Quarto e último artigo de uma série de quatro, sob o título geral ‘A imprensa e o dever da liberdade – A responsabilidade social do jornalismo em nossos dias’.
Leia também ‘A missão de servir ao cidadão e vigiar o poder‘, ‘A liberdade de imprensa entendida como um dever‘ e ‘A qualidade da cobertura da agenda social‘.
Persiste em parte das redações, ainda, a tristonha presunção de que o jornalismo se faz e se aprende ‘na prática’: se o sujeito leu uns livros bons, tem vocabulário acima do comum, é curioso e esperto, vai brilhar. Assim é que esse ofício se firmou e se reproduz, com base na ilusão de auto-suficiência. Talvez ela bastasse até meados dos anos 1970, mas hoje é apenas vã. O jornalismo, como as demais atividades, impõe a seus praticantes que estudem.
É verdade que temos jornalistas notáveis que nunca foram à universidade, assim como, no passado, também tivemos bons dentistas que não tinham diploma. Ainda hoje, aliás, há parteiras no interior que, sem ter passado pela faculdade, trazem crianças ao mundo. Não se pode mais pretender, porém, que a imprensa atinja bons níveis sem ter pontes com a pesquisa e com a capacitação aprofundada. Estudar com método, se já não era no passado, é no presente parte integrante da responsabilidade social do jornalista.
Mesmo os autodidatas estudam. Estudar é indispensável e, para estudar, com todo o respeito aos autodidatas, é bom ir à escola. Assim agem arquitetos, cirurgiões, advogados. Até mesmo as parteiras acordam para a utilidade de umas boas aulas. Assim começam a agir os jornalistas que mais se destacam. Não se espera deles que sejam cientistas, professores de educação física – um dos piores cacoetes das redações é justamente o de estimular o repórter a bancar o sábio em lugar dos sábios a quem lhe cabe entrevistar –, mas deles se espera que sejam bons jornalistas. Sem estudar, isso não é mais possível.
Além da área que pretende cobrir, o jornalista deve se dedicar ao conhecimento da natureza da comunicação, essa indústria que se avolumou exponencialmente de três décadas para cá. É preciso que ele investigue como se precipitam os modelos de formação de sentido e de significado, como o sujeito desenvolve convicções, o advento do inconsciente na comunicação, entre outros temas.
Um profissional da comunicação precisa estudar para compreender o seu público e ser mais útil a ele. Quem pensa que a prática é o critério da verdade, para lembrar a velha frase feita, está, na sua jornada de trabalho, apenas cumprindo ditames de uma teoria cujo autor desconhece e cujas leis não é capaz de divisar.
Finalmente, para cobrir cidadania e movimentos sociais, é preciso cobrir políticas públicas e, para cobrir políticas públicas, há que se estudar o que vêm a ser essa categoria e suas vinculações de método com os próprios movimentos sociais.
Acompanhar os processos
Vigiar o poder implica um olhar atento, em perspectiva, sobre as políticas públicas – compreendidas no âmbito da administração do Estado como ação, coordenação, processo e programa com vistas a um resultado. Mais do que cobrir acontecimentos chamativos e vistosos, é necessário identificar a direção das linhas evolutivas na seqüência de decisões tomadas pelo poder público. Cada vez mais, a sociedade impõe ao profissional de imprensa que, em lugar de jogar holofotes para um evento isolado, saiba apresentar o fato num encadeamento espacial e temporal cujos limites se alargam desafiadoramente.
Mais que antes, o contexto define o grau de importância da notícia – e destacar os contextos do turbilhão de eventos requer rapidez, profundidade e acuidade dos profissionais, o que se obtém com estudo. Não há outro jeito. As fórmulas prontas já não resolvem as equações. Elas se esboroam sem que seus praticantes percebam – mas o público desconfia.
