Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Judiciário como vidraça

A grande imprensa, tradicionalmente, é crítica aos poderes legislativo e executivo, mesmo que em relação ao último haja variação nas cobranças dependendo do presidente,  do governador ou do prefeito no cargo.  Com o judiciário e as suas instituições correlatas, como o Ministério Público, o tratamento sempre foi menos crítico, adotado para evitar represálias de um poder sem controle externo e muito corporativo, para agradar às fontes e para obter informações preciosas de investigações de pessoas, empresas e órgãos do governo utilizadas ou não a partir da linha editorial do veículo.

Anos atrás a cobertura do judiciário era mais restritiva e difícil. As normas de que juiz não deve se expressar fora dos autos ou pré-julgar eram respeitadas, não se sabia o resultado de um julgamento com antecedência e era necessário consultar os especialistas para explicar a sentença.  Hoje, aparentemente, o maior acesso aos membros do judiciário não melhorou o trabalho da imprensa, que, no geral,  reproduz sem questionamentos o que a fonte vaza, e nem qualificou o exercício da justiça. As transmissões ao vivo das sessões do STF, por exemplo, saudadas por dar transparência às decisões de cada ministro, acabaram por mostrar as contradições e, algumas vezes, o baixo nível das discussões e ajudaram a criar personagens, sub celebridades, repletas de vaidades. O artigo “STF, vanguarda ilusionista”, do professor de direito constitucional, Conrado Hübner Mendes, na Folha de S.Paulo, de 28 de janeiro último, é esclarecedor sobre as inúmeras contradições do Supremo e de sua atuação política, que não respeita o Estado de Direito.

Assim como o artigo do professor, matérias e colunistas têm sido mais críticos este ano, em razão da série de acontecimentos que tem desnudado a ação do judiciário, que vive hoje uma crise de credibilidade. Sem entrar no mérito jurídico da sentença dos três magistrados da TRF4 sobre o processo que condenou o presidente Lula em segunda instância, só os ritos já deixaram suspeições sobre o julgamento. Ele foi antecipado, os três magistrados levaram as sentenças prontas, não consideraram a argumentação da defesa, com tempo limitado e sem chance do contraditório, e deram a mesma pena, exatamente no tempo necessário para que o condenação da 1° instância não prescrevesse.

Poucos dias depois, a presidenta do STF, Cármen Lúcia, adiantou a dirigentes de multinacionais e jornalistas, em um jantar em Brasília, que em sua opinião o Supremo iria se apequenar se revisasse a decisão que autoriza prisões após a condenação em segunda instância. Vale lembrar que o assunto já voltaria à pauta em março, segundo previsão da própria Cármen Lúcia no ano passado, para atender solicitação de alguns dos ministros desejosos de rediscutir a polêmica e apertada votação.

Adiantar a mudança de opinião e da pauta em um jantar privado causou estranheza e deixou claro que o STF pauta sua agenda de votações, que algumas vezes mudam a vida de milhões de brasileiros, por decisão e interesse do presidente em exercício. Como em todas as instâncias do judiciário, questões podem ficar anos engavetadas ou têm os seus julgamentos antecipados, de acordo com a vontade do juiz. E não basta colocar o assunto em pauta. Alguém pode pedir vistas, sem prazo para a retomada da votação. Outras decisões podem ser tomadas individualmente, com rapidez, por meio de habeas corpus ou  liminares,  também sem prazo para revisões.

A previsão de revisão pelo plenário do STF, em março, de uma liminar de 2014, por sinal, gerou nova situação negativa.   Se trata da decisão do ministro Luiz Fux, do STF, que estendeu o auxílio-moradia, hoje de R$4.378 mês, para todos os juízes do país.  A possibilidade do fim deste benefício para quem tem imóvel, público disponível para utilização ou próprio, mobilizou membros do judiciário e do Ministério Público que fizeram manifestação em Brasília, no fim de janeiro em frente ao STF, para defender o privilégio. Nos três anos de vigência da liminar o pagamento do auxílio acrescentou um custo de R$1,3 bilhão, segundo a BBC Brasil, nas combalidas contas do governo.

Ao apurar quantos e quais foram os beneficiados, a Folha de S.Paulo encontrou dois dos protagonistas da Lava-Jato. O juiz Marcelo Bretas, além de ter solicitado o pagamento do benefício, entrou na justiça para garantir o recebimento duplo do auxílio moradia, dele e da mulher, também juíza, o que não é permitido.  Ele ironizou a reportagem, reproduzida por diversos veículos, dizendo que tinha o péssimo hábito de recorrer à justiça “para defender os seus direitos”. Outro que recebe o benefício é o juiz Sérgio Moro, que mora em apartamento próprio em Curitiba e, candidamente, argumentou que requereu o auxílio para compensar a falta de aumento salarial.

A nota das associações de magistrados foi ainda mais infeliz ao acusar as matérias que discutem o pagamento do auxílio moradia de promoverem uma  campanha  contra o combate à corrupção. A mulher do juiz Sergio Moro, Rosângela, postou no Facebook foto da Folha de São Paulo embalando bananas com a afirmação de que a imprensa não separa joio do trigo.

Na repercussão ao noticiário sobre o auxílio moradia, assim como na sessão que abriu os trabalhos deste ano no STF, onde a ministra Cármen Lúcia, ao lado de denunciados da Lava Jato, reclamou duramente, sem citar nome, das críticas feitas pelo ex-presidente Lula à decisão do TRF-4, ficou demonstrado que o judiciário só dá valor aos elogios.

Curioso que na primeira sessão do STF, na tarde do mesmo dia, a votação tenha chegado a um resultado que apenas confirma a desconfiança geral sobre o trabalho do judiciário. O plenário julgou a constitucionalidade de uma decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que, em 2012, há mais de cinco anos, proibiu a adição de aroma e sabor em cigarros.  A Confederação Nacional da Indústria (CNI) questionou a decisão e conseguiu uma liminar em 2013. No julgamento do dia 1° de fevereiro, por 5 votos a 5, o plenário decidiu que a decisão da  Anvisa está de acordo com a Constituição e derrubou a liminar. Mas como não houve quórum mínimo de seis votos para gerar o efeito vinculante, a indústria tabagista já garantiu que continuará produzindo seus cigarros com sabor. Sabe que vai continuar obtendo liminares na justiça de 1° instância contra a decisão da Anvisa.

No Brasil, qualquer juiz tem o poder de decidir isso e qualquer outra coisa, desde a suspensão do Enem, a retirada do Whatsapp do ar ou o confisco do passaporte do ex-presidente Lula e o consequente impedimento de que participasse de um congresso internacional da FAO na Etiópia. Vale qualquer decisão, mesmo que seu efeito persista por algumas horas, dias, meses ou muitos anos.

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Nereide Lacerda Beirão é jornalista. Foi Diretora de Jornalismo da EBC e da TV Globo Minas, além de professora. Ocupou também a diretoria do Centro de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais. É autora do livro “Serra”, publicado em 2012.