos do país. Ponho em prática uma das minhas crenças pessoais, a de que o jornalismo está onde estão os problemas: somos contadores da história imediata, somos nós que ajudamos a transformar o país, ainda que em ritmo modesto, insatisfatório.
Teoricamente, você, hoje, não precisaria mais fazer um trabalho de campo tão extenso, tão profundo, pois deve receber muito material de fora, às vezes anônimo.
J.M. – Sem dúvida, é o que chamamos de filtraciones – disquetes, fitas de vídeo, CDs, fotos. Mas evito trabalhar com esse material, que às vezes reluz como ouro, pois aí reside outro perigo do gênero: a informação plantada, sabe-se lá por quem e com que interesses. Esse material trazido assim, de mão-beijada, é só uma parte do jornalismo investigativo. Pode servir, mas não é determinante no resultado final. Além do mais, de repente pode ser fabricação do narcotráfico, briga feroz dos cartéis, e acabamos manipulados por essa gente sinistra com o risco de cair baleados na sarjeta. Não, no fundo essas facilidades têm o efeito de uma bomba: explodem. Só trabalho com informação que eu mesmo pesquiso, levanto, checo e recheco. Claro que tenho minhas fontes, que sempre protejo, nelas confio, mas tomo o tempo que for necessário para ter em mãos tudo muito bem esclarecido e fundamentado. Sem exagero algum, tapo o nariz e vou fundo na sujeira.
Você percebe alguma melhoria substancial no panorama deteriorado do poder público do seu país? Melhoria devida ao barulho causado pelos seus livros, suas conferências no exterior, no fato de que seus livros são hoje obras de consulta e referência nas melhores universidades americanas e européias?
J.M. – A melhoria existe, mas obviamente é muito lenta. Devemos, isso sim, realçar o papel da imprensa mexicana em todo esse processo nos últimos vinte anos. Jornalistas como Manuel Buendía e J.Jesús Blancornelas, corajosos pioneiros no gênero – o primeiro assassinado, o segundo aleijado num atentado – abriram o caminho com denúncias diárias em suas colunas. Agora começam a aparecer jovens profissionais dedicados a seguir esse caminho, o do jornalismo investigativo. A imprensa mexicana, que hoje, é verdade, funciona livre, sem censura, mas é também uma das mais perseguidas no continente, pelos capi da droga, os políticos corruptos, as autoridades arbitrárias, tem feito muito mais pelo país que os governantes.
Nessa perspectiva otimista do trabalho da imprensa, devo, contudo, ressalvar outro aspecto: a missão dos jornalistas ainda é prejudicada pela postura mercantilista dos donos de jornais, preocupados em faturar, não em prestar um serviço público. Vale o que entra no guichê da publicidade. Este lado escuro (e obscuro) do nosso setor não podemos esconder. Eles, os empresários jornalísticos, não se caracterizam por ter um código de ética, ainda estão vinculados mais ao poder do que à sociedade. Mas nós, profissionais, continuamos na luta, insistindo em abrir as válvulas da democracia – temos desempenhado um papel muito importante na transição democrática mexicana. Afinal, em nome desta democracia já morreram, e continuam morrendo, à luz do dia, assassinados brutalmente, muitos companheiros.
Em vinte anos, vendendo bem seus livros, você conseguiu fazer sua independência econômica e financeira?
J.M. – Não, longe disso. Recebo bons adiantamentos pelos livros, mas trabalhar assim, sozinho, sem constar de uma folha de pagamento, com todos os benefícios de praxe, custa dinheiro. Muitas vezes banco minhas próprias pesquisas e viagens, até mesmo para manter minha independência. Estou sempre, como dizemos no México, corriendo atrás de la chuleta (algo como ir atrás do pão de cada dia).
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Jornalista e escritor, ex-correspondente de publicações brasileiras no México