A este respeito, tive a chance de participar de uma tentativa modesta que talvez interesse ao leitor deste artigo. Entre 2003 e 2007, trabalhei na Radiobrás e, ali, desenvolvi, ao lado de outros profissionais, mecanismos que permitiram às redações – em particular à redação da Agência Brasil, o site jornalístico da empresa – acompanhar a evolução das políticas públicas. O que conto aqui não pretende ser uma receita, mas uma contribuição prática entre outras.
No início da jornada de quatro anos, adotamos parâmetros de cobertura que ajudavam a redação a localizar os processos em curso, indo além da rotina de expor os fatos a granel. Entre esses parâmetros estava a definição do campo de cobertura da Agência Brasil: o triângulo imaginário, cujos vértices seriam Estado, governo e cidadania. Aí dentro cabiam os atos dos governantes, as políticas públicas e os movimentos sociais e a sociedade civil organizada.
Para evitar a captura do enfoque tanto pelas alças do governo como pelas pressões próprias de ONGs, a redação se impôs o dever de cobrir sistematicamente a evolução das políticas públicas segundo o efeito direto que elas tivessem na vida material das pessoas. Uma solenidade, mesmo que superlotada de autoridades, não seria notícia obrigatoriamente. O acesso de uma comunidade a um novo sistema de educação, implantado e em funcionamento, este sim importava na pauta. Uma reivindicação de uma ONG ou de uma central sindical poderia entrar na pauta, mas os seus efeitos sobre a administração pública e o que ela acarretaria em matéria de políticas públicas seriam ainda mais valorizados no noticiário. [Quem quiser conhecer um pouco mais os parâmetros jornalísticos adotados pela empresa poderá obter boas informações em NUCCI, Celso (org.). Manual de Jornalismo da Radiobrás – produzindo informação objetiva numa empresa pública de Comunicação. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2006.]
Revelar os contextos
O projeto editorial da Agência Brasil e da Radiobrás gerou um ponto de observação independente, comprometido apenas com os direitos do cidadão genérico, que não era nem assalariado dos ministérios nem militante de ONG ou de movimento de massa. A despeito da tradição governista e subserviente que pesava sobre a estatal, criou-se um ambiente de maior liberdade. Também nesse caso, o cultivo dos cânones do jornalismo conduziu à busca da liberdade.
Para levar adiante a cobertura pretendida, as editorias antigas da Agência foram reformuladas. Até então decalcadas de uma redação convencional – eram editorias que se distribuíam em retrancas como ‘internacional’, ‘política’, ‘economia’, ‘cultura’, ‘esportes’ ou ‘ciência’ –, elas se reorganizaram segundo as áreas a cobrir. Editorias como ‘esportes’, ‘cultura’ ou ‘ciência’ deixaram de existir, mas reportagens sobre esportes, cultura ou ciência não deixaram de ser feitas – apenas mudaram de enfoque: em lugar de ser noticiadas como espetáculos, entravam na pauta quando dissessem respeito diretamente ao atendimento de direitos, com foco no cidadão. Um show, por exemplo, não seria mais notícia. A abertura de uma escola pública de música, esta sim.
Graças às novas lentes, formou-se na redação da Agência Brasil, e, também, em outras redações da Radiobrás, o costume de manter um acompanhamento de médio e longo prazo dos fatos relacionados aos direitos da cidadania. Daí nasciam os elementos da pauta diária. A redação da Agência conseguiu, então, iniciar – apenas iniciar, pois este aprendizado leva tempo – o monitoramento sistemático das políticas públicas, originadas do governo ou dos movimentos, pois uma política pública pode germinar de dentro do Estado ou de uma demanda que se estrutura a partir da sociedade.
A produção da Agência Brasil – pelo menos de fins de 2003 a meados de 2007 – é uma demonstração viva das múltiplas dimensões da cobertura das políticas públicas. A Agência não abriu mão do dever de publicar notícias em primeira mão; o fato de acalentar o ideal de revelar os processos sociais e políticos em curso não a eximiu do dever de dar as notícias antes das demais agências, com agilidade e qualidade. Não se tolerou, ali, que os fatos fossem desprezados pelo jornalista sob a desculpa de que seu negócio, agora, era noticiar processos e não meramente fatos. Ao contrário, o desafio era dar as notícias antes, enriquecidas por descrições mais aprofundadas dos respectivos contextos. Com o tempo, o olhar atento às políticas públicas aparelhou a redação para enxergar algumas notícias antes dos demais, em várias oportunidades. [As coberturas especiais realizadas pela Agência Brasil entre 2003 e o primeiro semestre de 2007 podem ser consultadas em www.agenciabrasil.gov.br]
O interesse público
Durante a campanha eleitoral de 2006, por exemplo, a Radiobrás realizou, não apenas na Agência Brasil, mas também em seus veículos de rádio e televisão, uma cobertura que se distanciou do imediatismo e alcançou grande repercussão em diversos veículos públicos e comerciais, dada a sua utilidade para o eleitor. Em primeira mão, a empresa noticiou a lista de candidatos às eleições que tinham contas não aprovadas ou processos em aberto no TCU (Tribunal de Contas da União), detalhando quais eram as razões desses processos. Só uma equipe que compreendesse a natureza das informações armazenadas no TCU e a relevância delas para a formação da opinião do cidadão poderia levar aquela pauta adiante. Foi uma investigação exaustiva. A seqüência de reportagens rendeu notícias quentes a partir do que aparentemente era mera rotina no TCU.
Esse período na Radiobrás reforçou em mim, de modo definitivo, convicções de fundo que, em parte, foram expostas ao longo deste artigo. Do ponto de vista da lida com a notícia, muitos dos que participamos dessa temporada na Radiobrás aprofundamos a certeza de que o jornalismo não tem mais a prerrogativa de se contentar em reagir a estímulos externos: a um press release, à provocação verbal de uma autoridade, aos eventos espetaculares, à curiosidade caprichosa e volúvel da platéia. Ele precisa encontrar a notícia de interesse público onde não há a aparência ou promessa de espetáculo – o TCU, por exemplo, que não tem poder de cassar mandatos nem de mandar prender ninguém, mas que reúne uma imensidão de relatórios técnicos que, se bem lidos, lançam luz sobre o caráter da trajetória de um político.
Uma conclusão apressada
A democracia ainda depende do jornalismo – e este, agora, depende de identificar e cultivar o que lhe é essencial. Experimentamos uma abundância sem precedentes de referências e de discursos fervilhando nos espaços públicos. Cifras, declarações, afirmações, gráficos, rezas, fotos, desenhos, vídeos, documentários, tabelas, infográficos, mapas – uma infinidade de textos, sons e imagens, em profusão vulcânica, vinda de todas as partes, abarrota os olhos, os ouvidos e, eventualmente, a paciência de todo mundo. ONGs, autarquias, bancos, empresas, governos, fábricas de automóveis, escolas, agências espaciais, igrejas, seitas e furgões que vendem pamonha produzem seus próprios sites, seus alto-falantes, seus filmes e suas emissoras de rádio e de televisão. Ruidosamente, forjam nexos diretos e íntimos com qualquer tipo de público, com qualquer parte física ou imaterial do sujeito.
No meio da tempestade de conteúdos cujas intenções se embaralham e se dissimulam, uma pergunta inquieta o cidadão: ‘Em quem eu posso confiar?’. Cada vez mais, quando se trata de informação e de diálogo sobre temas de interesse público, o olhar desengajado e o relato objetivo adquirem valor. O jornalismo adquire valor. Credibilidade, independência, foco no cidadão e compromisso com expandir progressivamente o universo daqueles que têm acesso à informação: nisso se resume a sua responsabilidade social. É desse modo que ele contribui para a democracia inclusiva e para o desenvolvimento humano.
******
Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (São Paulo: Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007